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A bem da Nação

PARA ONDE VAI A GRÉCIA DE TSIPRAS?

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O problema grego é político. Não é a dívida. É a reforma do Estado e da economia.

A Grécia apanhou a Europa de surpresa em 2009 e continua a surpreendê-la. Historiadores, economistas e politólogos gregos sempre aconselharam os responsáveis europeus a conhecer um pouco melhor a História grega contemporânea. A questão da dívida ocupa quase toda a cena.

 

Mas a dívida é uma manifestação, não a raiz do problema. Para os historiadores, o "problema grego" não é económico mas político — diz respeito ao funcionamento do Estado. A questão não está nos gregos mas nas instituições. A reforma do Estado e da economia é o nó do problema.

 

O "sistema grego"

 

O "sistema grego" remonta ao século XIX. A Grécia emancipou-se do Império Otomano em 1829 e o novo Estado começou a ser criado por altos funcionários alemães que acompanhavam o primeiro rei, o príncipe Otão da Baviera. Foi imposto um modelo centralizador contra as resistências de uma sociedade que vivia num quadro político, institucional e cultural otomano.

 

"A construção prosseguiu dificilmente ao longo dos séculos XIX e XX, com avanços e recuos", resume George Prevelakis, especialista da geopolítica balcânica e embaixador na OCDE. "Para obter a aceitação das populações rurais e reprimir a sua recusa da modernidade política importada, o poder serviu-se do aparelho de Estado não apenas como instrumento de repressão mas como sistema de distribuição de uma espécie de renda ou tributo. A principal moeda de troca foi o emprego pelo Estado. Um lugar na administração traduzia-se num primeiro tempo pela submissão e, a seguir, em votos."

 

Este é o "pacto fundador" que, em grande parte, determinou os estigmas políticos e sociais da Grécia. A fuga ao fisco tornou-se em muitos casos numa prática "legal": a Igreja Ortodoxa, o maior proprietário do país, ou os grandes armadores estão constitucionalmente isentos. As profissões liberais estavam tacitamente isentas e passaram a protestar contra a "perseguição fiscal" imposta pela troika. "Se a Grécia tivesse um efectivo sistema fiscal, nos padrões da zona euro, a receita duplicaria", concluía em 2012 o economista Kostas Vergopoulos.

 

Para poder distribuir uma renda a um grande número de clientes, a elite política tinha de encontrar fontes de financiamento. Para manter um Estado pletórico era necessário sobrecarregar fiscalmente a economia que, em troca, desenvolveu uma cultura de fraude fiscal.

 

"Nunca sendo suficientes as receitas, foi necessário olhar para o estrangeiro, ontem para a Europa e os Estados Unidos, hoje para a Rússia e a China", anota Prevelakis. "As elites gregas aprenderam a explorar os sentimentos de simpatia para com a Grécia, assim como a situação geoestratégica do país para obter financiamento estrangeiro."

 

Nos últimos 40 anos, os dois grandes partidos, o Pasok, do clã Papandreou, e os conservadores da Nova Democracia reorganizaram em larga escala as redes de patrocínio. Andreas Papandreou, no poder após 1981, construiu um "socialismo a crédito", escreve o historiador Nicolas Bloudanis. Impôs-se politicamente pela capacidade de arrancar fundos europeus para alargar a sua base clientelar. "Mas não é o único responsável: a direita é tão estatista como o Pasok. A classe política grega sempre confundiu dramaticamente rendimento e empréstimos."

 

Ao clientelismo somam-se os privilégios corporativos de centenas de grupos sociais e económicos fechados — dos advogados aos camionistas — tal como uma miríade de taxas e isenções em benefício de grupos particulares. É uma "cadeia de direitos adquiridos" que modela e atravessa a sociedade.

 

Além da austeridade, a Grécia comprometeu-se a fazer uma reforma integral da sua máquina administrativa e da economia. Mas a maioria das medidas foram bloqueadas por poderosos grupos de interesses.

 

Leszek Balcerowitz, que dirigiu as reformas da transição na Polónia nos anos 1990, fez um apelo à UE sobre a crise grega: "Ser flexível na dívida mas intransigente nas reformas". Não o "perdão" da dívida que Tsipras pede mas uma maior flexibilidade na reestruturação. A mensagem seria "premiar as reformas não o populismo económico" e incentivar o crescimento — não pensando apenas na Grécia mas em países como Portugal, Espanha, Itália ou França. A confusão entre reformas e austeridade é perversa. As reformas não sacrificam a generalidade da população, apenas os interesses instalados.

 

Tsipras e o nacionalismo

 

A vitória do Syriza significou o desmoronamento do velho sistema bipartidário. Para onde vai a Grécia de Tsipras?

 

Logo a seguir à vitória do Syriza, observou o historiador Sthatis Kalyvas: "Dado que o Syriza se opõe a muitas das reformas estruturais que são necessárias, (...) a aplicação do seu programa exige nada menos do que um compromisso da UE em financiar permanentemente os crescentes défices. Isto não é realista."

 

Tsipras estaria perante um desafio: "Se se mostrar capaz de reformar a disfuncional máquina administrativa, reformar o sistema de pensões, cortar a corrupção e a evasão fiscal, será celebrado como um grande reformador e dominará a política grega por uma década." Mas a probabilidade deste cenário seria muito baixa — o que as duas semanas seguintes confirmaram.

 

Tsipras escolheu o terreno da dívida para uma estratégia de confronto com Berlim. Sobre reformas pouco ou nada disse. Yanis Varoufakis prometeu acabar com a "cleptocracia grega".

 

A chave da política de Tsipras é o nacionalismo e, em particular, a germanofobia. Por isso reabriu a questão das "reparações de guerra". Uma vez mais é bom lembrar os acessos de febre nacionalista que regularmente percorrem a Grécia. O retrato que a Grécia moderna traça de si mesma é o de vítima: dos otomanos e depois da Turquia, da Grã-Bretanha, da Itália fascista, da Alemanha nazi, dos americanos durante a ditadura dos coronéis, agora da UE e, uma vez mais, dos alemães. Andreas Papandreou e o ex-primeiro-ministro Antonis Samaras foram mestres na manipulação dessas febres. É uma receita segura para apelar à coesão nacional e esconder os erros.

 

Tsipras optou pela aliança com o partido ANEL (extrema-direita), em detrimento do To Potami (centro-esquerda). O economista Pavlos Eleftheriadis, membro do To Potami, faz uma virulenta denúncia da sua deriva nacionalista e anti-europeia. "Mais do que criticar a austeridade como um erro político, ele condena-a como um ataque à Grécia e como uma imposição neo-colonial."

 

Que se segue? Escrevia na sexta-feira o diário Ekathimerini: "O Syriza ganhou as eleições com um misto de promessas e fanfarronadas. Agora, para ter sucesso no governo, tem de pôr termo ao choque com os nossos credores, unificar o partido, unir os gregos e enfrentar os problemas que estão por resolver há longos anos. O partido de Tsipras tem do seu lado as esperanças da maioria dos gregos. É a sua força. Se o Syriza desperdiça este vento favorável, a esperança perdida transformar-se-á em desilusão e fúria."

 

Tsipras recusa-se a fazer o diagnóstico do "problema grego". Ou melhor, substituiu-o por um passe de magia: "a libertação nacional do jugo estrangeiro".

 

15/02/2015

 

Jorge Almeida Fernandes.jpg Jorge Almeida Fernandes

HOJE A GRÉCIA, AMANHÃ A ESPANHA E DEPOIS A ITÁLIA?

O Syriza interpreta a crise como uma luta de libertação nacional contra o jugo estrangeiro.

 

Sobre o Syriza escreveu Paolo Flores d'Arcais, filósofo e radical italiano: "Hoje na Grécia, amanhã na Espanha, depois de amanhã na Itália." Alexis Tsipras, líder do Syriza, prometeu refundar a Europa. "O 25 de Janeiro é o começo, a vitória do Syriza será seguida pela do Podemos em Espanha e, no próximo ano, pela do Sinn Féin na Irlanda." Pablo Iglesias, líder do Podemos, proclamou: "2015 será o ano da mudança na Espanha e na Europa. Vamos começar pela Grécia." Anuncia-se o fim da "era da austeridade" e um novo efeito dominó, inverso daquele que a Grécia abriu na zona euro em 2010. Os mais ousados sonham com uma nova "Primavera dos Povos", como a de 1848. Três factos perturbam a festa. Primeiro, o Syriza escolheu para aliado um partido da direita radical — Gregos Independentes (Anel). Foi um balde de água fria para Roma e Paris. É uma "aliança contra natura", protestou Daniel Cohn-Bendit. Não é um ponto acessório e a ele voltaremos.

 

A 19 de Abril, há eleições legislativas na Finlândia. Os Verdadeiros Finlandeses, partido populista eurocéptico, contam com Atenas para mobilizar o eleitorado contra Bruxelas e contra o Sul. Seria a primeira de uma série de vitórias eleitorais "anti-Grécia". O perdão parcial da dívida grega provocaria uma ressaca no Norte da Europa que fortaleceria a extrema-direita e os partidos nacionalistas, anotou o analista britânico Gideon Rachman. Por fim, o Sul não é homogéneo. Em Portugal, mantém-se a lógica bipartidária. Na França, quem capitaliza eleitoralmente a luta antieuro e antiausteridade é a Frente Nacional, de Marine Le Pen — que as sondagens colocaram esta semana na casa dos 30%. Marine apoia o Syriza. Ou melhor: utiliza o Syriza para reabrir o "julgamento" da União Europeia. Também na Itália não é a esquerda radical que capitaliza a vitória do Syriza: são os adeptos de Beppe Grillo e a Liga Norte, convertida hoje a Le Pen. Tsipras e Iglesias esqueceram-se de juntar Marine à sua lista de desejos.

 

Os novos radicais
 
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Não fica pedra sobre pedra

 

O Syriza e o Podemos são um fenómeno político novo, uma esquerda radical que não deve ser confundida com as antigas extremas-esquerdas de que provêm. É Iglesias quem melhor o teoriza. O velho esquerdismo visava manter a pureza doutrinal e os seus mitos ideológicos, permanecendo uma força marginal. Iglesias explica que ao Podemos não interessa ter 10% ou 15% dos votos — aspiração do Bloco de Esquerda ou das extremas-esquerdas europeias. Quer seduzir o eleitorado do centro e mesmo da direita. Quer o poder. Não fala em luta de classes — relíquia do século XX —, mas no confronto entre os de "cima" e os de "baixo", entre a "gente" e a "casta". A sua aprendizagem na Venezuela ou na Bolívia não visa assimilar a Europa do Sul à situação da América Latina. O seu objectivo é encontrar novos mecanismos da acção política. A antiga esquerda radical sonhava "mudar o mundo sem tomar o poder". Podemos quer o poder. Por isso estudaram as experiências de "conquista da hegemonia" pelos populismos bolivarianos. "Ganhar eleições não é ganhar o poder", escreve Iglesias. Por enquanto, a meta são as eleições.

 

O resto, e o depois, é deliberadamente vago. O seu "primeiro mandamento" é deixar de falar para a esquerda e falar para a "gente". O segundo é estar em sintonia com o "estado de espírito" (não com as ideologias) dos espanhóis. O Podemos quer dizer "aquilo que as pessoas pensam". Os grandes partidos só agora começam a perceber um fenómeno que menosprezaram (Ponto de Vista de 30/11/14). O Podemos reconhece que o terreno lhe foi aberto não só pela crise económica — que popularizou a hostilidade a Bruxelas e Berlim —, mas sobretudo pela degradação do sistema bipartidário, que se propõe destruir. Tal como o Syriza, rompeu com a anterior estratégia de aliança com a esquerda social-democrata — o objectivo é "pasokizar" o PSOE. O Syriza começou por ser uma coligação de várias forças da extrema-esquerda clássica que, agora, se vê forçada a funcionar como partido. Tem um estilo mais clássico que o Podemos.

 

Mas começou recentemente a usar uma retórica mais próxima de Iglesias, falando para "toda a sociedade", para "a nação", ultrapassando a dicotomia esquerda-direita. O seu sucesso não decorre apenas do "desespero social", mas do descrédito do sistema bipartidário e da ruína das "dinastias gregas". Depois, soube condensar o descontentamento social num sentimento de "humilhação nacional". Faz uma leitura da crise com raízes na História. "A esquerda radical interpretou a crise dos últimos anos como uma luta de libertação nacional contra o jugo estrangeiro", anota o economista Manos Matsaganis. "Prometeu um regresso fácil e indolor aos bons velhos tempos de antes do resgate. (...) O partido é alérgico às reformas, combatendo asperamente as mais inócuas." A mola unificadora é o nacionalismo. Não é surpresa que se tenha aliado ao Anel, "uma direita reaccionária e xenófoba" com laivos de anti-semitismo. "A Europa é governada por alemães neonazis" — é a tese de Panos Kammenos, líder do Anel. Tudo os separa ideologicamente menos a questão principal: a austeridade e a Europa. Não será a primeira vez, nem a última, que os extremos se aliam. Não é de excluir, na actual conjuntura, inesperadas recomposições políticas que não passam pela clivagem esquerda-direita. Lembremos o referendo francês sobre a Constituição europeia, em 2005. Esquerdistas partidários de "outra Europa", soberanistas e eurocépticos, de esquerda e de direita, e a extrema-direita de Le Pen uniram-se para derrotar o tratado.

 

"Credores e devedores"

 

O Governo grego está numa posição de fraqueza negocial no plano económico: a chantagem sobre o fim do euro deixou de funcionar.

 

Mas tem uma posição política forte. Joga numa vaga de simpatia, na contestação da austeridade noutros países do Sul e no aumento da pressão sobre Berlim. Estabeleceu uma base negocial maximalista para dramatizar a negociação, tentando forçar uma mediação por parte de países como a Itália ou a França. Diagnostica o alemão Joschka Fischer: "Dado o impacto do resultado das eleições gregas na Espanha, na Itália e na França, onde os sentimentos antiausteridade são igualmente altos, subirá significativamente a pressão sobre o Eurogrupo — tanto à direita como à esquerda. (...) A eleição grega já produziu uma inequívoca derrota de Merkel e da estratégia baseada na austeridade para defender o euro." "O elo fraco da teoria europeia é político", escreveu há semanas Gideon Rachman. "É, especificamente, o risco de os eleitores se poderem revoltar contra a austeridade e darem os seus votos a partidos 'anti-sistema' que rejeitam o consenso europeu para manter a moeda única." É nisto que Atenas aposta, ignorando o efeito boomerang que vai criar. Que significa politicamente? Crescerão as reacções "soberanistas antieuropeias" a norte e a sul? Que margem de manobra terá Merkel na Alemanha para retomar a iniciativa? Como vão Paris e Berlim responder à divisão norte-sul que se alarga e mudará a UE?

 

A Europa está a radicalizar-se entre dois blocos: credores e devedores.

 

01/02/2015

 

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Jorge Almeida Fernandes

OS TOTALITARISMOS DO SÉCULO XX...

 

... GERARAM A "BANALIDADE DO MAL"

 

A estreia, hoje, de Hannah Arendt, de Margarethe von Trotta, e a apresentação em Outubro doDernier des Injustes, de Claude Lanzmann, ilustram duas visões opostas das tragédias do século XX.
 

Num dos seus primeiros textos sobre o fim da II Guerra Mundial, escreveu Hannah Arendt em 1945: "O problema do mal será a questão fundamental da vida intelectual do pós-guerra na Europa – tal como a morte se tornou fundamental no fim da última guerra [1914-1918]." É um tema que nunca abandonou.

 

O filme Hanna Arendt, de Margarethe von Trotta, estreia hoje (3OUT13) em Portugal. Todo ele roda em torno da questão da "banalidade do mal", levantada por Arendt no seu livro-reportagem sobre o julgamento de Adolf Eichmann em Jerusalém, em 1961, que motivou, uma "guerra civil" entre os intelectuais de Nova Iorque e na elite judaica e deu lugar a infindos debates que ainda hoje se prolongam. Por isso o título inicial do filme era A Controvérsia.

 

Judia alemã, doutorada em Filosofia, Hannah Arendt (1906-1975) abandonou a Alemanha logo a seguir à tomada do poder por Hitler e refugiou-se em Paris. Internada num campo pelos franceses em 1940, foge e, com o segundo marido, Heinrich Blücher, alcança os Estados Unidos, passando em Lisboa.

 

Em 1961, era já uma reconhecida e influente pensadora. As suas primeiras grandes obras - A Origem dos Totalitarismos e A Condição Humana - datam de 1951 e 1958.

 

Quando Eichmann foi raptado na Argentina pela Mossad, em 1960, e levado para Israel a fim de ser julgado, ofereceu-se ao New Yorkerpara cobrir o processo. Pediu uma bolsa à Fundação Rockfeller e assistiu ao julgamento durante três semanas. As primeiras reportagens foram publicadas no jornal e depois reunidas e completadas no livro Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil (1963).

 

Justificou a assim a partida para Jerusalém: "(...) Tenho de fazer a cobertura deste processo, falhei Nuremberga, nunca vi esta gente em carne e osso e será provavelmente a única ocasião que terei para o fazer."

 

As reportagens no New Yorker suscitam imediatamente paixões e mal-entendidos.

 

Ela iluminava de uma forma inédita o problema do mal. Não via em Eichmann um ser patológico ou demoníaco, um "perverso sádico", mas um homem "terrível e aterrorizadoramente normal".

 

Que é o mal?

 

Arendt põe em causa a nossa noção tradicional do mal e não teme romper com a visão convencional. Pessoas vulgares, que em circunstâncias normais não praticariam crimes ou seriam respeitáveis, tornam-se monstros noutras circunstâncias.

 

No filme, diz pela voz da actriz Barbara Sukowa: "O pior mal no mundo é o cometido por pessoas vulgares, o mal cometido sem motivos, sem convicções, simplesmente por pessoas ordinárias que renunciaram à sua dignidade humana."

 

"Não escrevi que defendia Eichmann, tentei estabelecer o laço entre a mediocridade chocante do homem com o horror dos factos. (...) Trata-se de compreender, não de perdoar."

 

Foi acusada de "banalizar o mal" ou de relativizar a responsabilidade de Eichmann, por ter sido iludida pela defesa do burocrata nazi que organizou a "solução final".

 

Ele seria um fanático e não um medíocre. Historiadores, como a israelita Deborah Lipstadt ou o britânico David Cesarani criticaram a sua tese. Eichmann não era "um funcionário cinzento nem um burocrata-robot", escreveu Cesarani. As novas investigações "revelam a medida em que Arendt se enganou sobre Eichmann", sublinhou Lipstadt. "Ele revela um inteiro apoio e uma plena compreensão da ideologia nazi."

 

Os alemães "vulgares"

 

O problema é que Arendt nunca escreveu que Eichmann se limitou a obedecer a ordens. Sublinhou que Eichmann tinha enorme orgulho na deportação dos judeus e chegou a ultrapassar as ordens de Himmler para suspender as deportações em 1944, quando a Alemanha nazi estava prestes a perder a guerra.

 

O historiador Christopher Browning lançou uma luz nova sobre "a banalidade do mal". Publicou em 1992 o livro Ordinary Men. Reserve Police Battalion 101 and the Final Solution in Poland. É uma monografia sobre um único batalhão de polícia alemão. Estes homens massacraram 38 mil judeus. Não era os especialistas treinados das SS, eram homens vulgares, chefes de família muitos deles quadragenários, reservistas enviados para "manter a ordem" por incapacidade para o combate. Não eram racistas fanáticos. Por que se tornaram carrascos? Um deles declarou ao historiador décadas depois: "Esforcei-me, e consegui, apenas disparar sobre crianças. Acontece que as mães levavam os filhos pela mão. Então, o meu vizinho matava a mãe e eu a criança que lhe pertencia, dizendo-me que nenhuma criança sobrevive sem a mãe."

 

Numa recensão de novos livros sobre os crimes de "alemães vulgares", Browning exprime dúvidas sobre a justeza do olhar de Arendt sobre Eichmann, mas não sobre o conceito: "Arendt forjou um importante conceito embora com um exemplo menos correcto."

 

Hannah Arendt nunca desesperou. Escreveu em Eichmann em Jerusalém:

 

"Politicamente falando, acontece que em condições de terror a maior parte das pessoas sujeitar-se-ão,mas algumas não o farão, tal como a lição dos países aos quais a Solução Final foi proposta é a de que pode acontecer em quase todos os lugares, mas não acontecerá em todos. Humanamente falando, nada mais é exigido, e nada mais pode ser razoavelmente pedido, para que este planeta permaneça um lugar adequado para a habitação humana."

 

O debate da "banalidade do mal" foi, e é, muito mais complicado. Remeto o leitor para o excelente e rigoroso prefácio da tradução portuguesa (Eichmann em Jerusalém. Uma reportagem sobre a banalidade do mal, Edições Tenacitas, 2003), assinado por António de Araújo e Miguel Nogueira de Brito. Está disponível no blogue Malomil.

 

O olhar de Lanzmann

 

Por uma curiosa coincidência vai estar em Lisboa dentro de dias o cineasta e escritor francês Claude Lanzmann, autor do genial Shoah (1985), filme-reportagem que mudou o nosso modo de olhar a tragédia judaica. Vem participar numa retrospectiva da sua obra na Cinemateca e numa mostra de cinema francês organizada pelo do Instituto Francês de Portugal (IFP), entre 10 e 20 de Outubro.

 

Vem também apresentar o seu novo filme, Le Dernier des Injustes - uma alusão ao Último Justo, de André Shwartz-Bart - que será estreado comercialmente este ano.

 

A sua obra será também editada em DVD. O filme é produto de anos de entrevistas com Benjamin Murmelstein, grande rabino de Viena, nomeado por Eichmann como decano ou ancião do Conselho Judaico do gueto de Theresienstadt - a vitrina dos campos de concentração para mostrar aos estrangeiros. É o filme que encerrará o seu ciclo sobre a Shoah. Foi recebido em Cannes como um "grande filme histórico".

 

Um dos temas de interesse é o facto de tocar o segundo ponto da polémica sobre o livro de Arendt: a crítica à passividade das comunidades judaicas europeias e à colaboração dos conselhos judaicos com os nazis. Arendt foi acusada de culpar os judeus pelo seu extermínio. Uma capa do Nouvel Observateur, em 1966, titulava:

 

"Hannah Arendt é nazi?" Eram acusações delirantes a que Arendt respondeu na época: "Não havia possibilidade de resistir, mas havia uma possibilidade de não fazer nada." De resto, a sua posição sempre foi clara: "Quando se é atacado na qualidade de judeu, é enquanto judeu que ele se deve defender."

 

Lanzmann é o paladino actual dos críticos de Arendt. Le Dernier des Injustes é em parte uma crítica a Eichmann em Jerusalém, sobre a "banalidade do mal" e sobre o papel dos conselhos judaicos. Lanzmann começou a sua obra sobre a Shoah, em 1975, o ano em que Arendt morreu.

 

A interrogação, essa permanece: o que é o mal, o do nosso tempo?

 

 Jorge Almeida Fernandes

 

 

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