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Como tudo seria perfeito
Se os amigos não morressem
Se nada tivesse defeito
Se os dentes não doessem
Se os animais pudessem mandar
Se as pedras soubessem nadar
Se não houvesse leis de mercado
Se falar demais fosse pecado
Se a verdade não fosse dura
Se toda a doença tivesse cura
Se as crianças não chorassem
Se os palhaços não se pintassem
Se toda a gente soubesse ouvir
Se os anos tardassem a vir
Se o aparecimento das rugas
Fosse lento como as tartarugas
Se os dentes dos elefantes
Não fossem feitos de marfim
Se as florestas fossem como dantes
E os dias bonitos não tivessem fim
Enfim...
Como tudo seria perfeito
Para mim...
Se eu fosse neta de minha mãe
Se eu me sentisse sempre bem
E se o meu pior defeito
Não fosse dar atenção
Às mágoas do coração.
Helena Salazar Antunes Morais
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Lágrimas todas iguais mas diferentes
Desde as de um cisco às inteligentes
Das copiosas às independentes
Das sabidas às inocentes.
Acompanhadas de berros
Ou tiradas a ferros.
Lágrimas de culpa sentida
De alegria contida
Lágrimas de crocodilo
De quem não sente
Mas sabe fingi-lo
E descaradamente mente.
Gotas de dor sincera
De quem já desespera
E ainda finalmente
Lágrimas que já pararam
Mas porque infelizmente
Há muito se esgotaram.
Helena Salazar Antunes Morais
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Um vento muito gelado
Um pardal em forma de bola
Uma senhora de estola
Um rosto encarquilhado
Corpos escondidos que espreitam
Dentro de quilos de roupa
Bafos de bocas que deitam
Uma névoa a cheirar a sopa
Gente que saltita em vão
Tentando os pés acordar
Pobres que carregam carvão
Um autocarro a tardar
Jovens inchados, vestidos de penas
Um rafeiro tremendo num canto
Trincando umas côdeas pequenas
Um céu com um negro manto
Que não quer abrir por nada
Como uma porta trancada
Porém, nada, mas nada, é eterno
Nem mesmo os dias de Inverno
Helena Salazar Antunes Morais
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Raio de mundo de rótulos
Este comunista, aquele fascista
Este benfiquista, aquele portista
Todos se manifestam aos pulos
Dos anarquistas aos masoquistas
E outros acabados em “istas”
A maioria uns “istafermos”
Neste mundo de enfermos
Tanta ironia e contradição
Querer cada um pertencer
Com enorme devoção
Ou assim querer parecer
A uma lista dos “istas”
Quando também sem excepção
De alma e de coração
Cada um só em si pensa
O que faz com que pertença
À maior lista das listas
A lista dos egoístas.
Helena Salazar Antunes Morais
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Que as línguas vivas mudam
É ponto bem assente,
Mas que se suicidam,
É algo que se pressente.
Uns pontapés na gramática,
Terminologia popular,
E uma pitada de “modernática”,
E em breve se há-de assim falar:
Houveram dias na minha vida
Como um há vinte e um ano
Foi a cena mais curtida
E vou-te já contar ó mano.
Alevanto-me na descontra,
Como uma anêspera e bazo.
E quem é que euzinho encontra
Por um feliz ocaso?
Um bróder com buéda guito
E que tinha almorroidas
E por isso um andar esquisito
Que punha as chavalas doidas.
Tásse meu puto, disse eu,
E ele logo arrespondeu:
Bora tomar a carreira
E apanhar uma bubadeira.
E vamos para a casa dele
A mãe gorda tal cachalote
Vivia com um tipo rele
Que ganhara o jack do pote.
Assentamo-nos no quarto
O mesmo onde tinha nascido,
E que por ter engolido o parto
Da mona não tinha invluído.
No pechiché tão uma jolas,
Diz o bacano pr’a mim,
Pega nelas e trázeas.
Bora buer pó jardim
Eu digo as coisa, tu fázeas.
Ya meu, arrespondo eu,
E lá vamos ambos os dois,
Inté que páro e digo: ó meu!
E que vamos fazer despois?
Ora népia é só chamar
E há-des ver as garinas
Logo a s’aproximar,
Das grandes às mais caninas.
E é então que se m’aparece
A chavala mais brutal
Coisa que só te acontece
Uma vez ou coisa e tal.
Tu és homem sexual?
Pergunta pr’a começar.
Digo eu: tás-te a passar?
Ó minha cai na real.
Ela fica tão pasmada
Que diz logo de enfiada:
Já há bué que procuro,
E olha tem sido duro,
Um brother que seja macho,
E vai daí que te acho.
E é logo nesse momento
Que a gente nos ajuntamos,
E se às vezes não auguento
O certo é que ainda tamos.
Falar bem, nós não falamos
Mas lá felizes nós samos.
Helena Salazar Antunes Morais