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A bem da Nação

ERA UMA VEZ... NA GUINÉ - 1991

 

 

Ainda mais duas viagens em trabalho, que apesar de em nada terem resultado, ficaram na memória. Aliás são três viagens porque a Angola fui duas vezes, com pouco tempo de intervalo e com a mesma finalidade.

 

Hoje vamos à Guiné-Bissau.

 

O avião aterrou por volta da meia-noite. À minha espera também um colaborador do Pão de Açúcar (de Portugal).

 

E começa a descarga das malas. À mão. Avança um carregador até ao avião. Parava. Conversava um pouco com os colegas. Pegava numa mala e levava-a até ao saguão do aeroporto. Largava a mala e descansava um pouco! E assim se foi sucedendo a descarga.

 

Às duas horas da noite ainda eu esperava a minha mala, quando o meu “cicerone” sugeriu que fosse para o hotel assim mesmo, que ele se encarregaria que alguém me levasse a dita, tão logo aparecesse.

 

Paciência. Nem pijama, nem nada de toalete – escovar os dentes, por exemplo – e deitei-me.

 

O hotel, se me lembro, seria um Holiday Inn, fora cidade, construção recente, mas muito incómodo para quem tinha que andar na cidade. (Será hoje o Hotel Lybia?) De noite lá apareceu a sobredita mala, que me foi entregue já eu tinha adormecido, mas pela localização preferi mudar para outro hotel. Construção antiga, tinha sido a sede dos oficiais do exército português e passou a chamar-se “Hotel 24 de Setembro”, data da declaração unilateral de independência do país, uma razoável quantidade de confortáveis pequenos apartamentos, que serviram aos oficiais e famílias, uma boa área central, tudo em pleno e bom funcionamento, e onde se encontravam todos os visitantes estrangeiros e, à tarde, os “importantes” da terra, incluindo o Presidente Nino Vieira, que gostava de aparecer com ar “democrático e popular” no seu carrão e boa escolta de jipes, para “paternalmente” acenar, sem sair do carro, aos “importantes, dar a volta e sair!

 

Bom serviço e boa comida.

 

FGA-GUINÉ BISSAU.jpg

Hotel 24 de Setembro

 

Nesse hotel, todos os dias aparecia um vendedor de artesanato, peças pequenas, madeira, prata, malaquita, etc., tudo muito bonito. O Mamadou. Um cara grande, gordo, simpático e que sempre fazia bom negócio com os visitantes. Muçulmano, não me largava, não só porque eu conversava muito com ele, como sobretudo porque eu não comprava nada!

 

- Mamadou, você é muçulmano, quantas mulheres tem?

- Quatro, que mais a lei aqui não permite. (Filhos já não lembro quantos disse que tinha)

- E como é a organização com tanta mulher para dormir?

- A primeira mulher é quem organiza tudo e além disso fica de olho nas outras para que não façam nenhuma estupidez. Cada uma tem sua casa onde vive com os filhos. Toda a semana mudo de mulher. Sai uma, que leva toda a roupa de cama e pessoal para lavar e entra outra com tudo lavadinho. E assim vai. Todas se dão bem.

- Caramba, Mamadou, você tem uma vida de sultão!

 

Ele ria e insistia para eu comprar qualquer coisa, mas eu nada!

 

Pelas ruas da cidade viam-se, completamente abandonados, grupos geradores que pareciam novos. À primeira avaria, ou por falta de peças, ali ficavam a enferrujar, equipamento caro, da Caterpillar!

 

Na entrada da área onde estavam os serviços de Agricultura, um tractor, completamente novo, com os dois pneus grandes vazios. Nunca trabalhou. Um descaso impressionante.

 

Pelas ruas vendiam-se livros surripiados aos antigos serviços, como o da agricultura. Comprei por mirreis, uns livros, já raros naquele tempo sobre o estudo completo dos solos do país e mais dois ou três, todos com o carimbo do tempo colonial! Tudo saqueado.

 

Saímos da cidade pouco para o “mato”, para o interior da floresta (tivemos que passar por dois controles militares, mostrar documentos, etc.), atravessar pelo menos um dos braços de mar em jangada, para chegarmos por fim à vista do que teria sido uma relativamente grande instalação industrial. Obra feita pelos “generosos” bancos internacionais, para industrialização da mancarra, o nosso amendoim.

 

Mas, ó céus, a Guiné produz, ou produzia muito amendoim, praticamente tudo trabalhado na base da agricultura familiar e o projecto dos sábios foi reunir a produção num centro. Esqueceram-se dum “pequenino” detalhe. O país é todo atravessado por rios e braços de mar, de modo que para ir dum canto a outro, tem que se dar a volta pelo interior, e assim mesmo atravessar diversas jangadas, depois de ter andado umas centenas de quilómetros por estradas quase intransitáveis! Resultado a “fábrica”, quase inactiva, construída em estrutura de ferro, naquele clima estava toda enferrujada e quase nada fazia. Assim mesmo o guarda que lá estava não nos deixou visitar aquele elefante branco.

 

Foi assim que os países NÃO colonialistas trataram os novos países após a independência. Sugaram e ainda sugam, quanto podem.

 

Também fomos perto da fronteira com a Guiné Conakry, ver como eram “exportadas” as belas mangas da Guiné-Bissau! Tudo vinha do país vizinho, já embaladas e depois exportadas para Portugal como mangas de Bissau!

 

À procura de algo que pudesse propor ao país, que sofria, fomos aos Serviços de Agricultura. Começámos por consultar dados estatísticos que... quase todos acabavam em 1974! O mais impressionante foi constatar que o índice pluviométrico tinha caído, nos últimos 25 anos da estatística existente, cerca de 20%, sobretudo no norte, fronteira com o Senegal, onde o avanço do Sahel é inexorável. E continua a avançar uns quilómetros cada ano.

 

O director dos serviços, engenheiro, quando lhe falei nestes dados respondeu, tranquilo: - Não. Continua a chover bem!

 

Não devia saber do que eu estava falando.

 

A Guiné continuava a explorar madeiras, derrubando florestas. Um dos métodos para aguentar um pouco o avanço do deserto, seria uma barreira de árvores. Falei nisso e disse que se podia arranjar dinheiro para um programa desse tipo. Não entendeu a minha língua! Não se interessou.

 

Depois visitei a fazenda dum senhor que, para sua infelicidade tinha tido posição influente no tempo dos portugueses. Uma casa grande, grande área com árvores de fruta, floresta e zona de cultivo de legumes. Na nossa conversa surgiu a ideia de transformar aquele lugar numa escola de ensino agrícola. Era fácil. Tudo “quase” pronto, facilmente adaptável, só precisando depois de arranjar professores.

 

Fui falar com o ministro da economia. Caboverdeano, um dos companheiros de Amilcar Cabral e dos mais influentes no país, depois da independência ficou melhor na Guiné. Lá, mandava.

 

Expus-lhe a ideia da escola, do local, quase dentro da cidade, infraestrutura com imensos recursos, etc. Ouviu tudo. Depois levantou-se, foi comigo junto a um grande mapa do país, que ocupava quase uma parede inteira e disse-me que a ideia era interessante, mas não no local que eu indicava.

 

Havia outras áreas muito melhores e mostrou-me a que ele escolheria.

 

Conversámos um pouco mais, saí, e quando voltei a falar no assunto com outras pessoas, tive logo a resposta certa: - É evidente que ele quer o projecto nessa área. Aí as terras são quase todas dele.

 

­Acabou-se a escola agrícola!

 

Véspera de ir embora, juntámos um grupo de hóspedes do hotel, mais o meu amigo do Pão de Açúcar que nos levou a um lugar para comer ostras.

 

Duas casas pegadas, um pátio na frente. Um abria as ostras no fogo, o outro, uma venda/bar vendia as cervejas! As doses de ostras eram calculadas conforme o tamanho da base onde eram servidas: prateleiras de antigas estantes de aço dos serviços públicos! As mais estreitas, uns 15 centímetros de lado, eram uma dose! As largueironas, talvez uns 30 ou 40 eram duas ou três. Mas as ostras eram uma delícia!

 

À saída, no aeroporto, ainda tive problemas desagradáveis. Um vendedor tinha-me impingido, por 10% do valor pedido inicialmente, um brinquedo, tipo marimba com uns 30 cm de comprido, que com relutância acabei por levar. Levava comigo isso e mais um saquinho com 200 ou 300 gramas de caju torrado, cuja intenção era ir comendo no avião.

 

Passo na alfândega, com a “marimba” num saco de plástico e uma maleta de mão tipo “007” que mandaram abrir. O “chefe” diz para um dos “fiscais” mostra o papel para ele. Vi logo que vinha encrenca e recusei-me a ler. Disse que estava sem óculos. Então eles leram o essencial: “Era proibido levar artesanato e castanha de caju”.

 

Depois da chatice em Moçambique, deu-me um ataque: “Pois fiquem com essa porcaria toda”, deixei mala e tudo em cima do balcão e fui embora. Passado um pouco vieram dizer-me para lá ir buscar. Dali passei a uma sala especial de inspecção. Vingaram-se. Mandaram-me despir, fiquei em cuecas, vistoriaram tudo e depois deixaram-me.

 

“Sorte” ter encontrado na fila de embarque o “director” do turismo do país que tinha conhecido no hotel. Esculhambei com a vida dele e como viajava em 1ª classe, sendo o primeiro a sair em Lisboa, avisei-o: - Quando chegarmos vou dizer aos fiscais que você é traficante. Vai ver como é agradável a recepção!

 

Como imaginam não disse. Mas voltar à Guiné, eu... não quero. Nunca mais.

 

19/05/2016

 

FGA-Mar 3-o homem do leme

Francisco Gomes de Amorim

NÃO POSSO ADIAR A PALAVRA

 

 

Quando te propus

Um amanhecer diferente,

A terra ainda fervia em lavas

E os homens ainda eram bestas ferozes.

 

Quando te propus

A conquista do futuro,

Vazios eram os mios,

Negro como breu o silêncio da resposta.

 

Quando te propus

O acumular de forças,

O sangue nómada e igual

Coagulava em todos os cárceres,

Em toda a terra

E em todos os homens.

 

Quando te propus

Um amanhecer diferente, amor,

A eternidade voraz das nossas dores

Era igual a

"Deus Pai todo-poderoso, criador dos céus e da terra".

 

Quando te propus

Olhos secos, pés na terra e convicção firme,

Surdos eram os céus e a terra,

Receptivos às balas e punhais,

Amaldiçoavam cada existência nossa.

 

Quando te propus

Abraçar a história, amor,

Tantas foram as esperanças comidas,

Insondável a fé forjada

No extenso breu de canto e morte.

 

Foi assim que te propus

No circuito de lágrimas e fogo.

Povo meu,

O hastear eterno do nosso sangue

Para um amanhecer diferente!

 

Hélder Proença.jpg

(1956 - Bissau, 5 de Junho de 2009)

O DESNORTE DO REINO – 4

 

GUINÉ, GUILEJE

 

   

As forças do PAIGC reagruparam-se então em torno de Gadamael e atacaram-na fortemente, tendo a situação sido resolvida rapidamente por tropas paraquedistas, enviadas de reforço.

   

Sem embargo de se gostar mais ou menos da atitude do Comandante – Chefe, ele era o responsável por toda a Guiné e era ele que tinha a visão global de todo o teatro de operações. E tinha a autoridade para tomar as decisões que tomou, sendo-lhe ainda lícito,sacrificar a guarnição de Guilege caso isso fosse importante para a salvaguarda do todo.[1]

   

Como a consciência é o nosso último juiz, cabe sempre a cada comandante – e cada caso é um caso – face às circunstâncias, decidir o que, em última instância, a sua consciência lhe diz mas tem que, a seguir, se sujeitar às consequências dessa decisão.

  

E não tem que levar a mal que, no caso vertente, se lhe tenha dado ordem de prisão e levantado um processo.

   

O Dever e a Disciplina Militar assim o exigiam e só se deve lamentar que o julgamento não tenha ocorrido. E, nesse âmbito, só existe uma razão de queixa: contra quem o amnistiou.

   

Ora, este caso que devia ser, sem sombra de dúvidas, tratado em termos académicos em fóruns próprios a fim de reverter em ensinamentos para o futuro, tem sido transformado pelo seu protagonista – que ninguém tem maltratado nem acusado de nada - numa tentativa contumaz, não só de branqueamento da sua acção como a de que seja aceite o seu bom propósito e valor.

   

Será que um dia destes vai requerer louvor e condecoração?

   

As coisas estão, até, a entrar no campo do delírio, como se pôde constatar numa “mesa redonda”, que decorreu em Coimbra, no passado dia 23 de Maio, e para a qual se convidaram quatro coronéis do Exército, um ex-membro das “Brigadas Revolucionárias” e dois ex- guerrilheiros do PAIGC.[2]

   

Um dos oradores foi, justamente, o antigo Comandante do COP5, que antes de falar se vestiu com um traje típico de indígena da Guiné – provavelmente o mesmo com que o agraciaram há uns anos atrás, quando foi a Guilege fazer “um frete” ao PAIGC - e não foi o único - que para ali “convocara” um “Simpósio Internacional”![3]

   

O “nosso” coronel apenas seguiu, todavia, o exemplo da organização daquela “mesa sem bicos”, a qual no folheto de propaganda do evento, não encontrou nada melhor para pôr em fundo, do que a bandeira do PAIGC (quero recordar que o evento se passa em Coimbra – terra onde está sepultado o D. Afonso Henriques…) e uma foto de Amílcar Cabral que, em termos simples, não passa de um traidor português.[4]

   

No dia anterior a esta redonda mesa, tinha estado previsto um colóquio promovido pela quase extinta Polícia Judiciária Militar, onde o caso de Guileje era tema, com direito a debate, e lá estava o nosso ex- comandante inscrito para o mesmo.

  

Tem ainda participado em várias conferências, apresentações de livros, discussões, etc., onde raramente é contestado e escreveu um livro com a sua versão dos eventos, que teve o prefácio de um general de quatro estrelas e conseguiu o significativo feito, de o mesmo ser apresentado por um outro general de igual posto, num local que tem o nome de Academia Militar.

  

Escola que, lembro, tem a peculiar missão de formar os futuros oficiais do Exército e da GNR.

  

Parece que ninguém se deu conta do que se estava a passar…

   

Há precisamente 39 anos que se passou a fazer o elogio da cobardia, em detrimento da coragem; promoveram-se desertores e traidores e depreciou-se (quando não se ridicularizou), heróis e patriotas.

    

A corrupção passou a ser tolerada e a achar-se que era coisa de espertos; incentivou-se o vício e casquinhou-se a virtude; tem-se sido de uma compreensão dadivosa para com os “desvios”, ao mesmo tempo que se desdenha a “normalidade”; encolhe-se os ombros aos trapaceiros e fustiga-se o mérito, enfim, os exemplos são extensos e são todos maus.

   

Chegou-se ao ponto de incentivar a morte e depreciar a vida, em troca do egoísmo, hedonismo e outros “ismos”, todos muito “progressistas” e modernaços…

   

Não admira, pois, que estejamos mergulhados numa crise moral, política e social medonha, e á beira do desaparecimento genético (!), e que quase toda a gente confunde com uma crise económica e financeira, e apenas porque lhes estão a ir ao bolso!

   

Fica-nos, contudo, e no meio disto tudo, uma dúvida existencial, que é a seguinte: Face ao descrito, o que se andará a ensinar aos cadetes e aos comandantes das actuais Forças Nacionais Destacadas?

 

20/6/13

                                                                           

 

João J. Brandão Ferreira

Oficial Piloto Aviador

 

 FIM



[1] No fim da ofensiva, nós ganhámos e o PAIGC perdeu, é bom que se diga. Mas o que se passou em Guileje causou um abalo muito grande no moral do conjunto das tropas e comandos. E pode ter contribuído fortemente para o início do MFA, na Guiné. Se assim foi, a vitória táctica portuguesa, resultou numa derrota estratégica, a prazo.

[2] Foi organizada pelo “Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra”, criado em 1998. O moderador foi o Prof. Dr. Luís R. Torgal, que tinha a missão impossível de dar a palavra, numa tarde, a sete oradores e promover o debate…

[3] O tema era a ofensiva sobre Guileje de que trata este escrito e decorreu de 1 a 7 de Março de 2008, promovido pela “Universidade Colinas do Boé” e pelo INED, uma das ONGs que por lá pululam.

[4] Amílcar Cabral tinha a nacionalidade portuguesa. Veja-se artigos do Código Penal de então e de agora…

O DESNORTE DO REINO – 3

 

GUINÉ, GUILEJE

 

 

   

Do que se sabe, o General Spínola tratou mal o Major e não lhe explicou nada. Podia ter-lhe dito qualquer coisa do género “a preservação da sua posição é fundamental para a defesa da fronteira sul, eu agora não lhe posso valer pois tenho todas as minhas reservas empenhadas (o que era verdade), volte para lá, aguente-se, que logo que possa envio-lhe auxílio”.

  

Em vez disto tratou-o nos moldes em que os que o conhecem sabem, quando não gostava de alguém. A agravar as coisas, o oficial em causa, não era oriundo de Cavalaria nem frequentara o Colégio Militar…

   

E quando se despediu dele humilhou-o dizendo-lhe “regressa a Guileje e daqui a um ou dois dias irá lá ter o Coronel Durão e você passa a adjunto dele”. Ou seja passou-lhe um atestado de incompetência.

   

O Comandante do COP 5 voltou ao quartel apenas para saber pelos seus subordinados – em quem segundo o “jornal da caserna” não tinha grande comandamento – que o último ataque sofrido tinha destruído o posto de rádio e parte da artilharia.

   

A retirada fez-se nessa noite, sendo feita em boa ordem de marcha e com todos os cerca de 500 elementos da população, o que prova três coisas:

    - Que o quartel não estava cercado (se estivesse a saída das tropas e população poderia ter sido um desastre!);

    - Que a população estava toda do nosso lado;

    - Que o PAIGC estava ainda longe de querer assaltar a povoação, já que só deu pela evacuação três dias depois (entrando quase todos em coma alcoólico depois de terem esgotado o stock de bebidas existente…).

   

Mas prova ainda outra coisa: que a retirada já teria sido preparada do anterior, pois era praticamente impossível organizar tal operação na hora. Será que estariam à espera que Spínola autorizasse a saída? Até que ponto haveria acção subversiva feita por eventuais infiltrados simpatizantes, idos da Metrópole? Eis duas questões que seria interessante dilucidar.

   

Resta ainda acrescentar que o quartel tinha uma pista; a FA garantia apoio pelo fogo de dia, com os “Fiat” e de noite com um “C-47” modificado, em bombardeamento de área; Guileje era o único quartel em toda a Guiné, que tinha abrigos em betão.

   

Sofreu bombardeamentos com precisão (cerca de 36), porque o tiro era regulado por guerrilheiros infiltrados até perto do quartel, pois estes tinham liberdade de movimentos, por as forças lá aquarteladas não fazerem batidas fora do arame farpado (como, aliás, estava determinado e era do mais elementar senso táctico).

   

Guileje tinha, porém, um ponto fraco: não tinha um poço artesiano, que lhe fornecesse água potável, a qual tinha que ser obtida a cerca de 2Km, o que permitia emboscadas às colunas encarregues dessa missão. As evacuações de helicóptero tinham, ainda, que ser feitas a partir de Cacine, pois a ida dos Al III a Guileje e Gadamael estava, temporariamente, suspensa por razões operacionais.

   

Considera-se que as forças que defendiam Guileje não estiveram sequer perto, de não se poderem defender e nada justificava o seu abandono tão prematuro, que veio a causar algum pânico em Gadamael – Porto e poderia ter feito colapsar – por efeito de dominó – todo o dispositivo junto à fronteira - sul.[1]

 

20/6/13

 

(continua)

João J. Brandão Ferreira

Oficial Piloto Aviador



[1] Além disso a saída de Guileje não foi coordenada com Gadamael e esta povoação e respectivo quartel não tinham condições mínimas para albergar tão elevado número de “fugitivos”. E não se sabe, exactamente, porque é que Guileje não foi reocupado, o que não favoreceu as nossas cores.

O DESNORTE DO REINO – 2

 

GUINÉ, GUILEJE

 

   

No dia 20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC, Amílcar Cabral, um mestiço politicamente moderado (vagamente marxista), de cultura lusíada, foi assassinado em Conackri, por três elementos do mesmo partido.[1]

   

Na sequência foram eliminados numerosos guerrilheiros e, até hoje, nunca se soube oficialmente os verdadeiros contornos da trama, tendo-se atirado para cima da PIDE/DGS a hipótese inverosímil, de estar por detrás desta morte.[2]

   

A seguir foi congeminado um plano – seguramente com a ajuda de conselheiros cubanos e soviéticos – para se conseguir uma decisão militar, que viria a ser explorada politicamente (como acabou por ser, em diferido), com a declaração unilateral de independência, no Boé, a 24/9/73.

 

   

 

Esta ofensiva teve algumas inovações: procurou-se utilizar o princípio da concentração de forças e atacar simultaneamente, numa espécie de tenaz, dois objectivos; as forças que atacavam seriam protegidas por uma nova arma anti – aérea, o míssil terra-ar “Strella”, o que permitiria anular a supremacia aérea nacional e, desse modo, fazer pender o potencial relativo de combate a favor da guerrilha.

   

O primeiro míssil foi disparado a 20 de Março, sem consequências. Porém, a 25, um outro disparo abateu um Fiat, salvando-se o piloto por ejecção e posterior recolha no chão.

   

Nas duas semanas seguintes foram abatidas mais quatro aeronaves tendo morrido quatro pilotos e cinco outros militares o que, naturalmente, abalou o moral das tripulações e passou a afectar o cumprimento de algumas missões, sobretudo por não se saber qual a arma e suas características, com que se defrontavam.[3]

   

Os objectivos escolhidos para serem atacados, isolados e, eventualmente, tomados, foram as povoações de Guidage, na fronteira norte, e Guileje, na fronteira Sul.

   

Estas povoações estavam defendidas com unidades tipo Companhia, reforçados com outros (escassos) meios.

   

Foram escolhidos pois estavam mesmo junto à fronteira, o que facilitava o ataque e o apoio logístico, além de que as equipas de misseis também não se deviam internar muito em território nacional, por imposição dos soviéticos que temiam que alguma destas armas caísse em mãos portuguesas.

   

Guidaje começou a ser atacada em 8 de Maio e esteve cercada e debaixo de fogo, constante, durante um mês.

   

Foram organizadas várias colunas de reabastecimento que foram duramente atacadas e, finalmente conseguiu-se reforçar a guarnição com uma companhia de paraquedistas. No entretanto montou-se uma grande operação que envolveu a totalidade dos efectivos do Batalhão de Comandos Africanos, sobre a base de Cumbamori, que apoiava as forças do PAIGC.

   

Durante este período as nossas tropas sofreram 47 mortos e mais de uma centena de feridos.

   

No meio desta ofensiva séria foi atacado o aquartelamento de Guilege no dia 18 de Maio, possivelmente como diversão, para obrigar a retirar forças que estavam a auxiliar Guidage.

     

A guarnição do Comando Operacional 5 sofreu um morto e dois feridos.[4] O Comandante, Major Coutinho e Lima, decidiu ir a Bissau expor a situação. Regressou no dia seguinte e tomou a decisão de abandonar o quartel, levando consigo toda a população para Gadamael-Porto, uma povoação a poucos quilómetros.[5]

   

Entretanto a Força Aérea, numa acção notável, conseguiu descobrir as características do míssil e adoptou um conjunto de procedimentos e tácticas que permitiram continuar a cumprir todas as missões, com constrangimentos vários.

   

A Força Aérea perdeu, de facto, a supremacia aérea, mas não perdeu a superioridade aérea. E nunca mais nos abateram qualquer aeronave, à excepção de um Fiat, em 30 de Janeiro de 74, por incumprimento de uma regra de segurança. Estima-se que foram disparados mais de 40 mísseis.

   

Que se terá passado então, para que o Comandante de Guileje tivesse apenas resistido quatro dias – com mais meios do que o seu camarada de Guidage – o TCor Correia de Campos, que se veio a revelar um valoroso Comandante - que chegou a estar no limite das munições e dos víveres?

   

Aqui parecem entrar o que se designa por factores imponderáveis da guerra, tão ou mais importantes que os outros…

 

20/6/13

 

(continua)

João J. Brandão Ferreira

Oficial Piloto Aviador



[1] Amílcar Cabral foi, sem dúvida, o mais capaz líder guerrilheiro de todos os que combateram contra Portugal.

[2] O que, a ser verdade - convenhamos – seria mais do que legítima…

[3] Foram abatidos um Fiat, um T-6 e dois DO-27. Só a 8 de Abril se teve a certeza de que a nova arma era o SAM-7. Outros disparos foram efectuados, mas não se considera relevante a sua discriminação.

[4] O COP 5 dispunha de uma companhia de caçadores; um pelotão de milícias; um pelotão de Artilharia, com peças de 11,4 e algumas autometralhadoras “Fox”.

[5] É importante referir que o Comandante do COP5 foi lá colocado, também, com a missão de disciplinar e levantar o Moral a uma tropa considerada fraca e desmotivada.

O DESNORTE DO REINO – 1

 

GUINÉ, GUILEJE

 

José Ortega y Gasset

 “O homem é o homem e a sua circunstância”

 Ortega y Gasset

   

Desde Afonso Henriques que há assuntos, na História de Portugal, mal arrumados. Alguns, até, de tão mal descritos, resultam em distorções e mentiras grosseiras.

   

É o caso das últimas e ainda recentes campanhas ultramarinas em que a Nação Portuguesa esteve envolvida entre 1954 e 1975.

   

E assim é, apesar do espaço temporal ser curto; haver muita gente viva que foi protagonista nos eventos; ampla documentação e excesso de meios de comunicação social.

   

Entre os multifacetados aspectos que este longo conflito encerra, ganhou especial preponderância o teatro de operações da Guiné e, dentro deste, as operações que se desenrolaram no 1º semestre de 1973, em que se assistiu à maior operação da guerrilha, em toda a guerra. Esta ofensiva foi desencadeada pelo PAIGC e planeada e coordenada por instrutores soviéticos e cubanos e destinava-se a fazer “ajoelhar” militarmente, as forças portuguesas.

   

Naturalmente o facto de o MFA ter nascido na Guiné; o protagonismo que o General Spínola – que acabou por ser o principal responsável pelo abaixamento do moral das nossas tropas na Província – veio a ter em todos os eventos ligados ao 25/4 e posteriores; e ao mito que se veio a criar que a guerra na Guiné estava perdida são, seguramente, responsáveis por tal facto.

   

No meio da ofensiva referida veio a ter destaque, pelas piores razões, o abandono do quartel e povoação de Guileje, no dia 22 de Maio.

   

Piores razões, porque marca uma página negra da História Militar Portuguesa, dado que uma guarnição que estando longe de estar batida, quebrou o dever militar, ao abandonar a sua área de operações sem ordem para o fazer e sem razão que o justificasse. A única que o fez em 13 anos de combates.[1]

   

O responsável directo por esta retirada foi preso em Bissau, ficando a aguardar julgamento em tribunal militar.[2]

   

Desse julgamento, livrou-o o Golpe de Estado de 25 de Abril e o desnorte que se lhe seguiu, acabando o arguido amnistiado em tal processo. Ou seja, juridicamente a responsabilidade penal deixou de existir.

   

O oficial em causa continuou a sua carreira militar e chegou a coronel.

   

Depois de abandonar o serviço activo, escreveu um livro, profere conferências e entra em debates, no sentido de descrever o que se passou, explicar as razões por que tomou a decisão que tomou e insurgindo-se contra o processo de que foi alvo.

   

Antes de entrar nesta última parte é mister fazer um brevíssimo enquadramento da situação ocorrida em Guileje.

 

20/6/13

 

(continua)

João J. Brandão Ferreira

Oficial Piloto Aviador



[1] O Quartel de Copá, no Nordeste da Guiné, também foi abandonado, em 30/1/73, por metade da guarnição, mas a mesma foi obrigada a regressar, pela notável acção do Comandante do Batalhão, Ten-Cor. Jorge Matias.

[2] O militar ficou preso cerca de um ano, o que se estima ser um exagero - mesmo tendo em conta a situação da altura – para se instruir o processo e levá-lo a julgamento. E, possivelmente, não deveria ter sido o único a quem devia ter sido dado ordem de prisão…

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