NEM POR OSMOSE – 2
SOLIDÃO
Afirmou Gabriel García Márquez que um artista não é um intelectual mas sim um sentimental. Ora, como ele próprio dizia, um escritor é um artista e, portanto, silogismo puro, conclui-se que um escritor é um sentimental. E há-os lamechas mais uns que outros. Livros grossos, lamechões; livros finos, de cordel.
Mas neste que agora li – Eu não venho fazer um discurso – nada há de pieguice e dá mesmo para pôr em dúvida o silogismo anterior. Trata-se duma compilação dos principais discursos que García Márquez fez por aqui e por ali, começando pelo que proferiu na cerimónia de conclusão do curso secundário em Novembro de 1944 (onde preveniu a audiência que não ia ali fazer um discurso) até ao da entrega do Prémio Nobel em Dezembro de 1982 passando por hierarquias e tempos intermédios e posteriores, quase sempre bem-humorado, muitas vezes a atirar para o filósofo ou historiador mas nunca mostrando desalento.
E como não poderia deixar de ser, o tema da solidão assume importância fulcral num dos seus discursos mais importantes, precisamente o do Prémio Nobel:
A América Latina é uma região diferenciada do resto do mundo quanto à construção da sua identidade, diferenciação esta que lhe define o isolamento, a solidão. [Ela] não quer ser nem tem de ser um peão sem vontade própria, nem tem nada de quimérico que os seus desígnios de independência e originalidade se convertam numa aspiração ocidental. (…) Por que razão a originalidade que nos é admitida sem reservas na literatura nos é negada com todo o tipo de suspicácias nas nossas tão difíceis tentativas de mudança social? Porquê pensar que a justiça social que os europeus progressistas tentam impor nos seus países não pode ser também um objectivo latino-americano com métodos distintos em condições diferentes? – Talvez por causa dessa diferença de métodos, digo eu – A violência e a dor desmesuradas da nossa história são o resultado de injustiças seculares e amarguras sem conta e não uma confabulação urdida a três mil léguas da nossa casa. Porém, muitos dirigentes e pensadores europeus assim julgaram, com o infantilismo dos avós que esqueceram as loucuras frutíferas da sua juventude, como se não fosse possível outro destino senão viver à mercê dos grandes donos do mundo. É este, amigos, o tamanho da nossa solidão. (pág. 31 e seg.) Enfim, o apelo que faz em várias passagens: Deixem-nos viver a nossa Idade Média! Como quem diz «não se metam nas nossas vidas».
Contudo, reconhece que a única criatura mítica que a América Latina produziu é o ditador militar de finais do século passado e princípios do actual [o XX]. Muitos deles, aliás, caudilhos liberais que acabaram convertidos em tiranos bárbaros.
Duas notas humorísticas:
• A relativa àquele amigo tão inábil para trabalhos manuais cujas mãos eram «incapazes de fazer passar uma agulha pelo rabo de um camelo»;
• A caligrafia daquele outro que «parece feita com pena de ganso e pelo próprio ganso cujos traços de vampiro fariam uivar de pavor os mastins na névoa da Transilvânia».
E é ao som dos tristes uivos dos mastins que assistimos ao penoso desenrolar da Idade Média na América Latina.
Com fé no futuro, aguardemos pelo seu Renascimento mas, contudo, nem por osmose no manuseio de livros esperançosos essa fé nos parece inquebrantável.
Lisboa, Janeiro de 2016
Henrique Salles da Fonseca