Era noite escura quando acordei. Um candeeiro da iluminação pública lembrou-me que estava encostado à berma da estrada que entrava em João Belo, vindo de cima em direcção a Lourenço Marques. Se bem me lembrava das contas da véspera, faltavam 220 quilómetros para chegar ao destino. Os companheiros estavam a bordo, dormiam. Eram 2 da manhã, nem sei quantas horas dormira. Para aí umas 6. Sentado ao volante, doía-me o corpo. Apetecia-me esticar as pernas e dar um jeito às costas, para além de outra vontade de cariz físico-hidráulico. Antes de abrir a porta e sair, pareceu-me leal avisar a tripulação de que o Comandante ia sair e esticar as pernas. Acordaram com feitio de guardas monárquicos em regime republicano ou vice-versa. Saí, estiquei-me e fiz o mais que tinha a fazer, dei uma volta ao carro e verifiquei que, aparentemente, estava tudo em ordem. Em silêncio, cada um deles saiu e fez o que considerou oportuno. De volta aos nossos postos, dei a volta à chave da ignição e o mostrador da gasolina disse que não haveria mal para o andamento da viagem se tratasse de pôr a bóia mais em cima. Tudo bem, mas a estação de serviço que havia logo ali à frente tinha um letreiro a avisar que só abriria pelas 5 da manhã. Faltavam 3 horas, tempo de encostar de novo. Ninguém protestou. Fomos acordados pelas luzes fluorescentes do posto a que estávamos acostados. Fiz o pleno da gasolina e vi água e óleo. Tudo nos conformes, passei água pelos olhos. Cada um fez mais o que considerava apropriado, dei a volta à chave da ignição e aí vamos nós…
Três homens normais metidos num carro durante tanto tempo, gera cansaço. Sem nada confessarmos, estávamos desejosos de chegar ao destino e mudar de ambiente. Tudo bem, sim, mas bastava. A placa a anunciar a chegada a Lourenço Marques apareceu por volta das 7 e meia e o meu cansaço era tal que nem olhei para o lado quando passámos à porta do «meu» outro Centro Hípico à frente do qual havia uma placa de informação quilométrica a dizer que a Beira ficava a cerca de 1300 quilómetros pelas estradas de antigamente. Pelo conta-quilómetros do nosso «herói», entre viagem propriamente dita mais voltas e voltinhas, tínhamos feito qualquer coisa como 2500 quilómetros desde Nampula até à entrada de Lourenço Marques.
Foi giro, cansativo e inesquecível. Mas foi mais do que isso: foi a afirmação de que Moçambique era então uma terra pacífica na sua maior extensão em que as pessoas viviam e deixavam viver, em que o futuro se apresentava radioso se os intrusos não cobiçassem aquela terra de gente cerimoniosa e vocacionada para o bem. E foi também o tributo de três não operacionais àqueles que, em zonas de combate, sustinham o imperialismo soviético e, com o seu sacrifício, permitiam que milhões de pacíficos vivessem harmoniosamente. A esses operacionais, toda a honra desta viagem.
Podiam os moçambicanos pretos ter uma civilização diferente da minha mas eram muito civilizados. Não me canso de dizer que fui para Moçambique com um espirito civilizador e que, afinal, fui eu que muito por lá aprendi. Trouxe de lá um sentido de respeito que facilmente conduziu a uma simpatia perene, a uma predisposição de compaixão, ao reconhecimento de uma tranquilidade apenas perturbada por factores externos de que eles, moçambicanos, merecem ser apartados.
Quem verdadeiramente amar Moçambique, afaste dele os abutres externos e os piores de todos, os internos.
Entrados na cidade, dirigi-me ao Clube Militar que era onde funcionava a Messede Oficiais. O Miguel despediu-se ali mesmo à porta porque tinha não sei quem à espera dele com o bilhete para as corridas de automóveis que se realizavam no dia seguinte ou coisa parecida; lembro-me de que o Tó, Oficial como eu, ainda entrou no Clube para tomar qualquer refresco e seguiu logo depois para casa duns primos que lá viviam; eu aboletei-me na Messe e deixei o meu «herói» descansar durante dois ou três dias.
* * *
A vida continuou para cada um de nós…
Pela minha parte, conclui a comissão de serviço militar, fui a Lisboa passar à disponibilidade e regressei a Moçambique como civil onde apanhei o 25 de Abril de 1974. Regressei a Lisboa em Agosto de 1974 depois de um «cruzeiro» de 15 dias com a namorada no “Infante D. Henrique” e trazendo o meu «herói» também ele são e salvo.
Voltei a encontrar o Miguel uns 20 e tal anos depois mas ao Tó não voltei a encontrar. A ambos desafiei para me ajudarem a contar esta história. O Miguel tem feito um ou outro comentário (muito menos do que eu tento gostaria), nomeadamente o do Xiquembo, mas do Tó não tive respostas às mensagens que tentei que a irmã lhe transmitisse.
Moçambique é terra que merece tudo de bom, não o que lhe têm feito. Que todos os Xiquembos se juntem para salvação de toda aquela terra de tão boa gente.
Passados 30 anos, voltei a Moçambique. Houve coisas de que gostei.
Para quem não conheça, explico que a Maxixe é a localidade na Estrada Nacional 1 (a longitudinal que já então vinha de Porto Amélia até Lourenço Marques e que nós vimos percorrendo desde Nampula) que se situa frente à enseada existente entre o continente e a cidade de Inhambane (a terra da boa gente como lhe chamaram os nossos navegadores primevos) localizada no quase extremo da restinga que, de Sul para Norte, forma a dita enseada.
E se Inhambane, geograficamente isolada lá na ponta da restinga, se debatia com problemas de sustentabilidade económica, a Maxixe, por sua vez, crescia a olhos vistos. E um dos motivos desse crescimento era uma Pousada (de sul africanos ou rodesianos, já não me lembro – só me lembro de que eram «bifes») que apostara no «big game fishing» (naqueles tempos, por ali, ainda não se falava de «seafary»), ou seja, a pesca grossa, nomeadamente ao espadarte, o marlin para eles, os da estranja.
É claro que apontámos à Estalagem para saber se tinham um quarto com três camas para aquela noite. É claro que não tinham. Nem com três camas, nem com duas, nem sequer com uma só. Estavam cheios e com «overbooking» (se não foi a primeira vez que ouvi a expressão, é porque me tinha esquecido de a ter ouvido antes). - E há por aí mais onde passar a noite? Duvidavam porque eles próprios tinham preenchido tudo para colmatarem o tal «overbooking». E tinham chegado a Inhambane. Não me recordo se naquela época já existia a expressão de «estarmos feitos ao bife» mas, na realidade, era o que apetecia dizer. O «bife» com que falávamos não resolveu o nosso problema.
Maxixe - a baía vista da Estalagem
- E agora?
- Agora temos cerca de 500 quilómetros até Lourenço Marques.
Cá está nova ocasião em que silencio as expressões «protocolares» que os meus companheiros proferiram.
- Se formos a ver, é praticamente a mesma distância de Estremoz a Madrid.
- Sim, claro! Ou de Roma a Bari para irmos visitar o Pai Natal.
- O Pai Natal em Bari? Então, não é na Finlândia?
- Isso da Finlândia e das renas é conversa da «Coca Cola». O Pai Natal era Bispo de Mira, na actual Turquia, onde morreu e foi enterrado. Mas durante a ocupação romana foi trasladado para Bari. Mas isso agora não interessa. O que fazemos? Vamos até Lourenço Marques ou ficamos a meio caminho? – perorei eu.
- Vamos em direcção a Bari e se nos fartarmos a meio caminho, paramos e dormimos. – disse o Tó.
- Muito bem, mas há particularidades nesta «estrada para Bari». Pode não haver uma estalagem, pode não haver sequer um parque fechado ao estilo do campismo, haverá certamente campo aberto e, aí, pode haver um ou outro «leanito» ou um cornúpeto qualquer de mau feitio. A irmos, é «non stop».
A minha audiência votou por unanimidade que eu guiasse mais 500 quilómetros non stop e não bufasse sob pena de se queixarem ao Kaulza.
Verificados os níveis de satisfação do nosso «herói» e aprovisionadas algumas vitualhas para nós, os bípedes, eis-nos feitos à estrada rumo a Lourenço Marques mas passando obrigatoriamente por várias terras importantes onde eu, sem avisar, haveria de encostar a uma box qualquer que se apresentasse capaz de me deixar passar pelas brasas. Dividindo psicologicamente o esticão nos primeiros 255 quilómetros a João Belo (Xai Xai) e os 220 seguintes a Lourenço Marques, tudo se faria mais tranquilamente do que pensando numa vezada só.
Foi então que me lembrei do meu primo Luís que nasceu no Xai Xai quando o pai dele, Oficial da Marinha, ali fazia uma comissão de serviço. E lembrei-me do progresso enorme que foi para toda aquela região quando em meados dos anos 60 do séc. XX os batelões foram substituídos pela ponte sobre o Limpopo. Toda aquela região se passou a sentir como fazendo parte do progresso e não mais como uma parte esquecida do Império. E lá voltei à mesma, tudo uma manta de retalhos, sem tessitura contínua. O mesmo que estava agora a acontecer com a barragem de Cabora Bassa, isolada no meio de nenhures e que por certo demoraria muito tempo a criar riqueza de proximidade ou sequer em relação à cidade mais próxima, Tete. Felizmente, o tempo fora de algum modo vencido pela DETA, o serviço aéreo que havia agora que promover a empresa mas que, entretanto, ligava as «ilhas» que constituíam Moçambique. E lembrei-me de que, naqueles primeiros dois meses da minha comissão militar em Lourenço Marques (foi depois desse curto período que fui transferido para Nampula donde estava agora a ser retransferido) o Secretário Provincial dos Transportes e Comunicações, Eng. Vilar Queiroz, me tinha dito que, à falta de estradas operacionais ao longo do ano, o transporte aéreo era prioritário e que tudo começava pela escolha de um local próximo de uma localidade considerada prioritária onde se pudesse terraplanar uma pista. Seguia-se, à medida que ia havendo dinheiro, a compra do espaço, se fazia a terraplanagem, se consolidava o piso para a pista poder ser usada o ano todo, se construía a torre de controle, se equipava essa mesma torre, se improvisava uma protecção para os aviões que tivessem que pernoitar no local e só no fim é que se pensava, sobrando algum dinheiro, na aerogare para os passageiros.
Foi também nesse primeiro período da minha presença em Lourenço Marques que um companheiro de equitações – entretanto proprietário de algumas empresas industriais - me contou que a primeira noite que ele e a mulher dormiram em Moçambique foi na garagem do Governo Geral cujo titular (não me disse o nome) se interessou pela determinação daquele jovem casal de ficar em Moçambique em vez de seguir viagem para alguma colónia francesa na rota do navio que os trazia de Toulon. Sim, nesses idos de 50, havia uma política de obstrução à imigração de portugueses em Moçambique e só o empenho pessoal do Governador Geral foi capaz de furar essa proibição. E já que estou a referir um casal luso-francês, pergunto: «à quoi bon?».
Chagámos a João Belo um pouco antes do pôr do Sol e, sem pedir opiniões, encostei o «herói» por ali e declarei que ia descansar um pouco.
O que faço agora também neste ponto da escrita. Até logo.
- Bom dia, Camaradas! – disse o Miguel – São 6 horas, é hora de levantar!
- Então, como é? São 6 e é hora? Ou são ou é, as duas coisas é que não pode ser. Se é plural, não é singular e vice-versa.
- Olha, olha! A este deu-lhe para acordar com a semântica e com a sintaxe… caiu-te mal o jantar? – perguntava eu.
- Achas então que a frase estava bem construída?
- Eh pá! Deixa-te de preciosismos linguísticos e não chateies o nosso relógio. Ele só anda no liceu, faltam-lhe ainda os tempos gerúndicos dos verbos. O que interessa é que ele sabe ver as horas.
- Tá bem! Mas o que está mal é levantarmo-nos tão cedo para fazermos só 200 quilómetros – entremeou o Tó com um bocejo.
- 205 – corrigiu o Miguel
- Essa diferença faz-se a pé numa hora de mochila às costas e de Kropashek ao ombro.
- Kropa quê? – perguntou o civil do relógio.
- É uma espingarda da primeira guerra mundial que põem aos ombros dos Cadetes só para chatear – disse eu – mas continuem nessas parvoíces que é para eu me ir arranjar em vez de ser eu hoje a esperar por Vosselências.
- Esta selência volta-se para o outro lado enquanto espera – disse o Tó
Eram 7 e meia quando dei à ignição e a resposta do nosso «herói» foi de evidente noite bem dormida. E eu também não sentia do que me queixar. 205 quilómetros era coisa para fazermos em menos de duas horas. Estaríamos na Maxixe pelas 10 da manhã, o mais tardar. E que havemos de fazer no resto do dia? O melhor é nem levantar a questão, não vão os gajos porem-se com ideias… e quem padece é o «herói» e eu agarrado ao volante. Calemo-nos e andemos!
E, calado, andei.
E porque o caminho seria tranquilo, tanto o «desempregado» como o «relógio» se deixaram dormir e aqui o «homem do leme» que se atribulasse com as conveniências e precisões. E como não tinha com quem conversar, fui-me lembrando de que…
… este era o Reino de Gaza onde o Mouzinho tinha andado à espadeirada e onde puxara as orelhas ao Gungunhana.
E pensei nesse rei que poderia ter tido uma vida regalada e porque não seguiu as sugestões do seu tio Molungo, conselheiro e companheiro de exílio, deitou tudo a perder e perdeu mesmo tudo. E como teria sido a História de Moçambique se a inteligência de Molungo se tivesse sobreposto à rigidez mental de Gungunhana? Como é possível sujeitar povos inteiros aos caprichos de incompetentes que nem sequer são capazes de assumir a tirania e se limitam a bafejar as ocorrências com halos de boçalidade? Pena que Molungo não tenha aceite liderar um golpe de Estado contra o sobrinho; pena Godide, o filho de Gungunhana, ter confirmado a lealdade antes jurada ao pai - o que como filho é louvável mas como homem de Estado foi deplorável para os interesses reais do seu povo; pena Gungunhana ser tão «quadrado».
Mas não vale a pena tentarmos imaginar como tudo teria sido na continuação do que não foi. É que, bem vistas as coisas, nunca se poderão conhecer os resultados das experiências não experimentadas. Mouzinho fez várias propostas a Gungunhana a ponto de o deixar governar num enquadramento de paz com os demais povos que Portugal superentendia mas não, o «leão de Gaza» não queria a paz com os vizinhos mais próximos e queria continuar a pôr e a dispor da sua Justiça sem as leis consuetudinárias dos Conselhos de Velhos, a equidade preta ou branca e muito menos as orientações do nosso Direito positivo. Outra questão: terá Gungunhana chegado a perceber o que Mouzinho lhe propunha? Molungo parece que sim, percebeu e aconselhou o sobrinho. Debalde, terá optado pelo exílio para não ver a desgraça que se abateria sobre o seu povo. Não se abateu desgraça como a que Molungo temia. Os povos de Gaza continuaram a viver e até pouparam guerras com os vizinhos mas demorou muito tempo para que conseguissem voltar a ter Conselhos de Velhos cujas decisões (o seu Direito consuetudinário) pudessem ser homologadas pelos novos Senhores da Guerra e da Nova Paz, os brancos, nós.
Godide, Gungunhana, Molungo e ...(?)
E foi nestas confabulações que vi a placa a assinalar «MAXIXE» e acordei os dormentes.
- Eh malta! Chegámos!
- O quê, o quê? Já chegámos?
- Já! E, entretanto, o Gungunhana foi preso.
- Ah! Sim, foi preso. Quem é que foi preso? O Judas Iscariote?
- Acorda, pá! Já chegámos!
Amanhã há mais, talvez estes personagens já estejam acordados.
O Save é em Moçambique o que o São Francisco é no Brasil, uma fronteira entre uma terra relativamente fácil e uma difícil. A diferença ainda é muito grande no caso moçambicano porque o rio-fronteira ainda não está trabalhado com os caudais regularizados, com as margens consolidadas, com represas, drenagens e irrigações circundantes que melhorem os lençóis subjacentes, etc. E porque o rio está ao abandono, o lado pobre, o da margem esquerda, é pobre e o da direita está à vontade de Deus Pai todo poderoso. Só lá mais para a frente, a caminho do Sul, é que a «coisa» agro-pecuária e florestal melhora. E é nessa melhoria que volta a aparecer o «pé-de-meia» das populações, o amigo cajueiro.
Estrada boa, alcatroada há muitos anos mas com piso recentemente melhorado, deu para continuarmos uma viagem turística sem problemas. A diferença, agora, estava na presença humana muito mais assídua e à vista, do gado doméstico a pastar próximo, das machambas por ali fora, quase a esmo para os nossos olhos mas de certeza que com lógica para os respectivos proprietários, agricultura de subsistência. E que mal há nisso? Mal nenhum do lado de quem a pratica; muito mal dos Serviços Públicos que a deixam ao «Deus dará». E disto tudo me fui lembrando… das populações que vivem e deixam viver. E nesta decisão que tomara ontem de voltar para Moçambique depois de ir a Lisboa passar à disponibilidade militar, lembrei-me de que uma das coisas em falta na corrida contra o tempo pelo desenvolvimento, era a de um verdadeiro Serviço de Extensão Rural que apoiasse as populações abandonadas. E isso implicaria não só as condições de habitação, educação e saúde mas sobretudo no melhoramento da produção agrícola e das condições sanitárias do gado doméstico, as desparasitações veterinárias.
E assim fui meditando… até que me dei conta de que não sou engenheiro para poder melhorar as condições de saneamento básico nem habitacionais daquela gente habituada aos melhores materiais de construção que por ali existem, devidamente adaptados às condições naturais, não sou médico nem sequer enfermeiro para poder ajudar às condições sanitárias, não sou professor para os poder habilitar ao abrigo do ensino oficial, não sou veterinário para lhes tratar do gado, não sou agrónomo para os ajudar a melhorar a qualidade agrícola. Ou seja, não sou nada que lhes possa ser de alguma utilidade. Um zero à esquerda. Apenas um especialista em assuntos gerais que, se munido de humildade, ainda há-de aprender umas «coisas» com aqueles a quem pensava ensinar. E lembrei-me dos peace corps do Kennedy que tanto bem fizeram por tanta parte até que foram corrompidos pelas maquinações da CIA.
E, depois, lembrei-me da dicotomia entre esta gente viver assim há séculos, não saber viver de outros modos e virmos nós, extra-terrestres, ensinar-lhes coisas com que eles não sabem (e eventualmente, não querem) lidar. Levá-los a defecar num único local junto da aldeia? Muito civilizado, sim Senhor. E onde fica a linha de água a que vamos aplicar a bomba para lhes fazer um chafariz? Eventualmente, será a maneira mais apropriada de lançar uma epidemia de cólera. E quanto ao aumento da produção agrícola, como se fará o escoamento dos excedentes e a que preço numa economia desmonetarizada? E se a moeda não circula, para que querem eles a moeda? Ah! Mas querem a Justiça. Para os mandar para a prisão conforme os critérios duma Lei que desconhecem? Não! Para isso têm os Conselhos de Velhos cuja autoridade reconhecem. Então, como fazer para ajudar esta gente? E a grande pergunta é: - Será que eles querem a nossa ajuda? Sim, creio que sim, querem a nossa ajuda para lhes tirar a dor de dentes, as cataratas dos olhos, a dor do apêndice... Mas só depois de lhes ganharmos a confiança. Então, serão eles a pedir que os ajudemos e isso pode demorar tanto tempo quanto o tempo que está por vir. Como são importantes esses quase anónimos Chefes de Posto que se amantizam com as «flores da savana», legalizam as decisões dos Conselhos de Velhos, recebem honradamente os viajantes com avarias mecânicas… Afinal, esses que estão na base da Administração Ultramarina, muito mais do que os que estão pela hierarquia acima, é que são A chave da porta do diálogo, A ferramenta do desenvolvimento. E se nós, lisboetas, estamos com pressa, não os atrapalhemos a esses que vivem, sabem viver e, sobretudo, que deixam viver.
Chagámos a Vilanculos, o Tó e o Miguel que procurem solução para a noite do nosso «herói» e, já agora, para a nossa também. Eu estou cansado, não faço mais nada para além de um duche e um jantar.
- Miguel, vai pensando nas horas da alvorada. Amanhã são 205 quilómetros até à Maxixe.
Inchope, a localidade mais próxima da Gorongosa e donde sai a estrada nova com destino a Maputo que então se chamava Lourenço Marques. Foi para lá que nos dirigimos à procura de alojamento. Não foi fácil mas conseguimos o que sempre tivemos ao longo de toda a viagem, uma cama para cada um. E logo nos preveniram que se nos dirigíamos para Sul pela estrada nova (e que ainda não tinha sido inaugurada), que atestássemos o depósito pois seriam 300 quilómetros sem um único posto de abastecimento. E que levássemos farnel pois ainda não devia haver cantinas. E assim foi que na manhã seguinte atestámos o depósito do nosso «herói» e nos precavemos a nós próprios com alguns comes e bebes.
Seriam umas 7 da manhã quando nos pusemos a andar. Já não era assim tão cedo como o homem dos horários gostava mas foi o que se arranjou. E porquê aquela «mania» das ceduras? Porque quanto mais tarde, mais quente e tudo o que consigamos percorrer pela fresca da manhã, melhor. Então, com estrada em construção, haveríamos de ter frentes de obra pelo caminho, não haveríamos de ficar tão isolados como se a estrada já estivesse concluída e entregue ao dono. E assim foi. Não com tantas frentes de obra como teríamos gostado mas, mesmo assim, com umas quantas presenças humanas algo espaçadas. A estrada já estava toda terraplanada e na maior parte do percurso até já tinha o piso quase todo faltando apenas o alcatrão. E, afinal, em zonas que antigamente deviam estar no meio de nenhures, encontrámos uma ou outra cantina cujos proprietários nem deviam querer acreditar na sorte de lhes terem posto uma estrada à porta. Deve ter sido a diferença de saírem da pré-história para o pleno século XX sem que os obrigassem sequer a fazer algum requerimento em papel azul de 25 linhas. Curvas? Não as vimos. Uma quase linha recta com enormes extensões apenas rodeadas de capim virgem de há um ror de secas, chuvas e cacimbas a que se seguiam quilómetros de floresta compacta e impenetrável. E foi neste ínterim que apareceram as tais cantinas. Como tinham ido ali parar? A que propósito? Mistérios que não tive tempo de estudar mas que me fizeram admitir que deve ser preciso estar-se muito desesperado da vida para se decidir mudar para um sítio daqueles. Terra para arrependidos e penitentes, só pode.
Seria pelas 10 da manhã quando chegámos ao rio Save e eis que nos coube fazer a pré-inauguração da ponte que alguém nos disse ser projecto do Professor Edgar Cardoso. Também ainda lhe faltava a última camada de alcatrão e deve ter sido por isso que não nos cobraram portagem. Na verdade, as cabines dos portageiros ainda não estavam colocadas e nem sequer imagino se o pessoal já estaria recrutado. Obviamente, a obra ainda não estava entregue ao dono.
Passada a ponte, pusemos rodas na região dos landins, o sul do Save. Daquilo que consegui ver, Vila Franca do Save confundiu-se-me com o estaleiro da obra da ponte e como não voltei a passar por ali, fiquei-me pela impressão que trazia da outra margem: região pobre e com muito trabalho à espera dela.
Terra dos landins… «Landins» é como nós, portugueses, chamávamos a todos os povos a sul do rio Save. Ainda não estudei a etimologia da expressão mas talvez um dia investigue como ela nasceu. Agora, tenho mais que fazer pelo que, se um leitor me quiser ajudar, esteja à sua vontade.
Lembram-se os Caros Leitores do temor infligido pelas «tropas landins» nas partes do nosso Oriente, nomeadamente na Índia e em Macau? É que estes povos daqui têm uma estatura relativamente alta e quando se sentem espezinhados por pequenotes, são danados para a chapada. Eis por que nós os recrutávamos como tropas de elite e os enviávamos para Goa, etc. Também por isso mesmo, o aparecimento de etnias muito escuras naquelas paragens orientais onde o habitual é mais pardo que preto. Mas, pelos vistos, os landins não se fizeram rogados e tanto indostânicas como cataias se deixaram embevecer por estes grandalhões.
E agora, com outros tantos quilómetros pela frente até à Maxixe quantos os já feitos hoje, que fazemos? Vamos até Vilanculos e lá dormimos. São só mais 141 quilómetros, um saltinho.
Eis-nos no «Acampamento Central» do Parque Nacional da Gorongosa, centro de Moçambique.
Por louvável iniciativa do nosso «desempregado», entrámos na posse de um mapa do Parque com as estradas recomendadas para observação das várias espécies; o Miguel e eu deambulámos por ali a esmo mais a observar rodesianas do que postais ilustrados com outras espécies. Naqueles tempos, as rodesianas eram inglesas tropicais. Naqueles tempos também, a Rodésia estava unilateralmente independente pois a Velha queria entrega-la aos movimentos controlados por Moscovo tais como o ZANU e o ZAPU. Aliás, nem sei mesmo se naqueles tempos esses movimentos não eram só um e o spin off do ZANU não terá sido depois. Talvez. Mas agora não vou estudar isso porque está ali um macaco a espreitar para dentro do carro.
Naquele dia, àquela hora matinal, nós eramos os únicos turistas portugueses denotando que os nossos já sabiam o suficiente de macacadas. Ou então, que os portugueses não gostavam de se levantar tão cedo. Portanto, ou por falta de interesse (pecha grave) ou por mândria (pecha gravíssima), nós eramos a excepção que confirmava a regra de que a Gorongosa era para o proveito de estrangeiros.
[Num saltinho ao futuro, sabemos agora, 47 anos depois, que assim continua a ser: o turismo de portugueses na Gorongosa é diminuto a provar que continuamos a ter de macacadas o suficiente]
Com o Tó de mapa na mão, lá fomos ver a bicharada… e eu fui-me lembrando de que nós, portugueses, estávamos a ter uma importância capital na salvaguarda da «fronteira» do Ocidente naquela região de África. Enquanto nós por ali mandássemos, Moscovo não meteria o dente. Por nós e pela ajuda que estávamos a dar aos rodesianos. E lembrei-me do tabaco rodesiano que chegava aos mercados internacionais como se fosse português assim driblando o boicote que a ONU impusera a todo o comércio internacional da Rodésia. E lembrei-me do oleoduto Beira-Umtali que deveria passar não muito longe daquele sítio em que nos encontrávamos naquele preciso momento. E lembrei-me da «teoria» que dizia que se a África do Norte era árabe, por que é que a África do Sul não haveria de ser branca? Que os brancos estavam naquela região há mais tempo que os pretos… e outras deturpações da História que ignoravam o Império do Monomotapa, as ruínas do Zimbabwe, o Império Zulu, o próprio Shaka dito e tantas outras realidades que naquele momento não me ocorreram… O que, pelo nosso lado, estava em causa não era saber se os regimes futuros eram brancos, pretos ou rosés, o que interessava era que fossem ocidentalizados, não comunas. E lastimei para com os meus botões que nós, portugueses, tivéssemos sido tão desleixados com o desenvolvimento integrado de Moçambique em que só naquela altura estávamos a construir uma grande estrada longitudinal pois até então só havia comunicações transversais por imposição inglesa relativamente ao Transvaal (caminho de ferro de Lourenço Marques) e relativamente à Rodésia (comboios da Beira). E o prolongamento da linha férrea de Nacala até Vila Cabral (Lixinga, hoje), tinha sido muito recente. Uma vergonha tão vergonhosa como termos chegado ao 5 de Outubro de 1910 com 90% de analfabetos adultos. Agora, era uma corrida contra o tempo, a ver se conseguíamos em meia dúzia de anos fazer o que os nossos antepassados não tinham feito em séculos. E seria que os «ultras» de Américo Tomás deixariam esta corrida pelo desenvolvimento ser feita sustentadamente? Como é que eu, economista, poderia ajudar neste processo? Para já, cumprindo na íntegra a comissão de serviço militar e depois logo se haveria de ver… mas não se me daria qualquer cuidado voltar para Moçambique depois de passar à disponibilidade e trabalhar durante meia dúzia de anos a ajudar a puxar este processo de desenvolvimento para a frente. E o tempo perdido com o ensino superior. Por que é que a Beira e mesmo Nampula não tinham polos da Universidade de Lourenço Marques? Caramba, eram tantos os temas de desenvolvimento que me ocorriam que até já nem me lembrava da macacada. Mas, afinal, só me lembrava de temas relacionados com o investimento público. E os privados, por que não chamá-los para a corrida?
Até que dei por mim a passar pela terceira vez frente à «casa dos leões» e a constatar que eles deviam ter ido encomendar o jantar algures, lá para as bandas em que pastam as gazelas. E foi nesse caminho que vimos um hipopótamo em seco a trotar na savana ao nosso lado à mesma velocidade que o «herói». Felizmente, ao desviar a rota, fê-lo para o lado de fora e não contra nós. Um pouco à frente, já em terreno arborizado, um elefante (viemos a saber que se tratava da matriarca daquela manada), a bloquear-nos o caminho. Parei de imediato e engatei a marcha-a-trás mas deixei-me ficar o mais silencioso que era possível. Foi então que o resto da manada começou a cruzar a estrada com as outras fêmeas a protegerem a criançada. A matriarca só baixou a sua guarda quando a última «senhora» passou. Deixei que todas desaparecessem no mato e só então avancei. Sem dramas, a história acaba aqui. E quanto aos leões, nem vê-los.
Estava na hora de sairmos do Parque. Dirigimo-nos ao portão da saída (não me lembro se era o mesmo da entrada) e fomos até ao Inchope, a terra mais próxima e que era donde partia a estrada em vias de construção até Vila Franca do Save, 311 quilómetros lá para baixo.
Quer o Leitor acreditar no que tenho para lhe dizer? Se sim, tudo bem, continue a ler; se não, passe para a linha que se segue aos asteriscos (* * *). Então, se aqui está, fique sabendo que há 47 anos não havia telemóveis nem sequer máquinas fotográficas de bolso como hoje as temos para já não falar na qualidade tão razoável das fotos feitas com os próprios telemóveis. Pois é, naqueles idos nada disso existia e a frequência fotográfica era diminuta. Havia uns quantos carolas que eram apontados a dedo como os «maluquinhos das fotografias» mas a generalidade das pessoas não tinha sequer uma máquina fotográfica. Eu, por exemplo, não tinha uma máquina fotográfica mas tinha, isso sim, uma câmara de filmar. Só que tudo dava tanto trabalho que era mais fácil registar na memória e contar aos netos de seguida. Mas um dos meus companheiros devia ter uma máquina fotográfica pois não haveria outro modo de aparecer uma foto do nosso «herói» na floresta de Inhaminga com a porta traseira esquerda aberta à espera que Mrs. Livingston entrasse ou saísse. E onde será que guardei esse exemplar único? Na memória. E só. Portanto, venho aqui apresentar-me como «documento coevo» desta viagem e pedir perdão pelos lapsos de memória. Ao mesmo tempo, garanto que não farei como Fernão Lopes quando não se lembrava de coisas que se tivessem passado 47 anos antes de quando escrevia: ele, de certeza, inventava; eu floreio, admito, mas não invento.
Mas se aparecer por aí uma ou outra foto, Companheiros não hesitem em mandar-me publicá-las. Mas para não incorrer no problema de Fernão Lopes, o melhor é porem legendas.
Seguem-se os asteriscos que separam os crédulos dos incrédulos.
* * *
- Então, Miguel, a que horas é o despertar amanhã?
- Ora, se da Beira à Gorongosa são cerca de 150 quilómetros (viemos a saber que eram 136, não errou quase nada) e lá queremos estar à abertura do portão que é as 6, convém sairmos às 5 e levantarmo-nos às 4.
- Por mim, tudo bem. Que te parece, Tó? O Tó passava pelas brasas mas abriu um olho e disse que sim. Ainda hoje o Miguel e eu não temos a certeza sobre se o Tó sabia do que nós estávamos a falar. Mas a palavra estava dada e ele, sabendo ou não do que se tratava, honrou-a. É assim a vida de um Cavalheiro.
- Mas, oh Miguel! Não achas perigoso corrermos o risco de ir acordar a bicharada entregue aos sonos profundos da floresta? E se eles têm mau acordar? É que assim como há gente com mau feitio antes de tomar o pequeno-almoço, o mesmo pode acontecer com os leões e eles acharem que nós lhes servimos de pequeno-almoço. Isto era eu a tentar ganhar mais algum tempo de sono… mas não tive sorte nenhuma. Parece que ao pequeno-almoço os leões não são carnívoros… As coisas que estamos sempre a aprender. É como as avestruzes mamarem até ao ano de idade para não deixarem a mãe voltar a procriar…
Como o Miguel queria, estivemos uns bons minutos à espera que o portão da Gorongosa abrisse. E foi nesta espera que fizemos o ponto laboral da situação. À falta de guerra, o Tó foi o único de nós os três no completo desemprego; o Miguel trabalhou bem como «mestre cronógrafo» que é como quem diz «o despertador» e eu não fiz outra coisa se não trabalhar para eles, agarrado ao volante.
- Nós estamos de férias – disse um deles – e tu estás em missão de soberania. Trabalha para salvares a Pátria e não refiles porque, senão, dizemos ao Kaulza e vais preso.
E com esta lógica assassina, resignei-me e continuei agarrado ao volante como o homem do leme do Mostrengo que está no fim do mundo e que com três urros se pôs a chorar.
- A chorar? Que disparate! A chiar!!!
- E o homem do leme disse o quê?
- Disse para pores o carro a trabalhar que o guarda já abriu o portão.
Ultrapassado o ataque de non sense e ultrapassado o portão, entrámos na Gorongosa, o reino da bicharada.
Seguindo as indicações que ladeavam a estrada, dirigimo-nos ao «Acampamento Central» para, a partir daí, decidirmos como seria a visita. Mas uma decisão foi logo tomada: não dormiríamos na Gorongosa que devia ser sono pesado em Escudos; passaríamos o dia a vaguear pelo Parque e à hora do fecho iríamos a Gondola ou a Vila Machado procurar poiso para a noite.
(continua no próximo número que é já daqui a pouco, depois de breve intervalo pois a Gorongosa merece um número só para ela)
Desembatelonámos (desembarcámos de batelão) com a maior normalidade em Chupanga que também era conhecida por Lacerdónia. Algo me diz que por ali «reinou» algum Lacerda mas não me ative nessa questão. O Senhor Lacerda não entra na História minha conhecida e, pelo contrário, há outra particularidade que essa, sim, me saltou para a região dos neurónios logo que a tabuleta com o nome da localidade se pôs à frente dos meus olhos. A bem da verdade, a ideia não me saltou de imediato, tive que puxar pela cabeça. Aquele nome «Chupanga» escrito de outro modo, dizia-me qualquer coisa. Mas, o quê? Imaginei «Shupanga», pensei e BINGO! É ali que repousam os restos mortais de Mary Livingston vítima que foi do paludismo. E lembro-me que, apesar do seu anglicanismo, foi acolhida e tratada na missão jesuíta que ali havia. Só não sei se o episódio do «Doctor Livingston, I presume» foi antes ou depois do passamento desta Senhora.
Cemitério de Chupanga, túmulo de Mary Livingston
Perante esta recordação e tendo em vista evitar qualquer tipo de conflito de interesses, sugeri em silencio ao nosso benigno Xicuembo que embatelonasse de volta à sua Zambézia já que nós, agora em Sofala, nos havíamos de arranjar. Mrs Livingston, are you available to protect us? Feito o convite em silêncio, não esperei por resposta em voz alta. E se ela tivesse respondido audivelmente, eu havia de ter apanhado um cagaço tal que por certo, para mim, a viagem acabaria ali mesmo. Está na altura de perguntar ao Miguel se notou alguma alteração no lugar ao lado dele. Algum «fru fru» das vestimentas femininas do séc. XIX, algum sopro de camomila ou mensagem sibilina com «rrr» rolados… De qualquer modo, com Mrs ou sem Mrs, entrámos pela floresta de Inhaminga em total serenidade e até fizemos uma paragem da qual existe (não sei em que arquivo) a única foto feita em toda a viagem. Trata-se duma imagem do nosso «herói» a três quartos de trás com a porta esquerda traseira aberta. Mas se a nossa companhia discreta entrava ou saía, a imagem não a captou.
Chega de brincadeiras, deixemos Mrs Livingston na paz que bem merece depois de tanto ter penado por amor a Deus em paragens menos hospitaleiras para a sua alva tez que as da Velha Albion.
O nosso destino nesse dia era a Beira, dali a menos de 300 quilómetros. Se a estrada fosse boa, a meio da tarde estaríamos a fazer o check in no hotel. Qual? Varreu-se-me. Peço ajuda aos meus companheiros de viagem. Sei que não foi o icónico «Grande Hotel da Beira».
Poucas mas boas, as recordações que tenho deste troço. A primeira impressão positiva, a floresta que se não foi ali posta pela mão do homem, de tão ordenada, imita muito bem. Esquecido, andei agora à procura da espécie florestal ali predominante mas não encontrei. Venha daí - do lado da leitura - quem saiba e diga. Mas foram muitos quilómetros dentro de um túnel arbóreo que inspirava muita serenidade e harmonia com o mundo. E assim percorremos uma grande distância em paralelo com a fronteira do Parque da Gorongosa. E a bicharada, ordeira, não passou para o lado de cá nem se pôs à nossa frente. Isso ficaria para outra ocasião.
Outra boa impressão, a qualidade da estrada que parecia acabada de arranjar para nós passarmos. O tal trânsito de camiões que o Miguel temia deve ter sido desviado por rota alternativa. Por ali, não havia nada de especial.
Terceira recordação positiva, de cariz estético, a paragem de 10 ou 15 minutos em casa do Eng. Jorge Jardim para o Miguel cumprimentar as famosas manas. O Tó e eu não fomos convidados a entrar mas o que nós queríamos mesmo era chegar ao hotel, tomar banho e pormo-nos de patas ao ar. Até porque já sabíamos por experiência dos dias anteriores, que o homem dos horários haveria de querer que no dia seguinte nos levantássemos pouco depois de nos termos deitado. Mas há aqui uma anotação que eu não quero deixar passar e tem ela a ver com a facilidade com que um carro desconhecido com três Fulanos desconhecidos se aproximou do largo fronteiro da casa da família Jardim. Entrámos por ali dentro como se fossemos os donos de Moçambique inteiro ou como se aquilo fosse via pública. E o que é que isto quer dizer? Pois eu acho que quer dizer que a família Jardim se sentia segura, que ninguém lhes queria fazer mal, que se sentiam protegidos pelas populações no meio de que viviam. E esta é a grande bofetada nos da propaganda contrária que apresentaram o Eng. Jorge Jardim como um isto, como um aquilo e um mais não sei quê. Eu nunca estive pessoalmente com o Eng. Jardim, pouco mais sei dele do que o que a comunicação social dele dizia mas a ideia que dele faço é a de alguém que teve a coragem de enfrentar Moscovo nos seus desígnios imperialistas sobre Moçambique. E isso os comunas e os esquerdalhos (libertinos de esquerda não enquadrados partidariamente) não perdoam. E veja-se como na região da Beira a FRELIMO não levanta a cabeça a não ser à custa de muita trapaça eleitoral.
Eu nunca fui apresentado às célebres manas mas estive no largo fronteiro da casa delas no Dondo numa época em que elas eram (e continuam a ser) um símbolo da independência feminina, as algozes da misoginia. Tomara às Kardashians chegarem-lhes aos calcanhares.
Posto o que, feitos os salamaleques que o Miguel tinha por estético-importantes (ou seria para obter algum «salvo conduto» que nos permitisse vogarmos por ali serenamente?), era hora de um duche, algum descanso e prepararmo-nos para o que se seguisse.
Feito o check in no hotel e feitas as abluções típicas de um final de viagem por estradas com algum pó, eis-nos a caminho da sala de jantar, no último piso do hotel. E qual não foi o meu espanto quando vi que a dita sala de jantar estava apinhada e que, pelo sotaque, se tratava de americanos. Já não eram crianças nenhumas, lembro-me bem. Ao estilo de gente já reformada mas com saúde. Disse-me o sena que nos serviu que se tratava de um grupo de caçadores. Se aquela gente se pusesse toda aos tiros, duvido que restasse algum elefante ou búfalo que pudesse ir prevenir os sobrevivos das respectivas espécies de que o bicho homem ensandecera por completo. Não gostei de saber que a caça se organizava para grupos tão grandes e, passados estes 47 anos, temo que a mortandade não tenha cessado – só que, agora, clandestinamente e às mãos do comércio de marfim e da farmácia chinesa.
Com pensamentos algo plúmbeos devido ao tiroteio por diversão, limitei-me a olhar para fora enquanto jantávamos e tentei desviar as ideias para outros temas. E olhei para o «Rio dos Bons Sinais», ali mesmo por baixo do meu nariz. Foi Vasco da Gama que em 1498 assim chamou ao rio que então poderia estar (ou não) numa daquelas fases em que mais não é do que um braço do delta do «Zambeze». Quando a ligação ao grande rio se fecha (por assoreamento, creio), este rio menor junta-se ao «Lua-Lua» e formam o «Quá-Quá» mas o nome dado por Vasco da Gama mantém-se em qualquer situação. Não imaginava eu que dentro de cerca de 2 anos alguém me encarregaria de coordenar o projecto de redinamização do Porto de Quelimane. Missão essa nas vésperas do 25 de Abril de 1974, tudo ficou em «águas de bacalhau». Quem diria que bacalhau teve águas em Quelimane.
E, realmente, a actividade portuária estava reduzida em relação ao que eu dela esperava. Perguntado, o mesmo sena que nos servia informou que o rio estava cheio de matope (não disse assoreado, lembro-me) e que só barcos pequenos ali chegavam. - E vão até onde entregar a mercadoria aos barcos grandes? Não sabia, fez um gesto largo com a mão em direcção ao mar… Fiquei sem saber como era escoado o algodão e o melaço do açúcar (ou seria ainda só a cana?) mas, na verdade, por ali não havia actividade fluvial correspondente à economia que víramos no interior. Que estradas nos esperariam dali até à Beira?
E aí, o nosso «expert» em geografia, o Miguel, falou:
- Temos que sair muito cedo para apanharmos o primeiro batelão que sai de Mopeia. Caso contrário, arriscamo-nos a ficar numa bicha (ainda não se dizia «fila») de camiões e só conseguirmos atravessar o Zambeze ao fim do dia.
- E a que é que chamas «muito cedo»?
- Temos que nos levantar às 3 da manhã para começarmos a andar pelas 4 e chegarmos a Mopeia não muito depois das 6, se não apanharmos muito trânsito de camiões à nossa frente.
Lembro-me perfeitamente das expressões «protocolares» que o Tó e eu proferimos. Fique o Leitor tranquilo pois não as repetirei aqui.
Do mal, o menos: o nosso «herói» tinha comido e bebido à chegada a Quelimane para não ir para a cama com fome; na madrugada seguinte já não demoraríamos a satisfazer-lhe as precisões.
Às 4 da manhã rodei a chave da ignição e o «herói» despertou com a sua habitual boa disposição. Dos cerca de 200 quilómetros que nos separavam do destino, o cais fluvial de Mopeia, fizemos quase metade em noite de breu mas a luz começou pelas 5 e tal da manhã e às 6 e picos estávamos na pequena fila de candidatos à primeira viagem diária do batelão. À nossa frente, dois ou três carros ligeiros e apenas um camião. Sobrava espaço pois o batelão era um «cacilheiro» dos grandes. Chamavam-lhe batelão certamente que por tradição e porque entrávamos por uma ponta e saíamos pela outra.
E com esta «mania» de acordar antes das galinhas, fiquei sem ver o que nos rodeava em grande parte do percurso. Mas presumo que não fosse muito diferente do que vi, luz alta: estrada construída em aterro ao estilo «dique», terrenos circundantes que dariam para arrozais se as enchentes não fossem tão fortes, gado em pastoreio extensivo, nada mais que condutor atilado conseguisse ver sem correr o risco de pôr o carro a pique do lado de fora da estrada.
Entrados no batelão, foi o mesmo preenchido com mais carga ligeira e só o tal único camião que nos antecedia.
- Então, Miguel, onde está a tal bicha de camiões?
- Não sei, mas antes assim do que com mais outros que desequilibrassem a carga do batelão.
E a travessia fez-se com todo o equilíbrio, sem sustos nem nada de especial para contar. O Zambeze estava benigno, o Xicuembo não tinha ficado no cais de Mopeia, viera connosco até à margem sul, a Chupanga.
Saídos do Molocué, o nosso destino era o Hotel do Chuabo na avenida marginal de Quelimane. Cerca de 300 quilómetros, nada que assustasse carro valente e gente pertinaz. Tudo dependeria da qualidade das estradas já que sabíamos de antemão que alcatrão seria coisa que não encontraríamos. Mas como sabíamos também que uma parte significativa do algodão chegava ao porto de Quelimane por caminho de ferro, admitimos duas hipóteses: ou as estradas eram irrelevantes para a economia do algodão e estariam ao abandono ou o comboio não ia àquela zona da Zambézia e as estradas estariam esburacadas por causa do excesso de camiões. Ah! Gente incrédula nas virtudes dos governantes! As estradas estavam perfeitamente utilizáveis e fizemos um passeio transzambeziano de cariz turístico, nada a ver com stressantes guias de marcha militares.
Lembro-me – apesar do empilhamento dos calendários já gastos – que parámos numa cantina para o almoço em vez de comermos em andamento até porque eu sempre gostei de ter o nosso «herói» bem atestado e ali havia uma bomba de gasolina. Lembro-me que o «herói» almoçou gasolina mas do nosso almoço já não me lembro. O mais certo é ter sido o famoso «frango à cafreal» mas os meus companheiros de viagem que confirmem ou corrijam. O Xicuembo não é aqui chamado a depor, ele não almoçou.
Pelo que eu não esperava era pela continuação dos cajueiros. Não tenho dúvidas de que aquela gente não dependia apenas do trabalho nas plantações de algodão, tinha também de seu. E essa condição de proprietário dá uma dignidade à pessoa que se topa à distância. E lá pensei eu novamente que no futuro – fosse ele quando fosse, tinha então acabado a Guerra do Vietname e tudo indicava que os próximos alvos mundiais a abater seríamos nós – os comunistas teriam problemas por ali. E, passada a tal dezena de anos que já referi à saída de Nampula, repetiram-se aqui os ditos problemas com a RENAMO a «passar a perna» à FRELIMO.
E à medida que fomos descendo, fui-me lembrando dos «prazos» e das concessões às companhias majestáticas que por ali tinham existido, lembrei-me dos jesuítas que ali fizeram guerra aos «donos» dessas majestades todas à semelhança do que o Padre António Vieira fizera no Nordeste brasileiro contra os «coronéis». E lembrei-me do Padre (Diogo?) Furtado de Mendonça, jesuíta ele também, que no séc. XVIII (?) fez um dicionário sena-português e fixou a gramática dessa língua local, lembrei-me da guerra que os ingleses do açúcar («Sena Sugar» e que tais) fizeram a essa política de dignificação das gentes locais conseguindo que a Companhia de Jesus fosse então expulsa de Moçambique. Mais me lembrei de que foram os franciscanos que, combinados com as populações, esconderam os jesuítas renitentes na saída até que, ameaçados de serem também eles expulsos, se renderam à evidência de que havia negócios diplomáticos mais poderosos do que os «cordelinhos» que eles conseguiam mexer. Um dos últimos jesuítas a ser posto no cais de embarque terá sido precisamente o P. Furtado de Mendonça que embarcou num navio francês com destino ao Egipto para daí passar a pé ao Mediterrâneo e daí a Lisboa. Mas ao largo da Somália o Padre caiu à cana com o paludismo que trazia, ninguém lhe conseguiu valer e morreu. Diz quem estudou o assunto (a própria Companhia de Jesus) que do diário de bordo desse navio consta que o mar estava encapelado, que a cerimónia de entrega do corpo defunto ao mar se fez na presença de inúmeros passageiros e que no momento em que o corpo entro nas águas, o mar se acalmou de modo inexplicável. Sim, de tudo isso me fui lembrando à medida que íamos descendo a Zambézia…
Passámos ao largo de Mocuba, de Nicoadala apenas vimos as placas indicativas de direcção nos entroncamentos com a nossa estrada e entrámos na região baixa, a dos palmares. Esta, uma zona de serenidade como quem por ali anda a ouvir os côcos a crescer. Não sei quando é a faina da apanha dos côcos mas, havendo-a, não era naquela época.
E assim foi que numa penada passámos da economia do algodão para a do açúcar e finalmente para a da copra; as duas primeiras com os povos a fazerem pé de meia com o caju e na terceira com as pedras semipreciosas do aluvião que a todos por ali viu nascer.
Foi, pois, com toda a serenidade que entrámos em Quelimane e nos encaminhámos ao Hotel.