PORTUGAL, CRIAÇÃO DE D. AFONSO HENRIQUES
Tem-se instituído como regra entre muitos estudiosos da história que esta decorre sobretudo das grandes correntes sociais e dos movimentos colectivos – étnicos, militares, económicos, políticos, religiosos – e é frequentemente verdade. Mas é também verdade que, em circunstâncias específicas, surgem indivíduos que imprimem à história dos povos um curso que não era à partida, de nenhum modo, inevitável. Confúcio, Buda, Tamerlão, Júlio César, Jesus, Alexandre, Maomé, Sócrates, Galileu, Newton, Napoleão, Einstein – mas também Átila, Lénine, Hitler, Churchill – foram alguns dos vultos que inflectiram a história da humanidade, para o bem e para o mal.
O nosso país, pela sua permanência como ultra-minoritário na Península Ibérica (existe há quase 900 anos, constituindo com a Dinamarca o duo dos Estados mais antigos da Europa) e sobretudo pela sua projecção no mundo, pela língua e outros factores, que vai desde o Estado brasileiro do Acre, a 500 km do Pacífico, até Timor e Macau, no outro lado do mesmo Pacífico, passando pela África, com mais de 40 milhões de utentes do português e mais alguns em diversos pontos da Ásia, constitui uma das realidades mais improváveis do nosso tempo, só possível por uma sucessão de factos excepcionais.
Porém o facto mais determinante residiu, como é lógico, na sua criação como Estado independente em 1143. E para esse evento fundador foi decisiva a figura de D. Afonso Henriques, ibn Arrik como lhe chamaram os mouros. Todos sabemos isso, não é novidade. Dirijo hoje porém a minha atenção para a filiação do príncipe: o pai, D. Henrique, oriundo da Borgonha, era um cavaleiro franco, isto é, protofrancês de origem germânica, e tinha vindo à Península, com o primo Raimundo, no âmbito da campanha da Abadia de Cluny para recristianizar a Ibéria, reforçando a reconquista cristã iniciada por Pelágio. Neste movimento teve papel importante o influente abade Hugo de Cluny, tio da rainha D. Constança, mulher do rei Afonso VI de Leão e Castela.
Tendo D. Henrique falecido jovem, seu filho Afonso, ainda criança, não perdeu a noção da sua identidade e ajudado pela acção pedagógica de Egas Moniz e pelo apoio decidido da nobreza do Condado de Portucale, rival acesa dos nobres da Galiza, concebeu muito cedo o projecto dum reino independente. Dotado dum excepcional vigor físico e anímico e de apoios valorosos (ex.: Gonçalo Mendes da Maia), foi determinante na concretização do novo Estado cujas fronteiras alargou até ao Tejo e parte do Alentejo Norte.
É verdade que ainda tentou algumas vezes conquistar territórios na Galiza, com escasso êxito e sem continuidade. Veio, sim, a concretizar o seu objectivo maior: o nascimento dum novo reino, separado e independente, chamado Portugal.
Se observarmos o que ocorreu no resto da Península Ibérica, verificamos que o reino de Leão e Castela, cedo unificado e que já absorvera a Galiza, e o de Aragão, que veio a incluir Navarra e a Catalunha, se vieram expandindo para o sul, à medida que progrediu a reconquista cristã, até incluírem em 1492 toda a Andaluzia (Al Andalus islâmico) no reinado dos Reis Católicos, cuja união definiu praticamente o território da actual Espanha, 5,5 vezes maior que Portugal e com 4 vezes mais população.
Se tivermos em conta o projecto alternativo da mãe de D. Afonso Henriques, a condessa D. Teresa que visava a unificação com a Galiza e chegou a nomear governador de Coimbra o seu valido galego Fernão Peres de Trava, restam poucas dúvidas de que a sequência natural dessa política seria a extensão para sul do reino da Galiza, no seio do qual Portucale seria apenas uma província. No oeste cristão todos falavam a língua galaica (Afonso X, o Sábio, avô de D. Dinis, embora rei de Leão e Castela, só escrevia a sua notável poesia em galaico-português porque considerava o castelhano demasiado “áspero”) e sem a ocorrência de outros imprevistos, o movimento unificador dos Reis Católicos teria abrangido naturalmente Portugal – ou melhor, a Galiza ampliada até o Algarve.
Sem o reino criado por D. Afonso Henriques não teria havido tão pouco uma dinastia de Aviz (D. João I era filho natural do rei D. Pedro I, como se sabe) nem teria havido a Ínclita Geração, nem a figura do Infante D. Henrique e a Ordem de Cristo, determinantes para a gesta dos Descobrimentos e a expansão de Portugal e da língua portuguesa no mundo. Recordo que o britânico Martin Page considerou no seu livro que Portugal criou no séc. XVI “ a primeira aldeia global “. Teria havido decerto outros factores, mas é proibido fazer vaticínios nesta área – permanecia a posição geográfica, favorável à abertura e à aventura.
Resta a certeza de que, sem a determinação e a coragem de D. Afonso Henriques e dos seus companheiros, tudo teria sido diferente.
Neste ano de 2014 a sua cidade natal, Guimarães, património da humanidade e capital europeia da cultura, bela, e agora ainda mais bela depois dum notável trabalho de recuperação por parte da municipalidade, aguarda ainda a visita de todos aqueles que se queiram actualizar.
Façam como eu e vão a Guimarães tomar um banho de portugalidade. A cidade bem o merece.
Eugénio Motta