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A bem da Nação

“ATÉ AGORA, TUDO BEM"

 

 

Vivemos hoje em Portugal uma das situações mais terríveis e perturbadoras da humanidade: a lenta gestação de uma catástrofe. No futuro, quando olharem para o nosso tempo, as pessoas terão muita dificuldade em entender a apatia nacional que conduziu ao colapso de 2017-2018. Nessa altura muitos perguntarão como foi possível tal cegueira, ignorando os verdadeiros problemas, até se cair na ruína? Nós temos a resposta a este terrível enigma em directo e ao vivo.

 

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Os sinais de crescente desequilíbrio são gritantes há muito: banca e economia descapitalizadas, crescimento empatado, orçamento deficitário. Se hoje tomássemos a situação a sério, a cura ainda seria longa, dolorosa e incerta. Em vez de tentar, o governo prefere fingir que está tudo bem, garantindo que a austeridade acabou. Enquanto houver quem acredite, os desequilíbrios crescentes podem ir passando ao lado das preocupações ministeriais. Aquilo que ocupa as atenções mediáticas são projectos espúrios, polémicas tolas, planos mirabolantes, enquanto a tragédia cresce. Como em tantas calamidades antigas, a ilusão irresponsável das autoridades é boa parte da desgraça. No meio desta situação sumamente delicada e dramaticamente decisiva apenas um dos partidos que apoia o governo parece saber aquilo que quer, e isso pouco tem que ver com o interesse nacional.

 

O Partido Socialista, que já foi um dos pilares centrais da democracia, transformou-se no catavento do regime. Já esteve no poder com o CDS em 1978, com o PSD em 1983-85 e agora é apoiado pelo PCP, BE, PEV e PAN. A única orientação que mantinha, ser um partido democrático e europeísta sem relações com forças anticapitalistas e anticomunitárias, foi precisamente aquilo que António Costa desprezou para chegar a primeiro-ministro. Agora é evidente que o partido está disposto a tudo para conseguir sugar as delícias do poder. Devido a esta toxicodependência encontra-se na abjecta posição de pagador de promessas e feitor do caderno de encargos que a esquerda lhe impôs.

 

O Bloco de Esquerda, na boa tradição do newspeak do Big Brother orwelliano, onde as palavras invertem o sentido, é precisamente o oposto de um bloco. Amálgama de orientações diferentes, ainda consegue ser mais desorientada que o PS. Todas essas linhas só se unem na aversão, quando se trata de criticar, condenar e ridicularizar. Não admira que tenham dificuldade em dar contributos positivos.

 

Desde Novembro, tendo influência no poder, não conseguem apresentar ideias relevantes. Para lá das questões do baixo-ventre, onde gostam de se especializar, destacaram-se apenas na proposta de mudar o nome do "cartão de cidadão" para "cartão de cidadania", o que certamente evitaria graves melindres.

 

O PCP é um fenómeno político especial, o único partido estalinista ocidental com alguma relevância. Este sucesso deve-se a uma linha muito simples, seguida com rigor e persistência. O partido conseguiu resistir à derrocada soviética e a todas as impressionantes mudanças sociais das últimas décadas porque se transformou numa força corporativa.

 

Através da Intersindical, o PCP serve para proteger os interesses de funcionários e serviços públicos. Ironia do destino, os comunistas viraram salazaristas. Mas assim são os únicos que nesta conjuntura sabem aquilo que querem, sendo quem está por detrás das únicas medidas marcantes do governo, da recompra da TAP às 35 horas do funcionalismo, passando pelo encerramento dos colégios privados. O PCP é o único claro vencedor da conjuntura.

 

Com cada uma das forças governamentais perdida no seu labirinto, a sociedade portuguesa está ao abandono, com os desequilíbrios a inchar. Tal como no governo de José Sócrates, a ilusão vai manter-se até ao colapso final. Só então vão cair os mitos e se tomarão as medidas desesperadas. Nessa altura as culpas da situação serão atribuídas à crise mundial, Europa, austeridade, exploração capitalista; a todos menos aos governantes que, quando ainda havia alguma coisa a fazer, ignoraram as dificuldades, envolvidos que estavam nas suas intrigas e projectos.

 

A 15 de Maio de 2006, escrevi neste jornal: «Portugal está como o homem que caiu do arranha-céus e quando, a meio da descida, um amigo da janela lhe pergunta como está, ele responde: "Até agora, tudo bem!"». Nestes dez anos o país já bateu no fundo, já se levantou e está de novo a cair. No Congresso do Partido Socialista, a mensagem de António Costa foi: "Até agora, tudo bem". Só que desta vez a queda será mais curta pois o fundo está mais perto.

 

Junho de 2016

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João César das Neves

DINHEIRO NÃO É CAPITAL

 

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"Em Portugal não há capital". A frase do banqueiro José Maria Ricciardi ao Expresso do passado dia 25 é uma das mais importantes afirmações sobre a economia portuguesa. Só se entende o que se passou e vai passar por cá quem souber que aqui não há capital. Infelizmente muitos, mesmo em posições de topo, ignoram ou tentam esconder esta realidade.

 

A economia cresce pouco ou nada porque não há capital. O país está à venda e as pessoas emigram porque não há capital. Os bancos andam anémicos, a dívida é enorme e as contas públicas não equilibram simplesmente porque não há capital. Isto é assim há décadas. Agora temos um Governo que não gosta do capital, mas já antes não havia. Todos os sintomas que vemos à nossa volta mostram a falta de capital e todas as descrições da nossa crise são formas diferentes de constatar essa ausência.

 

Por que razão não há capital? Não é por sermos um país pobre; primeiro porque não somos e segundo porque quando éramos tínhamos mais capital do que agora. Não há capital por duas razões. A primeira é que o povo não poupa. A taxa de poupança das famílias portuguesas, que no final do ano passado estava em 4,1%, situa-se no registo mais baixo da nossa história e um dos valores mínimos da União Europeia; cerca de um terço dos países com os quais gostamos de nos comparar. Sem ovos não se fazem omeletas, e esta razão chega e sobra para que em Portugal não haja capital. O nosso país, que há duas gerações era campeão mundial da poupança, mudou de hábitos e gasta o que tem e o que não tem, sem pensar no futuro. Assim não pode haver capital.

 

É crucial notar que esta razão, de longe a mais importante, nada tem a ver com políticos, empresários ou banqueiros. É o povo, todo o povo, que toma uma atitude de consumidor e devedor em vez de aforrador e investidor.

 

Existe outro motivo para a nossa situação, que tem a ver com o mau uso do pouco capital que temos. Aí podemos assacar culpas a governos envolvidos em despesas improdutivas, banqueiros que emprestaram a projectos tontos ou especulativos e empresários sem visão ou capacidade. Esses, que tantos acusam dos nossos males, são justamente condenados, mas não constituem o elemento determinante que, de algum modo, está também por detrás deles. Porque foram as populações perdulárias que elegeram e apoiaram os governos esbanjadores e eram clientes dos projectos vácuos de empresários incompetentes. A culpa de Portugal não ter capital é dos portugueses. Todos.

 

Quando não há poupança, a solução é usar crédito. Foi isso que as nossas empresas e famílias, além do governo, fizeram com afinco durante duas décadas, acumulando uma das maiores dívidas mundiais. Crédito parece, mas não é capital. Pode ser uma forma temporária de aceder a fundos que, aplicados de forma produtiva, venham a transformar-se em capital. Mas uma abundância acumulada com dívida tem um perigo evidente. Precisamente aquele que hoje nos assola.

 

Por que razão os portugueses não poupam? Com taxas de juro como as de hoje em dia não espanta que isso aconteça. Os valores miseráveis obtidos nas aplicações de fundos constituem uma vergonha que arruína aforradores, idosos, pensionistas e todos os que vivem do pé-de-meia que honestamente acumularam. No entanto, essas taxas são iguais em toda a Europa, que poupa muito mais do que nós. Além disso, a razão destes níveis doentios, em vários casos até já negativos, está na mesma atitude gastadora que dizimou a poupança. As taxas só estão baixas porque o Banco Central Europeu, contra a opinião da Alemanha parcimoniosa, tem andado a injectar quantidades gigantescas de dinheiro, precisamente para apoiar os países endividados.

 

Aqui aparece de novo a evidência de que dinheiro não é capital. Essa liquidez pode aliviar temporariamente a factura dos devedores, como o Estado português, mas não se transforma em recursos produtivos que gerem crescimento e resolvam a crise. Pelo contrário, serve, quando muito, de anestesia local, mas com o enorme custo de desincentivar a poupança e estrangular a rentabilidade dos bancos. Não é fácil que este clima de taxas de juro ínfimas seja propício ao crescimento sólido e saudável que Portugal e a Europa precisam para vencer definitivamente a crise.

 

Portugal não tem capital porque viveu vinte anos acima das posses. É verdade que em 2008 isso acabou. Desde então anda a apertar o cinto e a vender o capital ao estrangeiro para pagar as contas. Essa austeridade é necessária, mas não é solução. Enquanto a poupança continuar a descer, a situação vai-se agravando.

 

 

31 de Março de 2016

 

 

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João César das Neves

 

TITANIC

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  https://www.youtube.com/watch?v=EV-C2zKWW0k

 

 

O navio da economia portuguesa chocou com um icebergue em 2008. Há anos que eram evidentes os perigos de navegar em águas de endividamento, coalhadas de credores gélidos, mas até ao desastre ninguém no país parecia dar atenção. Aliás, mesmo após o choque, que arrombou o casco em mais de 10%, o capitão andou dois anos a dizer que o problema era controlável. Só em Abril de 2011, com o navio já adornado, se assumiu a emergência.

 

Nessa altura o afundamento estava iminente. Foi preciso ligar a embarcação a um enorme flutuador de 78 mil milhões e instalar bombas potentíssimas para começar a extrair a imensa quantidade de água que invadia as zonas inferiores. Mesmo com essa intervenção desesperada, durante meses permaneceu o risco de a economia ficar encalhada, como acontecia ao navio grego. A emergência exigiu largar muito lastro e alijar carga. Muita gente perdeu a ocupação, pela submersão dos locais onde trabalhava. Milhares de habitantes tiveram de ser deslocados para outros navios, num processo de emigração que não se via há décadas. A nau portuguesa enfrentou a maior crise desde a guerra.

 

Inicialmente a catástrofe centrou todas as atenções, absorvidas no complexo e perigoso processo de tapar o rombo e bombear a água. Apesar do sofrimento, a crise uniu os esforços nacionais. Tripulantes e passageiros, sob enorme pressão, fizeram o que tinham de fazer: suportaram cortes, perda de bagagem e apertos nas instalações, enfrentaram desemprego, evacuação, ferimentos e os inúmeros encargos necessários à salvação do navio. Naturalmente houve queixas e protestos, mas foram poucos, esparsos e moderados. A unidade nacional, mesmo renitente, foi notável.

 

Ao fim de três anos foi possível retirar o flutuador, pois o navio, ainda com um rombo de mais de 4%, o dobro do previsto, já se conseguia aguentar sem apoios. Mas os problemas continuavam assustadores, mesmo com as taxas de juro na região geladas pela política do BCE. Não só a brecha exterior permanecia como o embate no icebergue criara outras rachas na estrutura do navio, que o tempo viria a revelar. Dias após a retirada do flutuador, cedeu um dos vaus centrais da embarcação, conhecido como BES, o que reabriu o rasgão no casco e implicou novas fatalidades. Certas partes da carcaça ameaçavam ruptura, forçando até uma intervenção na viga do Banif.

 

Um outro problema, menos visível, era ainda mais assustador. Devido à necessidade de deslocar passageiros das zonas alagadas, os tanques de combustível começaram a ser usados como camarotes. De facto, para aliviar o peso sem largar carga, muito combustível fora deitado ao mar. Assim a mistura de poupança e investimento que impulsionava a embarcação viu-se reduzida a níveis críticos, o que permitia pouco mais do que navegação de cabotagem.

 

A fragilidade do navio era tal que a menor tempestade seria fatal. E as nuvens negras acumulavam-se na região... Apesar disso, a retirada do flutuador mudou a atitude e minou a unidade anterior. Cada vez mais dominava a voz daquela elite que inicialmente negara o rombo e depois conseguira, com a sua oposição, evitar várias das medidas de ajustamento. Recusara sempre o alijamento de carga e cortes na tripulação, protestando contra qualquer incómodo dos passageiros e até com o ruído das bombas de água. O trabalho para tapar o rombo era considerado uma mera imposição externa.

 

Este é o aspecto mais bizarro dessa posição: como nunca atenderam ao buraco no casco, à falta de combustível, rachas na estrutura e perigo de afundamento do navio, os sacrifícios pareciam-lhes meros caprichos, impostos pelas regras da frota e totalmente alheios ao interesse nacional. Por isso ficavam irritados quando se dizia que, devido à brecha e ao peso da água, não existia alternativa à austeridade. Nunca chegavam a explicar qual era, afinal, a sua opção credível e viável de flutuação, mas enfurecia-os a afirmação de que o risco de afogamento não deixava escolhas.

 

Em 2015 essa elite conseguiu controlar a escolha do novo capitão, prometendo acabar com a crise e retomar a navegação de longo curso. As suas prioridades eram repor feriados, baixar preços nos restaurantes, redecorar camarotes de funcionários e pensionistas e fazer umas obras de beneficiação no convés. Precisamente nessa altura aproximava-se uma terrível tempestade na região, que punha todos os navios de sobreaviso. Mas, tal como em 2008, este capitão assegurava que o problema era controlável. O importante é aumentar o consumo, reduzir os preços dos restaurantes e retomar a festa.

 

18 de Fevereiro de 2016

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 João César das Neves

A DANÇA DA POUPANÇA

 

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As recentes derrocadas bancárias têm compreensivelmente assustado a população. Muitos viram as poupanças evaporar-se; muitos mais temem pelas suas. Que se passa? Que há a fazer? As respostas são simples, mesmo se debates e controvérsias baralham tudo.

 

Portugal sofre uma forte crise financeira. Com os bancos na base do sistema creditício, um colapso destes coloca-os no centro das dificuldades. Défice público, endividamento das famílias ou descapitalização das empresas, tudo envolve sempre a banca. Esta limita-se a ser o bengaleiro dessas dívidas, desmoronando quando elas explodem.

 

Esta explicação, pacífica até há semanas, é hoje oficialmente recusada pelos actuais dirigentes. O governo rejeita que o país tenha "vivido acima das suas posses", atribuindo a crise ao cavaquismo e à austeridade. Por isso, apesar de óbvio, é preciso repetir que défices e consequente aumento de dívidas, que ninguém pode negar, significam apenas que se gasta mais do que se recebe. Isso na expressão popular é viver acima das posses. Foi essa a condição global do país de 1994 a 2012, visível na balança externa, e ainda é a situação do Estado.

 

Claro que houve roubos, desvios e má gestão política e empresarial, mas esses percalços, mesmo dominando a atenção mediática, são laterais ao assunto. O país todo está há 20 anos a reduzir a poupança, e isso chega para explicar a situação. A maior factura não foi em luxos e loucuras, mas salários, pensões, infraestruturas e serviços públicos, de que todos beneficiámos. A crise é nossa, não há volta a dar-lhe.

 

Que fazer quando as dívidas pesam? As respostas são variadas. Às vezes, sentar-se e esperar que passe funciona bem. Aliás foi isso que nos livrou do sarilho anterior. Após 1974 as dificuldades bancárias também eram enormes. Só que em vez de repudiar dívidas, resolver bancos ou vender ao estrangeiro preferiu disfarçar-se e dar tempo ao tempo. Dessa vez tivemos sorte: o grande crescimento após a entrada na CEE foi suficiente para tapar os buracos e acabou tudo bem.

 

Seguindo essa lição, desta vez as autoridades também adoptaram uma estratégia paciente. Pelo menos do nosso lado do Atlântico. Nos EUA, após a crise, fez-se uma auditoria rigorosa (stress-test) em 2009 que pôs a nu as dificuldades. Foi muito caro, mas a confiança recuperou e, embora combalida pela dimensão do choque, a economia retomou a dinâmica. Na Europa preferiu-se a ambiguidade e a tolerância. As sucessivas auditorias só recentemente começaram a convencer e por isso as más surpresas continuam a rebentar, sete anos após o colapso.

 

O caso português é paradigmático. É espantoso que seja depois da suposta "saída limpa" do programa de ajustamento que se sucedam as derrocadas bancárias. Pior, a situação parece envolvida num surdo mas implacável deslize. Sem crescimento sólido, as empresas recuperam mal ou tarde. As dívidas, sempre adiadas, agravam-se em vez de melhorar. As veementes garantias dos responsáveis perdem credibilidade.

 

Esperar que os problemas se resolvam funciona às vezes, mas negar as dificuldades é sempre um disparate. O actual governo anda apostado em propor exactamente o contrário do que devia. Claro que não o poderá cumprir, mas mesmo assim os estragos serão consideráveis.

 

Sugerir estimular o consumo para obter crescimento é uma ideia de quem não conhece a situação nacional. Com a taxa de poupança das famílias em 4% e o investimento em 15% do produto, os registos mais baixos da história de Portugal, o mal do consumo é excesso, não falta de estímulo. Logo que a economia começou a tímida recuperação os portugueses voltaram ao despesismo improdutivo. Assim, as políticas de aumentos de rendimentos, pensões e salários só servirão para subir impostos, reduzir lucros e, portanto, atrasar o crescimento.

 

Também reverter privatizações ou concessões e castigar os aforradores institucionais significa atacar os poucos incautos, nacionais ou estrangeiros, que decidem investir em Portugal. Esta é a melhor forma de assinalar ao mundo que não somos um país de futuro. Costa tem menos condições do que Barroso ou Sócrates, que prometeram mas não conseguiram crescimento.

 

Durante anos as nossas poupanças dançaram à volta das cadeiras, que eram poucas. Em 2008 a música parou e desde então muitos se têm encontrado sem assento, simplesmente porque não há. Agora, a orientação antiausteridade do governo promete uma nova fase. Por enquanto a única novidade foi convidar à dança, mas sem mais cadeiras. Isso só nos aproxima do próximo colapso.

 

7 de Janeiro de 2016

 

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João César das Neves

A RATOEIRA

 

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A situação económica nacional parece uma armadilha montada para caçar o próximo Governo. Apesar disso, a atracção pelo poder é tal, que todos os partidos se atropelam para entrar na ratoeira. A insólita circunstância deve mais ao acaso do que ao planeamento, mas o resultado é iniludível.

 

Comecemos pelo queijo que atrai a vítima incauta. A situação conjuntural mostra-se promissora. A economia cresce há dois anos e o país saiu com sucesso do programa de estabilização há um; a balança externa é positiva e o défice orçamental aproxima-se dos requisitos europeus. Tudo aponta para uma época favorável, aproveitando os próximos governantes os sacrifícios impostos pelos anteriores.

 

O petisco, porém, é mero engodo, pois os sinais positivos são em grande medida aparentes. A realidade é muito diferente da imagem que a coligação PSD-CDS usou como bandeira nas últimas eleições, e que lhe deu a vitória. Há várias bombas retardadas que gerarão problemas graves nos próximos tempos, exigindo medidas duras.

 

O crescimento não é suficiente ou sequer sustentável. O desemprego continua altíssimo e perdeu a dinâmica de descida, enquanto o investimento se recusa a atingir um nível decente. No Orçamento, depois de tanto esforço, atingiu-se apenas o limite máximo do intervalo permitido. Pior, a indiscutível redução do défice foi conseguida sobretudo à custa de medidas contingentes e temporárias, com poucas reformas na máquina. Preferiram-se cortes em salários e pensões, que na campanha todos os candidatos se propuseram eliminar. Por isso a tão falada consolidação orçamental está ainda muito longe. Por sua vez, o lado privado da situação financeira não é mais favorável. As empresas continuam descapitalizadas, os bancos permanecem frágeis e a taxa de poupança das famílias encontra-se no mínimo histórico. A conjuntura só é boa se comparada com a anterior.

 

Dois elementos agravam o quadro periclitante. Primeiro, o cansaço da austeridade. O país, embora longe de ter suportado o ajustamento necessário, sente-se com o dever cumprido e merecedor de alívio. O segundo é a vontade explícita que todos os partidos manifestaram na campanha de lho conceder, prometendo tudo o que a ilusão exige.

 

Assim, qualquer Governo que resultar da negociação pós-eleitoral vai ficar mal, faça o que fizer. Se cumprir as promessas, verá a troika regressar em breve; se tiver juízo e proceder como a situação exige, é crucificado por engano aos eleitores. Esses não perdoarão o terrível choque quando a dureza da realidade for compreendida por um país mergulhado em ilusão. A surpresa será fatal para quem estiver no poder, que só então compreenderá ter caído numa armadilha.

 

A culpa da ratoeira é do anterior executivo, que mostrou incapacidade para realizar reformas verdadeiramente sólidas e duradouras. Mas a esquerda não se pode dizer inocente, pois sempre negou a emergência nacional e foi-se opondo violentamente até às tímidas medidas ensaiadas.

 

Se a Coligação PSD-CDS se mantiver no poder, haverá uma certa justiça poética, sofrendo ela as consequências da sua timidez reformista. Mas a situação mais irónica é a de um Governo do PS. Presidindo ao longo desequilíbrio que precipitou a crise e vendo-se forçado a pedir ajuda externa, esteve na oposição durante a execução da austeridade. Então fingiu hipocritamente opor-se às medidas indispensáveis. Agora, com a limpeza feita, quer regressar para beneficiar do equilíbrio arduamente conquistado. Não contava perder as eleições mas, emendando com a inesperada unidade à esquerda, mantém o plano de aproveitar o próximo surto de progresso.

 

Quando a expectativa se mostrar cruelmente falsa, o Governo anterior, agora na oposição, dirá credível mas hipocritamente que deixou o país em boas condições, pelo que a culpa dos sofrimentos, realmente inevitáveis, cabe toda à liderança de esquerda. A qual, por sua vez, carrega dois problemas adicionais. O primeiro é a falta de credibilidade junto de mercados e parceiros, seja pela sua aberrante composição ideológica seja pelas promessas ilusórias que insiste em apregoar. O segundo é que António Costa tem de enfrentar todas as dificuldades enquanto executa um número de verdadeiro malabarismo político. Precisa de, com as duas mãos, manter no ar, sem nunca se tocarem, pelo menos quatro bolas: PCP, BE, ala esquerda e ala direita do PS, os inimigos mais irredutíveis da política portuguesa.

 

Por ilusão do povo e cobiça política, estamos a entrar num período de surpresa e desilusão, até a troika voltar com maioria absoluta.

 

Outubro de 2015

 

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O FENÓMENO VAROUFAKIS

 

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O mundo da política orçamental é vasto e complexo, incluindo muitos casos estranhos e aberrantes. Mas, até nessa companhia bizarra, o grego Yanis Varoufakis, no cargo de 27 de Janeiro a 6 de Julho, destaca-se como o pior e o mais bem-sucedido ministro das Finanças da história mundial recente. Em menos de seis meses conseguiu transformar uma situação desesperada numa catástrofe, enquanto se promovia da obscuridade ao estrelato.

 

Antes de mais, foi um ministro das Finanças muito popular, o que é inaudito. A função, nas suas características próprias, impõe incómodos e gera ódios. Quem se encarrega de nos tributar pode ser respeitado, temido, admirado, mas raramente é amado e celebrado. Varoufakis, mais conhecido pelo cachecol do que pelo défice, povoou magazines e revistas de moda.

 

Além disso era um académico numa função política, situação comum mas sempre ambígua. Recorrentemente tentada, costuma ser um fiasco por razões óbvias: os universitários tendem a ser tecnicamente bons mas politicamente inaptos, produzindo soluções elegantes mas impopulares. Neste caso, porém, a situação foi paradoxalmente inversa.

 

Yanis Varoufakis, doutorado em 1987 em Essex, na Grã-Bretanha, é professor catedrático na Universidade de Atenas desde 2006. Só que, especializado em Teoria dos Jogos, não domina as delicadas questões de finanças públicas e política orçamental. Aliás, não se lhe viu qualquer contributo, original ou outro. Desde o início, porém, revelou uma intensa atitude política, sentindo-se à vontade nas elaborações retóricas e nos debates parlamentares. Parecia um antipolítico-académico. No fim, o que o destruiu não foi qualquer destas duas dimensões, mas uma falha no elementar bom senso.

 

Tomou posse numa das mais terríveis crises que o mundo desenvolvido assistiu. Se isso impõe brutais sacrifícios, na população tem, ao menos, a vantagem de ser uma doença simples e elementar, com tratamento evidente. Havia alternativas limitadas e o essencial era óbvio para qualquer pessoa medianamente inteligente. Evitar a ruptura financeira, que geraria um colapso bancário e as consequentes derrocada produtiva e calamidade social, ainda piores do que as já verificadas, exigia garantir financiamento exterior. Só assim o país poderia estancar o pânico dos agentes económicos internos e externos, para depois começar o longo caminho de recuperação da confiança.

 

A tarefa era hercúlea, mas o Syriza tinha também condições únicas para a realizar: forte apoio popular nacional e internacional e os parceiros da União numa posição defensiva, devido à evidente desgraça já infligida à Grécia. Era patente que toda a gente desejava o maior sucesso ao rebelde governo helénico.

 

Nesta circunstância-limite havia algo a evitar a todo o custo: arrogância, pedantismo e dissipação. Insulto e desafio em condições assim, por muito que apeteça, são atitudes estúpidas. Quando se vai pedir muitos milhares de milhões a outros países, aliás também em crise, convém mostrar solidariedade, empenho, compreensão. Varoufakis fez exactamente o oposto do que devia: desdenhou negociações, iludiu propostas concretas e construtivas, limitando-se a barafustar.

É verdade que ele tinha bastante razão. A Europa cometera erros graves na Grécia, e sabia-o. Ao fim de tantos anos, o horror a que os gregos tinham chegado enfraquecia a posição dos duros, que exigiam a continuação da austeridade. Também para a União a atitude mais inteligente era benevolência, cooperação e apoio. Este ambiente favorável foi totalmente subvertido pela atitude tola, pretensiosa e ridícula do ministro grego, que legitimou os críticos enquanto debilitava os argumentos dos defensores de um alívio. No final, tendo prometido que se demitiria se perdesse o referendo de 5 de Julho, acabou por ser forçado a abdicar apesar de ter ganho.

 

O balanço do episódio é deplorável. Para o povo grego, o mandato de Varoufakis significou a explosão de uma situação já terrível. Bancos fechados, limites de pagamentos, ausência de crédito e bloqueios nas importações, além de tumulto e vexame logo na abertura da decisiva época turística. O governo do Syriza tem agora a missão impossível de aplicar um acordo pior do que aquele que recebeu mandato para rejeitar. Na Europa, o resultado foi devastador, com ruptura da confiança, acordos ilusórios e falta de perspectivas credíveis de união. Uma só pessoa beneficiou com tudo isto: Yanis Varoufakis, coqueluche mediática global que, agora sem responsabilidades, pontifica como guru da esquerda internacional. Parabéns!

29 de Julho de 2015

 

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João César das Neves

UM TSIPRAS ALTERNATIVO

 

 

 

Numa profunda crise, que mudou o panorama político, chegou à chefia do governo um pequeno movimento da extrema-esquerda. O executivo durou meses, mas o primeiro-ministro, entretanto expulso do partido que fundara, lideraria durante anos um governo de unidade nacional apoiado pela direita. Alexis Tsipras na Grécia actual? Não, Ramsay MacDonald na Grã-Bretanha há mais de 80 anos.

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Temos sempre a sensação de viver situações inéditas e dramáticas, mas, apesar das inevitáveis diferenças, os paralelos históricos ajudam a entender a realidade e, sobretudo, evitar pânicos e acalmar nervosismos.

 

A Grécia vive situação trágica, com desemprego de 27% e queda acumulada do produto acima de 25%. Apesar de devastadora, a conjuntura é muito melhor do que aquela que a generalidade dos países europeus sofria há cem anos. Hoje, no tempo dos telemóveis e das redes sociais, fazemos um drama por coisas que não impressionariam os nossos bisavôs. O mundo acabava de sair da Grande Guerra, o confronto mais mortífero de que havia memória. A confusão era geral na Europa, com reviravoltas no espectro político. Até na sofisticada Albion os acontecimentos ofuscam a presente situação helénica.

 

O Parlamento britânico era há décadas dominado estavelmente por dois grandes partidos, Conservador (torie) e Liberal (whig). Logo nas eleições de 14 de Dezembro de 1918 ganhou notoriedade uma formação extremista ligada aos sindicatos, o pequeno Partido Trabalhista (labour). Fundado em 1900, nunca atingira os 8% dos votos até, inesperadamente, saltar em 1918 para 20,9% e 30,5% em 1923. Esta evolução é muito mais rápida e expressiva do que a ascensão de qualquer dos extremistas actuais, que tanto tem excitado os nossos analistas. Por exemplo, a assustadora Frente Nacional francesa de Marine Le Pen teve 13,6% nas últimas legislativas, em 2012; o Syriza chegou ao poder na Grécia em 2014 com apenas 26,6% e o UK Independence Party, alegadamente revolucionário, só conseguiu 12,6% nas eleições gerais britânicas de Maio.

 

O sucesso trabalhista no pós-Primeira Guerra não foi pontual. Nessas eleições, de 6 de Dezembro de 1923, a formação ultrapassou o Partido Liberal para se afirmar definitivamente como uma das duas grandes forças políticas nacionais. Nascia há 92 anos o quadro que agora se diz ameaçado.

 

Embora eleitoralmente atrás dos conservadores, os trabalhistas chefiaram então um executivo efémero e minoritário, de Janeiro a Novembro de 1924. O lugar de primeiro-ministro coube ao seu fundador, e líder desde 1922, James Ramsay MacDonald (1866-1937), inexperiente em funções executivas. O choque foi enorme, muito mais inesperado e perturbador do que qualquer coisa que hoje se veja na Europa. Operários a pisar os tapetes de Whitehall e Buckingham Palace era inconcebível!

 

A experiência foi curta, mas exorcizou fantasmas no Parlamento, no eleitorado e nos próprios trabalhistas. Nada como uma experiência de poder para incutir pragmatismo e bom senso político. Afinal, e apesar da retórica inflamada, os trabalhistas eram seres humanos como os outros, políticos normais que lidavam com os graves problemas nacionais como eles eram.

 

Cinco anos depois, a 29 de Junho de 1929, de novo em segundo lugar com 37% dos votos, o partido voltaria a formar governo minoritário, de novo com MacDonald à cabeça. Só que logo após o Verão dava-se o crash da bolsa e começava a Grande Depressão. O executivo esquerdista viu-se na necessidade de aplicar forte austeridade, extremamente controversa mesmo na equipa ministerial. Como na época não havia ajuda externa, a Grã-Bretanha suportou aquilo que os gregos hoje nem imaginam.

 

A contestação acabou por conduzir à demissão do governo em Agosto de 1931. Mas, a pedido do rei, MacDonald aceitou chefiar um gabinete de unidade nacional, com conservadores e liberais, que o manteria no poder de 24 de Agosto de 1931 a 7 de Junho de 1935. Acusado de traição pelos correligionários (como Tsipras, após o acordo com a UE), MacDonald seria expulso do seu partido, a 26 de Setembro, dias depois de tomar posse. O resultado foi a cisão dos trabalhistas, com o político a formar e liderar o seu segundo partido, o National Labour, dissolvido em 1945, dez anos após o fim do executivo e oito após a morte de MacDonald.

 

A lição desta comparação não é que os extremistas não são perigosos. Por essa altura, Adolf Hitler chegou ao poder com 33,1% nas eleições de 6 de Novembro de 1932. É antes que nos momentos de crise, que acontecem a todos, a diferença vem da solidez do tecido cultural e social.

 

22 de Julho de 2015

 

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João César das Neves

EQUÍVOCOS DE UMA PALAVRA

 

Austeridade.png

 

Quando muitos têm ideias claras em temas complexos, o simplismo domina as discussões. Se a crise económica da Europa é um problema que desafia análises sérias e deixa especialistas perplexos, como podem tantos achar a questão óbvia e a solução evidente?

 

Além de cegueira ideológica e aproveitamentos oportunistas, muitos dos mal-entendidos nascem da utilização inconsiderada da equívoca palavra "austeridade", à volta da qual roda o debate. Debaixo desta noção reuniu--se enorme quantidade de elementos, alguns díspares. Distorções e variantes permitem usar o mesmo termo para significar aspectos contraditórios, alimentando confusão e polémicas.

 

Qual é o significado exacto do conceito e qual a sua origem e impactos? Para entender o que está em causa temos de ir ao início do problema. Esta crise manifesta-se, como todos sabem, em défices e dívidas, após a longa euforia financeira. Ora isso significa apenas que se gastou mais do que se recebeu.

 

Aqui surge o primeiro sentido da palavra austeridade. Os tempos de facilidade, apesar de longos, eram ilusórios, alimentados com dinheiro alheio. Assim, mesmo que todo o esbanjamento anterior fosse esquecido e as dívidas perdoadas, só para ter uma vida sensata e evitar novos desequilíbrios, era preciso descer as despesas ao nível das receitas. Muitos dos cortes - aqueles que anulam o chamado "défice primário", sem juros - servem apenas para travar a espiral de dívida.

 

Mas acabar com o défice primário não resolve o problema; só estanca a sangria. Portugal, Grécia e outros andaram na euforia até ao último momento, só parando o despesismo quando os mercados de crédito fecharam. Esse fecho significa que os aforradores comuns deixaram de confiar na capacidade de o país honrar as suas dívidas, e consequentemente não emprestam mais. Se nada fosse feito, isso imporia um défice nulo de um dia para o outro, por falta de alternativas, implicando a austeridade completa. Esse é o segundo conceito, de que quase não se fala. Quando o total das despesas, incluindo os juros, tivessem imediatamente de ser iguais às receitas, o aperto seria máximo.

 

Esta é a disciplina mais violenta de todas, a verdadeira austeridade. Muitos países têm-se encontrado nessa condição ao longo dos séculos, como Portugal há 120 anos. Hoje felizmente existem mecanismos de ajuda externa para a evitar. É aqui que entram as organizações internacionais, que concedem financiamento quando mais ninguém o faz, permitindo adiar os cortes. Só que essa ajuda, neste caso da troika, vem com condições. Surge o terceiro conceito de austeridade, imposta nas cláusulas dos empréstimos de emergência. Esta é a mais leve das três, pela folga nos cortes, mas parece arbitrária e evitável e por isso suscita a ira de tantos. Porquê impor coacções tão duras e artificiais aos países aflitos?

 

As conversas comuns só apanham o fio aqui. Por isso, sem considerar o passado, atribuem à maldade insensata de dirigentes sádicos que países como Portugal ou a Grécia tanto sofram e o euro e a Europa ameacem catástrofe. Acabando com a austeridade desmiolada, tudo ficaria excelente. Serão as autoridades europeias tão estúpidas e perversas que não vêem aquilo que tantos apregoam com facilidade?

 

É bom lembrar um pequeno detalhe que nunca aparece nas discussões: estes países só caíram em crise porque não se souberam governar. Ou seja, os seus líderes foram capturados por interesses, próprios ou alheios, concedendo benesses acima daquilo que o país podia pagar. É isso o défice. Controlar essas reivindicações é o elemento central para solucionar o problema de fundo. Que interessa, não tanto aos credores externos, mas aos contribuintes nacionais. Os cidadãos deviam ser os primeiros a apoiar tal austeridade, porque são eles que, no fim, pagam as despesas excessivas e seus juros.

 

A maior parte dos críticos da austeridade põem as esperanças numa variante de almoço grátis: perdoa-se a dívida, isso liberta a economia que começa a crescer e tudo fica bem. Esquecem que antes da crise esse crescimento, ou não existiu, como em Portugal e na Itália, ou não evitou o endividamento explosivo, como na Grécia. De onde viria agora progresso tão miraculoso, para mais com os mercados financeiros fechados? Porque, é bom não esquecer, quando se repudia e insulta os credores, é difícil convencê-los a emprestar outra vez.

 

Austeridade é hoje uma palavra mágica, que parece controlar vidas e decidir discussões. Dada a quantidade de confusões que suscita, seria melhor um uso mais austero da palavra austeridade.

 

8 de Julho de 2015

 

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JOÃO CÉSAR DAS NEVES

 

A MATÉRIA DA EUROPA

 

 

A União Europeia nasceu da solidariedade e está em risco por falta de solidariedade. Esta parte é evidente; as dificuldades vêm das estranhas propriedades desta diáfana substância que une e anima a Europa.

 

A solidariedade é muito especial: só funciona em ambos os sentidos e quando todos participam. Assim é fácil pedir solidariedade, exigir solidariedade; difícil mesmo é ser solidário. Isso leva a mal-entendidos, como reclamar solidariedade esquecendo o próprio contributo ou pretender promovê-la ralhando com os parceiros não solidários.

 

Pior, a Europa enfrenta uma das doenças mais terríveis da solidariedade: o proverbial problema da "ovelha ronhosa". O futuro da unidade depende de todos os membros confiarem naquele que mais violou a confiança. Este facto simples, evidente, gritante até, anda muito omisso das conversas sobre o longo drama que devasta o sacrificado povo grego e ameaça a unidade europeia.

 

A União exige que Estados membros e autoridades comunitárias emprestem mais uns largos milhões ao governo grego, para lá de todos aqueles que ele não pagou. Isto apesar de tudo o que os sucessivos governos desse país fizeram para minar a confiança dos parceiros, e de o actual levar o desafio e atrevimento a níveis inauditos. A verdade é que ninguém mostrou menos solidariedade comunitária do que a Grécia, a mesma que agora reclama solidariedade dos parceiros.

 

JCN-derrocada grega.jpg

 

Por outro lado, esta compreensível desconfiança conduziu a Grécia a uma situação incrível, o único país desenvolvido a sofrer uma grande depressão desde os anos 1930. Com economia devastada e desemprego explosivo, o sofrimento atingiu níveis inaceitáveis, o que torna compreensíveis a insolência e a rebeldia do governo grego. Assim o resultado é o impasse.

 

A Grécia é horrivelmente mal gerida há décadas, com uma recorrente subversão do interesse público, sempre capturado por inúmeras formas de corrupção, aproveitamento e oportunismo de grupos instalados. As disfunções sociais do país são evidentes para quem quiser abandonar os mitos e olhar para a realidade.

 

Esta constatação não nos deve levar a uma forma de racismo, atribuindo o problema ao carácter grego. Não é preciso ir à Antiguidade para ver realizações espantosas desse povo. Quando em 1981 o país aderiu à Comunidade, o mais pobre que até então o conseguira, fê-lo de pleno direito, devido às excelentes prestações económica e financeira das décadas anteriores. Tal como Portugal anos depois, a adesão pretendia assegurar a democracia num país com conturbada experiência política mas impressionantes realizações produtivas.

 

O mal não está nos gregos, mas nos hábitos políticos que a integração trouxe consigo. Desde cedo que os ministros helénicos se habituaram a aproveitar todos os ganhos que a Europa concedia, evitando as exigências que a integração trazia consigo. O mal da Grécia é a sua recorrente falta de solidariedade europeia.

 

É inegável que o país se tornou o protótipo do oportunista endividado e abusador, mas também que a Europa tolerou os atropelos e alimentou os abusos. Esta é a razão por que os credores em geral, e a Alemanha em particular, apesar do horror dos últimos anos, não conseguem confiar na Grécia, por ela não mostrar a mais elementar das solidariedades: cumprir regras. E a história não começou ontem; foram quase 35 anos de recorrentes transgressões e esbanjamentos.

 

A crise desde 2008 atingiu o limite e, mesmo aí, confirmaram-se as desconfianças. Enquanto o país se arruinava, muitos grupos conseguiram defender privilégios pagos com dinheiro alheio. É verdade que também noutros Estados as reformas ficaram aquém do planeado; mas ali, ao contrário de parceiros como Portugal, não se cumpriram os mínimos que permitissem às autoridades europeias mostrar benevolência, apesar de o povo sofrer horrores.

 

A recente arrogância do Syriza, por muito compreensível que seja, aumentou a dificuldade. Negar o problema e ralhar com os credores não é forma razoável de ganhar a sua indispensável confiança. Afinal esta última colheita de dirigentes, apesar de livre dos vícios das anteriores e com orientação política radicalmente diferente, mantém a atitude de fundo: o governo grego está menos preocupado com o interesse nacional do que com a satisfação de certos grupos ou princípios ideológicos.

 

Décadas de erros mútuos trouxeram a situação ao ponto limite. Mas a Europa e a Grécia têm de se lembrar de que a matéria de que é feita a Europa é a solidariedade. Se a conseguirem reencontrar, a União não só ultrapassa a crise, como fica mais forte.

 

17 de Junho de 2015

 

Joao César das Neves.jpg JOÃO CÉSAR DAS NEVES

A FAMA DE PIKETTY

 Piketty.jpg

 

A liberdade de expressão é um dos grandes valores da actualidade. Mas este enorme benefício, como todas as coisas preciosas, tem custos elevados. Poucos casos ilustram tão bem esta ambiguidade como a história recente da improvável fama de um economista francês.

 

Thomas Piketty, nascido em Clichy em 1971, é um excelente investigador, reconhecido há muito pelos seus estudos da evolução da distribuição de rendimentos. Tem mais de 20 anos de publicações marcantes, colaborando até com o maior autor da área, o britânico Sir Anthony B. Atkinson.

 

O seu trabalho tem duas particularidades interessantes. A primeira é que, em vez de se centrar no estudo da pobreza, como é habitual, Piketty analisa o extremo oposto, tratando a situação dos super-ricos. É mesmo co-fundador da World Top Incomes Database, um banco de dados que reúne os números disponíveis para quase todos os países do mundo ( http://topincomes.g-mond.parisschoolofeconomics.eu ).

 

O segundo aspecto constitui o método que lhe permite obter informação tão longa e vasta para problema tão complexo: o uso dos dados fiscais. A cobrança de impostos obriga há séculos todos os Estados a recolher valores detalhados sobre rendimento e património dos cidadãos. Com esses números pode traçar-se a trajectória a longo prazo da desigualdade em todo o mundo. A ideia é simples e eficaz, embora tenha também defeitos, que justificam a antiga relutância em usar estes meios. De facto a informação tributária sofre de enviesamentos óbvios, aliás patentes logo que os institutos de estatística conseguiram realizar inquéritos científicos, complementando e corrigindo as estimativas administrativas. Apesar disso, Piketty e colegas atreveram-se nesta abordagem, mostrando que as imperfeições são largamente compensadas pela vastidão de informação.

 

Esta literatura existe há muitos anos sem conseguir a atenção que merece. Até que o francês decidiu resumir os resultados num único volume. Deu-lhe um nome atrevido, com referência directa ao clássico de Karl Marx, e juntou-lhe uma boa dose de especulação e simplismo. Deve dizer-se que nem assim conseguiu o reconhecimento, quando Le Capital au XXIe Siècle chegou às livrarias em Agosto de 2013. Foi apenas na tradução americana, publicada em Março de 2014, que subitamente atingiu o estrelato. Com surpresa, o cientista adquiriu estatuto de astro mediático, enquanto se vendiam mais de milhão e meio de cópias do volume de 900 páginas. Os resultados desta notoriedade foram simultaneamente excelentes e lamentáveis.

 

Joao César das Neves.jpg JOÃO CÉSAR DAS NEVES

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