Um velho Timbira, coberto de glória, Guardou a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Dizia prudente: - "Meninos, eu vi!
"Eu vi o brioso no largo terreiro Cantar prisioneiro Seu canto de morte, que nunca esqueci: Valente, como era, chorou sem ter pejo; Parece que o vejo, Que o tenho nest’hora diante de mi.
"Eu disse comigo: Que infâmia d’escravo! Pois não, era um bravo; Valente e brioso, como ele, não vi! E à fé que vos digo: parece-me encanto Que quem chorou tanto, Tivesse a coragem que tinha o Tupi!"
Assim o Timbira, coberto de glória, Guardava a memória Do moço guerreiro, do velho Tupi. E à noite nas tabas, se alguém duvidava Do que ele contava, Tornava, prudente: "Meninos, eu vi!".
Isto dizendo, o miserando velho A quem Tupã tamanha dor, tal fado Já nos confins da vida reservada, Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias Da sua noite escura as densas trevas Palpando. - Alarma! alarma! - O velho pára! O grito que escutou é voz do filho, Voz de guerra que ouviu já tantas vezes Noutra quadra melhor. - Alarma! alarma! - Esse momento só vale a pagar-lhe Os tão compridos trances, as angústias, Que o frio coração lhe atormentaram
De guerreiro e de pai: - vale, e de sobra. Ele que em tanta dor se contivera, Tomado pelo súbito contraste, Desfaz-se agora em pranto copioso, Que o exaurido coração remoça.
A taba se alborota, os golpes descem, Gritos, imprecações profundas soam, Emaranhada a multidão braveja, Revolve-se, enovela-se confusa, E mais revolta em mor furor se acende. E os sons dos golpes que incessantes fervem, Vozes, gemidos, estertor de morte Vão longe pelas ermas serranias Da humana tempestade propagando Quantas vagas de povo enfurecido Contra um rochedo vivo se quebravam.
Era ele, o Tupi; nem fora justo Que a fama dos Tupis - o nome, a glória, Aturado labor de tantos anos, Derradeiro brasão da raça extinta, De um jacto e por um só se aniquilasse.
- Basta! Clama o chefe dos Timbiras, - Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste, E para o sacrifício é mister forças. -
O guerreiro parou, caiu nos braços Do velho pai, que o cinge contra o peito, Com lágrimas de júbilo bradando: "Este, sim, que é meu filho muito amado!
"E pois que o acho enfim, qual sempre o tive, "Corram livres as lágrimas que choro, "Estas lágrimas, sim, que não desonram."
"Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de via Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra, Sem arrimo e sem pátria vagando, Rejeitado da morte na guerra, Rejeitado dos homens na paz, Ser das gentes o espectro execrado; Não encontres amor nas mulheres, Teus amigos, se amigos tiveres, Tenham alma inconstante e falaz!
"Não encontres doçura no dia, Nem as cores da aurora te ameiguem, E entre as larvas da noite sombria Nunca possas descanso gozar: Não encontres um tronco, uma pedra, Posta ao Sol, posta às chuvas e aos ventos, Padecendo os maiores tormentos, Onde possas a fronte pousar.
"Que a teus passos a relva se torre; Murchem prados, a flor desfaleça, E o regato que límpido corre, Mais te acenda o vesano furor; Suas águas depressa se tornem, Ao contacto dos lábios sedentos, Lago impuro de vermes nojentos, Donde fujas com asco e terror!
"Sempre o céu, como um teto incendido, Creste e punja teus membros malditos E oceano de pó denegrido Seja a terra ao ignavo tupi! Miserável, faminto, sedento, Manitôs lhe não falem nos sonhos, E do horror os espectros medonhos Traga sempre o cobarde após si.
"Um amigo não tenhas piedoso Que o teu corpo na terra embalsame, Pondo em vaso d’argila cuidoso Arco e frecha e tacape a teus pés! Sê maldito e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és."
"Por amor de um triste velho, Que ao termo fatal já chega, Vós, guerreiros, concedestes A vida a um prisioneiro. Acção tão nobre vos honra, Nem tão alta cortesia Vi eu jamais praticada Entre os Tupis, - e mais foram Senhores em gentileza.
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"Eu porém nunca vencido, Nem nos combates por armas, Nem por nobreza nos actos; Aqui venho, e o filho trago. Vós o dizeis prisioneiro, Seja assim como dizeis; Mandai vir a lenha, o fogo, A maça do sacrifício E a muçurana ligeira: Em tudo o rito se cumpra! E quando eu for só na terra, Certo acharei entre os vossos, Que tão gentis se revelam, Alguém que meus passos guie; Alguém, que vendo o meu peito Coberto de cicatrizes, Tomando a vez de meu filho, De haver-me por se ufane!" Mas o chefe dos Timbiras, Os sobrolhos encrespando, Ao velho Tupi guerreiro Responde com tôrvo acento:
- Nada farei do que dizes: É teu filho imbele e fraco! Aviltaria o triunfo Da mais guerreira das tribos Derramar seu ignóbil sangue: Ele chorou de cobarde; Nós outros, fortes Timbiras, Só de heróis fazemos pasto.
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Do velho Tupi guerreiro A surda voz na garganta Faz ouvir uns sons confusos, Como os rugidos de um tigre, Que pouco a pouco se assanha!
- Filho meu, onde estás? - Ao vosso lado; Aqui vos trago provisões; tomai-as, As vossas forças restaurai perdidas, E a caminho, e já! - Tardaste muito! Não era nado o Sol quando partiste, E frouxo o seu calor já sinto agora! - Sim, demorei-me a divagar sem rumo, Perdi-me nestas matas intrincadas, Reaviei-me e tornei; mas urge o tempo; Convém partir e já! - Que novos males Nos resta de sofrer? - que novas dores, Que outro fado pior Tupã nos guarda? - As setas da aflição já se esgotaram, Nem para novo golpe espaço intacto Em nossos corpos resta. - Mas tu tremes! - Talvez do afã da caça.... - Oh filho caro! Um quê misterioso aqui me fala, Aqui no coração; piedosa fraude Será por certo, que não mentes nunca! Não conheces temor, e agora temes? Vejo e sei: é Tupã que nos aflige, E contra o seu querer não valem brios. Partamos!... E com mão trémula, incerta Procura o filho, tacteando as trevas Da sua noite lúgubre e medonha. Sentindo o acre odor das frescas tintas, Uma ideia fatal ocorreu-lhe à mente... Do filho os membros gélidos apalpa, E a dolorosa maciez das plumas Conhece estremecendo: - foge, volta, Encontra sob as mãos o duro crânio, Despido então do natural ornato!... Recua aflito e pávido, cobrindo Às mãos ambas os olhos fulminados, Como que teme ainda o triste velho De ver, não mais cruel, porém mais clara, Daquele exício grande a imagem viva Ante os olhos do corpo afigurada. Não era que a verdade conhecesse Inteira e tão cruel qual tinha sido; Mas que funesto azar correra o filho, Ele o via; ele o tinha ali presente; E era de repetir-se a cada instante. A dor passada, a previsão futura E o presente tão negro, ali os tinha; Ali no coração se concentrava, Era num ponto só, mas era a morte!
- Tu prisioneiro, tu? - Vós o dissestes. - Dos índios? - Sim. - De que nação? - Timbiras. - E a muçurana funeral rompeste, Dos falsos manitôs quebrastes maça... - Nada fiz... aqui estou. - Nada! - Emudecem; Curto instante depois prossegue o velho: - Tu és valente, bem o sei; confessa, Fizeste-o, certo, ou já não fôras vivo! - Nada fiz; mas souberam da existência De um pobre velho, que em mim só vivia.... - E depois?... - Eis-me aqui. - Onde fica essa taba?
- Na direção do Sol, quando transmonta. - Longe? - Não muito. - Tens razão: partamos. - E quereis ir?... - Na direção do acaso.
Soltai-o! - diz o chefe. Pasma a turba; Os guerreiros murmuram: mal ouviram, Nem pode nunca um chefe dar tal ordem! Brada segunda vez com voz mais alta, Afrouxam-se as prisões, a embira cede, A custo, sim; mas cede: o estranho é salvo.
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Timbira, diz o índio enternecido, Solto apenas dos nós que o seguravam: És um guerreiro ilustre, um grande chefe, Tu que assim do meu mal te comoveste, Nem sofres que, transposta a natureza, Com olhos onde a luz já não cintila, Chore a morte do filho o pai cansado, Que somente por seu na voz conhece. - És livre; parte. - E voltarei. - Debalde. - Sim, voltarei, morto meu pai. - Não voltes! É bem feliz, se existe, em que não veja, Que filho tem, qual chora: és livre; parte! - Acaso tu supões que me acobardo, Que receio morrer? - És livre; parte! - Ora não partirei; quero provar-te Que um filho dos Tupis vive com honra, E com honra maior, se acaso o vencem, Da morte o passo glorioso afronta.
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- Mentiste, que um Tupi não chora nunca, E tu choraste!... parte; não queremos Com carne vil enfraquecer os fortes.
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Sobresteve o Tupi: - arfando em ondas O rebater do coração se ouvia Precípite. - Do rosto afogueado Gélidas bagas de suor corriam: Talvez que o assaltava um pensamento... Já não... que na enlutada fantasia, Um pesar, um martírio ao mesmo tempo, Do velho pai a moribunda imagem Quase bradar-lhe ouvia: - Ingrato! Ingrato! Curvado o colo, taciturno e frio. Espectro d’homem, penetrou no bosque!
Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi.
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Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci; Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi.
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Já vi cruas brigas, De tribos imigas, E as duras fadigas Da guerra provei; Nas ondas mendaces Senti pelas faces Os silvos fugaces Dos ventos que amei.
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Andei longes terras Lidei cruas guerras, Vaguei pelas serras Dos vis Aimoréis; Vi lutas de bravos, Vi fortes - escravos! De estranhos ignavos Calcados aos pés.
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E os campos talados, E os arcos quebrados, E os piagas coitados Já sem maracás; E os meigos cantores, Servindo a senhores, Que vinham traidores, Com mostras de paz.
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Aos golpes do imigo, Meu último amigo, Sem lar, sem abrigo Caiu junto a mi! Com plácido rosto, Sereno e composto, O acerbo desgosto Comigo sofri.
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Meu pai a meu lado Já cego e quebrado, De penas ralado, Firmava-se em mi: Nós ambos, mesquinhos, Por ínvios caminhos, Cobertos d’espinhos Chegamos aqui!
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O velho no entanto Sofrendo já tanto De fome e quebranto, Só qu’ria morrer! Não mais me contenho, Nas matas me embrenho, Das frechas que tenho Me quero valer.
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Então, forasteiro, Caí prisioneiro De um troço guerreiro Com que me encontrei: O cru dessossêgo Do pai fraco e cego, Enquanto não chego Qual seja, - dizei!
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Eu era o seu guia Na noite sombria, A só alegria Que Deus lhe deixou: Em mim se apoiava, Em mim se firmava, Em mim descansava, Que filho lhe sou.
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Ao velho coitado De penas ralado, Já cego e quebrado, Que resta? - Morrer. Enquanto descreve O giro tão breve Da vida que teve, Deixai-me viver!
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Não vil, não ignavo, Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não coro Do pranto que choro: Se a vida deploro, Também sei morrer.
Em larga roda de novéis guerreiros Ledo caminha o festival Timbira, A quem do sacrifício cabe as honras, Na fronte o canitar sacode em ondas, O enduape na cinta se embalança, Na destra mão sopesa a iverapeme, Orgulhoso e pujante. - Ao menor passo Colar d’alvo marfim, insígnia d’honra, Que lhe orna o colo e o peito, ruge e freme, Como que por feitiço não sabido Encantadas ali as almas grandes Dos vencidos Tapuias, inda chorem Serem glória e brasão d’imigos feros.
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"Eis-me aqui", diz ao índio prisioneiro; "Pois que fraco, e sem tribo, e sem família, "As nossas matas devassaste ousado, "Morrerás morte vil da mão de um forte."
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Vem a terreiro o mísero contrário; Do colo à cinta a muçurana desce: "Dize-nos quem és, teus feitos canta, "Ou se mais te apraz, defende-te." Começa O índio, que ao redor derrama os olhos, Com triste voz que os ânimos comove.