Foi em Cascais, na praia do «Palm Beach» (oficialmente chamada «da Duquesa»), que certa manhã a minha mãe me disse que o João Gaspar Simões tinha ido para um toldo lá na outra ponta porque ali havia muitas crianças barulhentas. Eu nunca me tive por barulhento e ainda hoje faço um esforço para identificar as outras crianças que, comigo, poderiam incomodá-lo.
Passados mais de 60 anos sobre a ocorrência, confesso finalmente que fiquei ofendido com a atitude do «velho safado» (que à época era certamente mais novo do que eu sou hoje). Admito que fosse uma prima minha que fazia uma ou outra birra mas fica a dúvida para esclarecimento no além pois tanto a possível origem do incómodo (é claro que, estando uma prima envolvida na situação, evitei o adjectivo «putativa») como o incomodado já lá estão na eternidade. Eles que se esclareçam por lá.
E foi na minha ofensa que passou a haver outra coisa a dar-me voltas na cabeça como enigma indecifrável e que ainda hoje tem alguns resquícios por explicar: como é que um homem podia estar ali, na praia, em vez de a trabalhar?
Licenciado em Direito, nunca exerceu a profissão jurídica e sempre se dedicou às letras. Ficou conhecido como crítico literário mais do que como autor. E para se ser crítico literário, há que ler as obras a criticar. Fica explicado o meu mistério se admitirmos que a praia até nem é mau sítio para se ler um livro. E se o livro for mesmo bom, a praia até pode não ser grande «coisa» - como a do «Palm Beach» - e serve na mesma para a boa leitura.
Os resquícios que ainda hoje tenho por explicar têm apenas a ver com a questão de saber como se consegue sobreviver em Portugal como profissional de crítica literária. Mas como essa perspectiva na vida de João Gaspar Simões nunca foi «conta do meu rosário», posso deixar a questão na situação inexplicada em que actualmente se mantém e dormir sossegadamente.
Mas ler um livro por prazer na praia é coisa bem diferente de ler obra que se tenciona criticar profissionalmente. E aí, então, entra uma outra questão para mim totalmente inexplicável que é idêntica à daqueles que estudam nos cafés e que, de tão habituados, já não se conseguem concentrar sem o ruído de fundo típico duma pastelaria ou estabelecimento equivalente.
Posso admitir que frequentem aqueles cursos que dão passagem directa para o desemprego mas duvido que cursos a sério possam ser estudados nos cafés, pastelarias, bordéis ou estádios de futebol.
Portanto, também a crítica literária me parece «coisa» séria de mais para se poder fundamentar em leituras de praia com a minha prima a fazer ou não birras nas cercanias. Fica João Gaspar Simões perdoado da ofensa que me infligiu mas eu fico com sérias dúvidas que a praia do «Palm Beach» possa servir de cenário a trabalho intelectual de monta. A menos que ele estivesse de férias e a ler «Tios Patinhas». Estaria? Duvido.
Foi muitos anos mais tarde que li trabalhos de João Gaspar Simões e também ele me ajudou numa faceta para que o meu Avô já me alertara: na literatura, o estilo é bem mais interessante do que a história contada. Por outras palavras: a forma literária é que conta!
É fantástico que alguém dedique a vida inteira à análise da forma literária de obras alheias esquecendo-se de si próprio como potencial autor. Tenho a certeza de que ele próprio se consideraria «mais um escritor» enquanto todos nós sabemos que João Gaspar Simões foi o grande crítico literário português do século XX e que dos seus trabalhos, diz quem sabe, se extrai doutrina.
Mas continuo na minha: nos locais de veraneio ou devaneio não se estuda!
Título: Cartas de Fernando Pessoa a João Gaspar Simões
Autor: João Gaspar Simões
Editores: Publicações Europa-América
Edição: Março de 1957
Sim, leu bem, o livro foi mesmo publicado em 1957 e descobri-o há meia dúzia de anos no processo de encerramento da casa dos meus pais. Deve ter sido o meu tio, o escritor Branquinho da Fonseca, que o ofereceu ao irmão, o meu pai, que era engenheiro aeronáutico e pouco dado a poesias. Só quando se reformou é que se dedicou à História. Ao fim destes anos todos tive que abrir o livro com uma faca pois nunca tinha sido folheado, por certo passando despercebido à minha mãe que tanto lia como método de estimulação dos neurónios – ela própria o dizia – naturalmente enferrujados pela estupidificante ocupação de dona de casa.
O meu tio era amigo do João Gaspar Simões e no relacionamento pessoal não ficaram sequelas da polémica que tiveram no âmbito da Presença. Continuaram a relacionar-se até que um deles morreu e como ambos viviam em Cascais, o relacionamento estendia-se às duas famílias com a naturalidade de quem se aprecia mutuamente.
Infelizmente, eu era muito novo (como cronologicamente me competia) e não tinha maturidade para entender as conversas deles. Mas tenho-a hoje e tento remediar o irremediável lendo as obras de cada um. Uma das conversas que maior pena me faz hoje não ter então entendido foi a que se passou à minha frente num jantar que os meus tios ofereceram ao Jorge Amado e Zélia Gattai, ao João Gaspar Simões e mulher, a D. Mécia que era muito amiga da minha tia. O meu avô, Tomás da Fonseca, também estava presente pois tanto ele como eu passávamos algumas temporadas na casa dos meus tios na Malveira (a de Cascais, não a dos bois), ele para este tipo de relações literárias e eu para deambular por Cascais enquanto a minha família directa não abria a casa de Verão perto da Cidadela, frente à baía.
O meu avô e eu acompanhávamo-nos muito e ele teve uma enorme influência no processo de formação do meu pensamento. Os meus primos não estavam presentes por qualquer razão que não recordo e eu deixei-me ficar calado num canto da mesa a tentar entender tudo o que de facto me escapou. E do que naquele jantar foi dito só me lembro duma risota geral por causa do conceito de que «o mundo é a casa dos homens e a casa é o mundo das mulheres». Dos presentes no jantar só a escritora brasileira e eu somos hoje vivos mas, tendo ela mais de 90 anos, não deve ter paciência para recordar o que foi conversado durante aquele encontro. Assim se perde uma conversa que deve ter sido interessantíssima. Paciência, o que não tem remédio remediado está.
Eu diria que aqueles cuja conversa não entendi eram pessoas que não andavam por cá para se limitarem a consumir oxigénio. Fernando Pessoa tinha uma expressão bastante melhor para referir os outros, os estéreis de ideias: «cadáveres adiados que procriam» (pág. 28 op. cit.).
Explicado o contexto familiar em que o livro me chegou às mãos, colhe referir por absurdo um conselho que Fernando Pessoa dá a João Gaspar Simões na carta que lhe escreveu em 3 de Dezembro de 1931 citando um diplomata francês que não identifica: “Nunca explicar, nunca se desculpar, nunca se arrepender” (pág. 89). Parece que João Gaspar Simões tentara justificar uma crítica que fizera na Presença a uns poemas de Pessoa[1] e que este aceitara lindamente apesar de logo de seguida dizer que não concordava com ela.
Mas não estando nós habituados a ler prosa de Fernando Pessoa, estas cartas foram para mim uma revelação completa e admito que também o pudessem ser para os eruditos se esses lhes tivessem acesso: mais do que o conteúdo que nalgumas é meramente comercial mas sobretudo pelo estilo da escrita corrente de um homem a quem as ideias se formavam mais rapidamente do que a máquina conseguia escrever. Lembrou-me Kant que numa só frase inclui tantos conceitos que é necessário recorrermos a vírgulas, travessões e parênteses – que nem sempre lá estão e que por vezes estão em lugares por que não esperávamos – para decompormos temas e ideias.
A propósito do livro O Mistério da Poesia que João Gaspar Simões pedira a Fernando Pessoa para criticar, diz este a certa altura, a propósito da preocupação explicativa do autor: (…) O Gaspar Simões cresceu mentalmente – cresce-se mentalmente até aos 45 anos – e está atravessando uma fase de uma doença de crescimento. Sente a necessidade de se explicar mais, e mais profundamente, do que fez em “Temas”, mas, em parte, não atingiu ainda o comando dos meios deaprofundamento, e, em parte, busca aprofundar pontos da alma humana que não haverá nunca meios para aprofundar. De aí – sempre, a meu ver – o que de febril, de precipitado, de ofegante estorva a lucidez substancial de certas observações, e priva outras, centralmente, de lucidez.
À parte o que vejo nisto de uma simples manifestação de evolução íntima, creio que se entrega um pouco mais do que deveria às influências e sugestões do meio intelectual europeu, com todas as suas teorias proclamando-se ciência, com todos os seus talentos e hábeis proclamando-se e proclamados génios. Não o acuso de não ver isto; na sua idade nunca isto se vê. Pasmo hoje – pasmo com horror – do que admirei – sincera e inteligentemente – até aos 30 anos, no passado e no (então) presente da literatura internacional. Comigo isto deu-se tanto com a literatura como com a política. Pasmo hoje, com vergonha inútil (e por isso injusta) de quanto admirei a democracia e nela cri, de quanto julguei que valia a pena fazer um esforço para bem da entidade inexistente chamado «o povo», de quão sinceramente, e sem estupidez, supus que à palavra «humanidade» correspondia uma significação sociológica, e não a simples acepção biológica de «espécie humana. (…)» (pág. 92 e seg.)
E para meu espanto, daqui passa a uma análise social de inspiração freudiana que acusa de ser causa de grandes desvirtuamentos do comportamento das gentes: (…) Isto dá azo a que se possam escrever, a título de obras de ciência (que por vezes, de facto, são), livros absolutamente obscenos, e que se possam «interpretar» (em geral sem razão nenhuma crítica) artistas e escritores passados e presentes num sentido degradante e Brasileira do Chiado assim ministrando masturbações psíquicas à vasta rede de onanismos de que parece formar-se a mentalidade civilizacional contemporânea. (…)»
Para além desta, há no livro várias referências ao espírito degradante e mesquinho dos frequentadores habituais da Brasileira do Chiado, instituição que por isso mesmo o poeta abominava. Não deixa de ser uma verdadeira fatalidade que a Câmara Municipal de Lisboa tenha escolhido essa esplanada para colocar a estátua de Fernando Pessoa. Mas, apesar disso, mais vale que esteja ali do que em lado nenhum. E se abstrairmos desta confissão que ele faz sem adivinhar que as cartas viriam a ser publicadas, então podemos achar que a estátua está ali muito bem. E também julgo da mais elementar justiça dizer que gosto da estátua.
A propósito de Mário de Sá Carneiro, diz: (…) A obra de Sá Carneiro é toda ela atravessada por uma íntima desumanidade, ou, melhor, inumanidade: não tem calor humano nem ternura humana, excepto a introvertida. Sabe porquê? Porque ele perdeu a mãe quando tinha dois anos e não conheceu nunca o carinho materno. Verifiquei sempre que os amadrastados da vida são falhos de ternura, sejam artistas, sejam simples homens; seja porque a mãe lhes falhasse por morte, seja porque lhes falhasse por frieza ou afastamento. Há uma diferença: os a quem a mãe faltou por morte (a não ser que sejam secos de índole, como o não era Sá Carneiro) viram sobre si mesmos a ternura própria, numa substituição de si mesmos à mãe incógnita; os a quem a mãe faltou por frieza perdem a ternura que tivessem e (salvo se são génios da ternura) resultam cínicos implacáveis, filhos monstruosos do amor natal que se lhes negou.» (pág. 99)
E mais não digo para ver se provoco algum sentido de falta em quem me lê. Pode ser que daí resulte algum movimento para a reedição deste livro que há décadas se deve encontrar esgotado. Até pode mesmo suceder que ocorra a feliz decisão de reeditar a obra desse grande homem de letras que foi João Gaspar Simões.
Lisboa, Fevereiro de 2008
Henrique Salles da Fonseca
[1] - Presença, nº 48 e posteriormente incluído no livro Novos Temas de João Gaspar Simões