As testemunhas saíram rapidamente, de fininho, e o organizador esperou que os monges aparecessem para “prestar contas” ao Dom Abade.
Este nada vira, ouvira ou sentira e estava extremamente curioso para saber o que se teria passado, tanto mais que as testemunhas tinham ido embora sem falarem com alguém.
No refeitório estavam as garrafas que sobraram – muitas delas vazias – uns quantos copos espalhados pelas diversas mesas, mas tudo arrumado, sem o menor sinal de qualquer distúrbio.
- Meu amigo, afinal o que se passou aqui, que ninguém viu a não ser as testemunhas à chegada? Não se ouviu um ruído, uma voz, nada?
- Dom Abade, a única coisa que lhe posso dizer é que nem eu nem qualquer das testemunhas tocou nessas garrafas! Mas quanto a contar-lhe o que se passou... impossível. Eu seria amarrado e mandado para um sanatório de loucos e, como pode imaginar é tudo quanto eu não quero!
- Nem em segredo de confissão?
- Nem assim, Dom Abade, também meu amigo. Gostaria que o senhor me dissesse se lhe devo alguma coisa, se notou algum estrago, enfim, quero sair daqui de consciência limpa.
- Não nos deve nada. Está tudo perfeito e isso ainda mais me intriga.
- Então, se me der licença gostaria de ir novamente até ao altar de São Pedro.
- À vontade. Já sabe o caminho.
- Muito obrigado por tudo. Quem sabe se um dia eu ainda lhe conte alguma coisa. Vou pensar nisso. E terá que ser em segredo de confissão e com um psicólogo ao lado para que me julguem louco!
A caminho do altar já foi ouvindo:
- E então gostaste do Encontro?
Olhou à sua volta, a Igreja vazia e reconheceu, no seu íntimo a voz de Simão Pedro.
Ajoelhou frente ao altar e respondeu sem abrir a boca:
- Querido São Pedro. Creio que jamais alguém terá tido um presente dos céus como este. Estou tão emocionado que tenho que ir repousar a cabeça. Mas antes vim dizer-vos só: Obrigado.
- Agora vou eu ver o que eles terão a me dizer! E, se tiver oportunidade, não deixarei de te transmitir.
- Obrigado. Muito obrigado.
Nem para casa foi. Precisava digerir tudo aquilo e precisava de solidão. No primeiro hotel que encontrou pediu um quarto sossegado, sem ruídos de rua e que lhe levassem algo para comer e uma garrafa de vinho.
Ele mesmo estava sem saber se aquilo a que tinha assistido fora real ou só um sonho, e se estaria ainda a sonhar.
O hotel deu-lhe um quarto no último andar, janelas de vidro duplo, e uma bela vista para o “seu” Mosteiro.
Feliz mas confuso – e com alguma fome! – começou por ir assinalando na lista que inicialmente tinha feito, para saber quem tinha estado presente.
Logo de entrada notou a falta de Gil Vicente! Porquê? Uma personagem tão importante! Estranho.
Ouviu então aquela voz, já sua conhecida:
- Gil Vicente continua melindrado porque teimam em não lhe reconhecer o mérito de ter feito, por suas mãos, aquele maravilhoso ostensório que está no Museu. Diz que se incomoda quando dizem que “se atribui a Gil Vicente” em vez de afirmarem diretamente que foi obra sua. Por isso não apareceu!
- E Fernão Mendes Pinto?
- O mesmo. Levaram séculos para lhe reconhecer o valor e a veracidade do que escreveu! E ainda se sente insultado quando por maledicência lhe chamavam o “Fernão Mentes? Minto!” querendo fazer graça que o ofendia.
- Duas jóias na nossa literatura! Se houver um próximo Encontro serão os primeiros a convidar.
Continuava a correr a lista e via que teria sido impossível que todos tivessem comparecido. O número dos que apareceram já daria para ali terem ficado até... até...
Só então reparou que uma grande quantidade deles estava anotada numa segunda folha! Talvez São Pedro tivesse, ele mesmo visto que seriam demais e não “olhou” para esta outra página.
Lá estavam, do Brasil, Machado de Assis, José de Alencar, Gonçalves Dias, Castro Alves, Monteiro Lobato, Euclides da Cunha, Raul Pompeia, Lima Barreto, Nelson Rodrigues, os poetas Mário de Andrade, Vinicius de Morais e Carlos Drummond de Andrade, os Inconfidentes Tomás António de Gonzaga que foi deportado para Moçambique, Gregório de Matos e Cláudio Manuel da Costa, e ainda mais uns tantos que o Brasil foi, e é, rico em artistas; de Angola, Uanhenga Xitu, Ferreira da Costa, Alexandre Lobato, Lucio Lara, e mais e mais, de Moçambique Noémia de Sousa (esteve em Beja !), Malangatana, Glória de Sant’Anna, Rui de Noronha, e de Portugal outra infinidade a começar por Santo António e seus Sermões, João de Deus, Julio Diniz, Fialho de Almeida, Jaime Cortesão, Alves Redol, Teófilo Braga, Raul Brandão, Miguel Torga, o Dr. Adolfo Rocha, e... para que reler mais esta interminável lista?
Pensou:
- Quem sabe ainda organizarei outro Encontro. Mas para já vou ver se consigo “digerir” este!
Saboreava o ter visto, e ouvido, personagens quase míticas como Dom Diniz e seu avô Afonso X, Dom Pedro duque de Coimbra, parecia ouvir Bandarra a falar sobre as suas profecias que só se viriam a confirmar daqui a... um monte anos, entretanto os olhos iam-se fechando, começava a ver um céu estrelado e a ouvir Abraão Zacuto a mostrar-lhe as constelações e como poderia navegar, depois, com a voz sempre suave de Alda Lara, que lhe recitava um dos seus poemas. Adormeceu!
E continuou a sonhar. Sonhou com livros, com os autores e a ver uma miríade de leitores a quererem todos comprar as exíguas edições.
Tudo no seu sonho em vez de lhe dar descanso à cabeça, que continuava entre feliz e confusa, mais o confundiam.
Umas horas depois sossegou. Acordou tarde. Olhou em redor e procurava alguma coisa que não sabia o que era.
- Será que sonhei tanto tempo e com tantos escritores. E porquê estou a dormir neste hotel em frente ao Mosteiro da Batalha? Como posso ter a certeza que vi o grande Rei Dom Diniz e tantos escritores? Será que estou a ficar louco?
Viu a seu lado as listas dos “convidados” e pensou que teria sido uma “indigestão” literária que lhe tinha feito mal à cabeça. Mas outra lista, pequena tinha os nomes duns amigos, as testemunhas.
Chamou um deles pelo telefone. Atendeu a mulher.
- O Henrique ainda dorme. Chegou ontem muito perturbado e não quis falar sobre o que se tinha passado. De princípio até pensei que tinha sofrido um acidente, mas está muito bem de saúde. Mas a cabeça... está um pouco febril.
Chamou outro. A informação que recebeu não variou muito.
O terceiro, mais calmo atendeu.
- Manel, estou confuso. Queres-me dizer o que se passou ontem?
- Mais confuso estou eu e, como sabes, costumo ter um raciocínio calmo. Mas entre confuso e calmo estou maravilhado com o que vimos.
- Temos que nos encontrar. Hoje não, que eu estou demasiado baralhado. Amanhã, num lugar onde ninguém nos ouça.
- Antes de desligares: porque não convidaste os teus dois bisavôs? E o Saramago?
- Não me digas nada porque estou com medo de ter ficado avariado da cabeça. Amanhã com mais calma falaremos. Mas sobre o Saramago posso já adiantar-te que, para mim é persona non grata. Um cara que foi mau, vingativo, perseguiu os colegas do jornal, e por fim escreveu livros duma senilidade nojenta! Nem o São Pedro sabe por onde ele anda! Certamente em lugar mais quente do que nas Canárias!
Desceu do hotel, já tarde, cheio de fome. Pagou a conta e em vez de procurar o carro, foi andar um pouco. No Largo do Mosteiro encontrou um restaurante. Aspecto agradável. Sentou-se na esplanada, bem fronteiro ao Mosteiro, sem conseguir dele tirar os olhos. Pediu costeletas de carneiro, e vinho bebeu do melhor que “A Casa” dispunha, uma garrafa de Ramisco da adega Regional de Colares, colheita de... Refez as forças.
Sem poder conduzir por ter bebido, andou algumas horas a pé à volta do Mosteiro.
Foi James Joyce que me sugeriu a busca da epifania das coisas e dos lugares. No sentido filosófico e não propriamente no transcendental mas, de facto, não sou capaz de deixar de imaginar as pessoas que estiveram ligadas a essas coisas e a esses lugares conferindo-lhes a essência que sempre procuro pelo que, mesmo sem um esforço especial, me chego relativamente perto da transcendência sem, contudo, lhe tocar. É claro que não chamo os espíritos sobre uma mesa de pé de galo nem dou a mão a xamãs; limito-me a imaginar as pessoas que por ali andaram e se mais houver, não é para aqui chamado. E com esta imaginação, tudo ganha uma expressão muito especial. Eis a busca do significado que tantos escritores tentam; alguns, em vão. Sugiro a quem me lê que faça esse tipo de exercício mental que, por enquanto, não paga imposto.
Compreende-se, assim, o entusiasmo com que correspondi ao desafio que o Francisco me lançou para testemunhar os seus «encontros» e para eu próprio contar o que nesse âmbito me aprouvesse. Sobre as descrições que o Francisco nos trouxe, posso dizer algo; sobre as descrições dos meus «encontros», outros que opinem.
Transcendências e seus rituais postos de parte ab initio, trouxe-nos o Francisco uma encenação de grande efeito pois foi escolher um local por onde passaram muitas histórias - tantas que será por certo impossível descrevê-las exaustivamente. Mais: esse local foi conhecido de quase todos os escritores (se não mesmo de todos) por ele convidados pelo que, directa ou indirectamente, explícita ou implicitamente, formatou a cultura de todos os invocados. Ou seja, o refeitório dos frades do Mosteiro de Alcobaça sendo, por definição, um marco inultrapassável da nossa Cultura, é cenário natural a todos os invocados que pertencem – uns mais militantemente do que outros - à esfera da lusofonia e não obrigatoriamente à da lusofilia.
Mas o Francisco, elegante como sabemos, foi buscá-los à lusofonia e «deixou para lá» essa questão mais diáfana que é a lusofilia. Eu próprio o fiz nos meus escritos mas, dentre os que foram menos afáveis para connosco, portugueses de Portugal, só invoquei aquelas duas Senhoras que, na aflição, nos procuraram e nos deram tudo o que tinham: a vida1.
A vastíssima cultura do Francisco sobra em relação ao espaço que decidiu conceder aos seus escritos. Poderia continuar, não sei até onde… A sua arte literária permitiu-lhe tecer diálogos interessantíssimos que a todos nos deu asas à imaginação e que, também eles, poderiam continuar por aí além…
A propósito dos diálogos entre escritores que viveram temporalmente tão longe uns dos outros, lembrei-me da Rainha de Sabá e do Rei Salomão2 que talvez nunca se tenham encontrado e que, mesmo assim, conseguiram fazer um filho, o primeiro Imperador da Etiópia. Mas como a fé não se discute, fiquemos assim.
Resta-me uma questão final: como é que uma Cultura tão policromada como a Lusíada em que ainda hoje, neste início do séc. XXI, proliferam hostes de analfabetos, tem conseguido produzir tantos escritores e poetas? E são tantos que nem conseguimos listá-los sem grandes omissões. Ensaio uma resposta bastamente discutível: é muito mais fácil romancear e versejar do que mourejar.
Salvo melhores opiniões.
Grande abraço ao Francisco e que continue…
Janeiro de 2017
Henrique Salles da Fonseca
1- Noémia de Sousa veio morrer a Cascais; Alda Lara veio cá tentar tudo para se salvar mas acabou por morrer em Angola.
2Salomão morreu em 931 a. C.; na tradição cristã, a rainha de Sabá é uma figura metafórica.
- Esta quadra de Guerra Junqueiro, fez-me voltar aos tempos de Coimbra onde começavam, um pouco a medo, a chegar alguns conhecimentos sobre a história dos territórios do ultramar e do longínquo Japão de Wenceslau de Morais. Talvez se tivesse iniciado com Cadornega, Elias Alexandrino da Silva Correa, seguidos de outros, como António Enes, Mouzinho, Brito Camacho e por aí vai. Eu, insular, plantado quase a meio caminho entre a Europa e África não podia ficar indiferente. Bem mais tarde apareceram Castro Soromenho, Ralph Delgado, Alda Lara, Agostinho Neto, sobre Angola, Jorge Barbosa de Cabo Verde, Amilcar Cabral da Guiné, José Craveirinha de Moçambique e tantos outros que ficaria aqui a enumerá-los o resto do tempo que nos concederam.
Com sua barba hirsuta, branca, ar triste e cansado Wenceslau de Morais limita-se a dizer:
- Tokushima! Tokushima! E minhas amadas Ko-Haru e Ó-Yoné. Vivo agora com elas eternamente!
Cadornega, que sorrateiramente foi para Angola com 16 anos, para evitar a fúria da malfadada Inquisição:
- Vitorino! Não imaginas como foram complicados e difíceis aqueles primeiros anos em Angola! Enfrentar as sempre falsas populações do interior com quem queríamos simplesmente comerciar e levar a palavra de Cristo, lutar contra um clima insalubre e ainda ter que enfrentar os hereges holandeses! Não sei como consegui resistir tantos anos. E as guerras, sempre insanas, de parte a parte.
- Cadornega! Eu que nasci “americano-português” na Ilha de Santa Catarina, no Brasil também vivi uns largos anos em Angola e deixei escrito o que lá vi e aprendi. Mas pouca gente sabe disso e pouca importância dão. Fui depois, cansado, acabar os meus dias na minha terra, mas sempre com uma estranha saudade de África!
- Como se admirar por isso, meu caro Elias Alexandrino? Vocês devem saber que eu, jornalista, acabei por ser “obrigado” a ir para Moçambique, com a finalidade de pôr ordem no caos que por lá se vivia. Por um lado os nativos e, pior, os ingleses que nos queriam correr da Delagoa Bay, fornecendo armamento aos zulus para que eles corressem com os portugueses. Valeram-me aqueles homens da fibra dos que sempre fizeram história na nossa terra: Paiva Couceiro, Mouzinho, Ayres d’Ornelas, Caldas Xavier, Azevedo Coutinho e muitos outros. Pacificou-se – não totalmente – o país que pôde começar a progredir e demos definitivamente o recado aos gulosos ingleses!
- António Enes! Antes dessas lutas e acordos de pacificação já nós, na companhia de Brito Capelo e Serpa Pinto, tínhamos corrido, a pé, a maioria do interior africano, ligando Angola a Moçambique. Tivémos nossas desavenças, o que considerámos normal, mas desbravámos parte dum mundo desconhecido da Europa. Hoje, se pudesse, repetiria a façanha!
- Queria ver hoje alguém repetir esse feito, Roberto Ivens.
Oliveira Martins, que pairava “guloso” entre tantos grupos sobre quem ele havia estudado e escrito, desde D. João I a Camões e às epopeias marítimas, ouvia entusiasmado os “africanos”. Pensava em Bernardo de Brito e suas Histórias Trágico Marítimas, nos trabalhos vividos por quem se aventurou por esses mares nunca dantes navegados, e cochichou comJoaquim Pedro Celestino Soares:
- Não acabaram as aventuras do mar no tempo das descobertas. Mas o teu livro “Quadros Navais” continuou a mostrar a valentia e determinação dos nossos marinheiros.
- Agora não há mais perigo, porque o Portugal glorioso e orgulhoso das suas marinhas, desde o grande rei Diniz, hoje quase nem barquinhos de pescadores tem. Tenho ouvido, que ainda há um português, vivo, que constantemente luta contra essa vergonha marítima e ninguém o ouve! Que tristeza.
- Eram simpáticas, sim as viagens de navio entre Portugal e Ultramar. E tempo houve em que as relações entre as populações nativas e os portugueses eram fáceis e agradáveis. Mas depois do Tratado de Berlim tudo se complicou. Apesar disso manteve-se uma união que poderia ter sido mais um caminho para a concretização do 5º Império, como tão bem, ultimamente frisou Agostinho da Silva. Até eu que fui estudar para Portugal, porque era um pouco “a nossa terra”, acabei perseguido por tentar valorizar os povos da minha terra, e fui obrigado a pegar em armas contra um governo cego, covarde e mudo.
- Antes de ti, Agostinho Neto, comecei eu também a ficar mal visto por ter escrito o que vi e vivi em Angola e tive também de ir embora, para onde não me incomodassem. Infelizmente não tive o prazer de assistir à Independência dessa terra para onde fui acabado de nascer.
- Soromenho, até hoje o teu nome é respeitado. Tu foste um percursor da literatura “de dentro para fora”! Cantaste a triste vida do angolano pobre, como era maltratado, e isso desagradou às governanças, mas fez escola. Eu chorei a vida triste dos segregados. Nasci em Benguela, uma cidade com convívio especial mas, ainda assim com imensas desigualdades. Tentei lutar com a minha poesia. “E apesar de tudo, Ainda sou a mesma! Livre e esguia, filha eterna de quanta rebeldia me sagrou. Mãe-África!”Usando até metáforas para chamar a atenção, como “À prostituta mais nova Do bairro mais velho e escuro, Deixo os meus brincos, lavrados Em cristal, límpido e puro...”
- Alda! Alda! Como chorámos, todos, quando nos deixaste. Não havia uma só boca, independente da cor de suas peles que não cantasse os teus poemas, muitos deles a quem entretanto corriam lágrimas pela cara! Não só pela beleza da poesia como pela consciência da mensagem que transmitia.
- Meu irmão! Talvez o maior sonhador que Angola terá conhecido! O Antero de Quental de Benguela dos quintalões, sempre à procura daquilo que só encontramos quando deixamos a nossa carne entregue à Terra que nos viu nascer. Em todos os que conheceste deixaste um amigo, um admirador e... até um quanto de inveja em cada um deles por te verem alegre e triste, descontraído e preocupado mas sempre com uma palavra de esperança para todos.
- Eu que o diga, que te conheci bem, bebi dos teus pensamentos, do grande Tomaz Vieira da Cruz, aprendi a conhecer o Sul de Angola com os trabalhos do Padre Carlos Estermann, saboreei os contos do humilde Oscar Ribas, e entusiasmei-me completamente com uma simples “ordem” do Rui de Noronha que lá de Moçambique nos deu o caminho: “África, surge etambula”!E quanto mais me entusiasmava mais me perseguiam e acabei, com a “ordem existente”, por perder alguns amigos, como o José Luandino que passou quase treze anos atrás das grades! Foi quando aproveitou para escrever. E que bem escreveu! Ganhou um duplo prémio! O Prémio da Melhor Novela, pelo livro Luuanda, que lhe atribuiu a Sociedade Portuguesa de Escritores, em 1965, quando estava preso, e o gozo que lhe terá dado ver que esse prémio provocou um tremendo pavor e confusão no covarde governo que até, tão ridiculamente, proibiu que os jornais divulgassem o prémio ganho por um presidiário!
- Tão caricata a atuação do Governo que logo extinguiu essa Sociedade de Autores. Lembras bem disso, com certeza, Mário de Andrade! Eu sempre tive presente um pequeno poema do cabo-verdiano Jorge Barbosa que, sobretudo nos Estados Unidos continua a ser como notícia, revoltante:
Ocorrência em Birmingham
John
De Birmingham, Alabama, USA
Entrou na tabacaria.
Foi insultado
Soqueado
Expulso.
Na rua
O polícia
Espancou
Derrubou
Cuspiu
Prendeu o desordeiro.
Negro safado!
Coisas parecidas presenciei, sempre que um idiota se julgava superior. Fui para Lisboa onde estudei agronomia, e o que é curioso é que lá me dava bem como todos os colegas. Quando regressei à Guiné é que vi que não podíamos continuar a ser assim tratados.
- Amilcar Cabral, foste um exemplo, e sempre admirado. Malditos para sempre os que te mataram fazendo crer que foram os portugueses. Bem dizias tu: “Se alguém me há de fazer mal, é quem está aqui entre nós”. Apesar de estares a comandar a luta armada, a tua morte, em Portugal foi sentida.
- Hoje, lá onde estamos não há amigos ou inimigos, mas deixa-me tratar-me por amigo, José Craveirinha. Tu, filho dum humilde e bom português que sempre foi um simples operário em Moçambique, que “nasceste a primeira vez em 28 de Maio de 1922 entre o Alto Maé e como quem vai para o Xipamanine. Num bairro de pobres”, e que lutaste entre duas pátrias, pai e mãe que sempre se amaram, e assim desde cedo viste que a cor da pele só encobre os corações. Com razão és conhecido como o maior poeta de Moçambique.
- Contigo aprendi a amar ainda mais este país, e do mesmo modo sem conseguir conviver em paz entre o novo Moçambique e o velho Portugal.
- O mesmo comigo Rui Knopfli. Nasci no velho Portugal, saí de lá menino, voltei para cursar Belas Artes. Mas logo regressei a Angola que já considerava a minha terra. Não creio que alguém possa passar incólume por África. A paixão pelas belezas naturais, sobretudo pelo seu povo, amável, bonito, acolhedor. Senti-o e vivi essa paixão em Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné e São Tomé e até Brasil, pela pintura e pela poesia. Eu, que no fundo não era mais do que um pintor, me atrevi com a poesia, inspirado em tantos amigos, alguns dos quais não tive oportunidade de conhecer, mas que lia com avidez.
Entretanto São Pedro fazia chegar aos ouvidos do organizador do Encontro que era preciso desocupar o refeitório. Estava quase na hora dos monges irem tomar a sua primeira refeição da manhã, e não podiam descobrir aquela “festa”.
Há muito, uns quantos convidados já se haviam retirado, a começar pelo velho Rei Afonso X. A animação agora estava em África, e pelas caras de todos via-se que ficariam ali... eternamente.
Neves e Sousa, “ouviu” também o chamado de São Pedro e pediu para terminar o Encontro, que considerou uma das grandes dádivas do Céu, com dois pequenos poemas que o levavam, como a todos os outros a se embalaram na música suave dos povos de África.
- Deixem-me terminar este nosso fantástico Encontro com uns pequenos poemas a começar por este do Grande Tomaz Vieira da Cruz, que até música tem:
Quissange - Saudade Negra
Não sei, por estas noites tropicais,
O que me encanta...
Se é o luar que canta
Ou a floresta aos ais.
Não sei, não sei, aqui neste sertão
De música dolorosa
Qual é a voz que chora
E chega ao coração...
Qual o som que aflora
Dos lábios da noite misteriosa!
Sei apenas, e isso é que importa,
Que a tua voz, dolente e quase morta,
Já mal a escuto, por andar ausente,
Já mal escuto a tua voz dolente...
Dolente, a tua voz "luena",
Lá do distante Moxico,
Que disponho e crucifico
Nesta amargura morena...
Que é o destino selvagem
Duma canção em que tange,
Por entre a floresta virgem
O meu saudoso "Quissange".
Quissange, fatalidade
Deste meu triste destino...
Quissange, negra saudade
Do teu olhar diamantino.
Quissange, lira gentia,
Cantando o sol e o luar,
E chorando a nostalgia
Do sertão, por sobre o mar.
Indo mares fora, mares bravos,
Em noite primaveril
Acompanhando os escravos
Que morreram no Brasil.
Não sei, não sei,
Neste Verão infinito,
A razão de tanto grito...
-Se és tu, oh morte, morrei!
Mas deixa a vida que tange,
Exaltando as amarguras,
E as mais tristes desventuras
Do meu amado Quissange!
E da nossa África negra, que procurámos cantar e pintar, uma saudação de Mário de Andrade:
Agnósticos, ateus e outros incrédulos, eis a plêiade dos que não acreditam em almas de um outro mundo. Eu também já fui desses. Até que ouvi chamar por mim já umas três vezes e abandonei aquele grupo inicial. Um dia, conto; hoje, não.
Esoterismo à parte, vamos ao que é exotérico. E os escritores que hoje invoco também pertenciam àquele grupo inicial mas o esoterismo deu-lhes por certo a volta e, mais dia- menos dia, desafio-os a virem até cá para conversarmos um pouco. Talvez que Santo Ambrósio volte a ser de grande utilidade. Ou São Boaventura, para não estar sempre a incomodar o mesmo.
Referi na crónica anterior o meu Avô. Chamava-se (ou chama-se) José Tomás da Fonseca e esteve por cá de 1877 a 1968. A sociedade portuguesa era na sua juventude predominantemente analfabeta[1] e nas terras beirãs onde lhe nasceram os dentes, os Padres tinham um enorme ascendente sobre a sociedade boçal. Querendo estudar, o meu Avô teve que ir para Coimbra interno no Seminário onde, para além do ensino secundário, fez o curso de Teologia. Mas, mesmo no final, «deu corda aos calcantes» e não tomou votos[2]. Então, muito resumidamente, assumiu como suas as duas missões que nortearam toda a sua vida: o combate ao analfabetismo adulto e o fim da hierocracia que na prática existia nas zonas rurais. Todo o cenário em que se movimentou fez dele um insubmisso, um rebelde. Mas, apesar disso, sempre foi muito afável. Eu costumo dizer dele que foi a pessoa simultaneamente mais culta e mais afável que alguma vez conheci. E dele guardo um poema que julgo traduzir a essência do que lhe andou sempre no espírito.
Era o meu Avô preferido, sobretudo porque foi o único que conheci.
Na crónica anterior referi igualmente o meu Tio, também ele filho do meu Avô como o meu Pai. Chamava-se (ou chama-se) António José Branquinho da Fonseca mas ficou conhecido só pelos apelidos. Esteve por cá entre 1905 e 1974. Experimentou vários estilos literários, desde o poema lírico ao romance passando pela novela, drama e poesia. Contudo, ele próprio dizia que a sua expressão natural era o conto. E digam os seus biógrafos mais eruditos o que quiserem, eu digo que ele sempre se manteve ligado ao bucolismo da sua meninice. Dentre a extensíssima obra publicada, extraio o poema que segue que é, de longe, um dos de que mais gosto:
CANÇÃO DA CANDEIA ACESA
Ainda havia luz no céu
Quando se encostou à minha porta
A sombra da noitinha
E ali se adormeceu...
Mas como é de uso na aldeia,
Costume tão velho já,
Ao sentir-se alguém à porta
Eu disse-lhe: - Entre quem está...
Entrou. Era a noite... E, então,
Eu senti bem a tristeza
Daquela gente que não pode
Ter candeia acesa.
Eu tenho-a, Senhor;
Eu nem sei a riqueza que tenho:
Tenho uma terra
E também uma casa
E um rebanho...
E, além de tudo, um amor,
A quem quero e que me quer...
E que a vontade do Senhor
A faça minha mulher!
Era o meu Padrinho de baptismo preferido, até porque não tive outro.
Então, para levantar uma ponta do véu relativamente ao mistério inicial do meu abandono do grupo dos agnósticos e outros incrédulos, aqui vou eu de seguida...
Olá!
Diz-me aqui, baixinho,
Desde quando sentes companhia
Quando os outros te vêem só.
Também vês aquela sombra
Que passa pelo canto do olho
E sentes aquele murmúrio
Junto do teu ouvido
E que os outros não sentem?
Fala-me
Daquela outra dimensão
Onde estão os nossos queridos,
Esses que por aqui vogam...
Que sentimos por perto,
Vemos em penumbra,
Que amamos pelo que foram,
Que amamos pelo fumo que são,
E que vemos pelo coração.
Sim, nós sabemos
Que eles estão aí,
Que nos vêem.
Sim, eles são os nossos anjos da guarda
E sabem que nós sabemos.
Pois é isso que nos conforta.
E que venha a nós o seu reino
De pureza e de bem.
Ámen!
E assim me despeço. Passai todos muito bem!
Janeiro de 2017
Henrique Salles da Fonseca
[1] Em 1910, a taxa de analfabetismo adulto rondava os 90%
[3]Marie-Anne Charlotte Corday d'Armont (Normandia, França, 27 de Julho de 1768 - Paris, França, 17 de Julho de 1793) entrou para a história ao assassinar um dos mais importantes defensores da política do Terror (Jean-Paul Marat) instaurada em França pelos Jacobinos.
- Eis-me, humildemente, a pedir a intercessão de Santo Ambrósio – rezei eu.
- Aqui estou, meu «filho» – disse de seguida o Santo – Então já sabes quem queres, quando e onde?
- Bem, vejo que não se esqueceu da nossa conversa anterior.
- No Céu, temos o dom da memória total.
- Então, quer isso dizer que o Dr. Alzheimer não está no Céu.
- Vá! Deixa-te de desconversas e vamos ao que interessa.
E fomos...
- Então, é assim, Santo Ambrósio: quanto ao «onde», já tenho tudo combinado para o Paço dos Duques de Bragança, em Guimarães; quanto ao «quando», pode ser logo que eu lá chegue; quanto ao «quem», deixo ao seu critério a escolha dos «reciclados».
- Ah! Essa dos «reciclados» é muito boa! Sim, estão totalmente recuperados dos venenos que os infestaram na Terra. Muito bem, vai tu andando para o dito Paço e quando lá chegares, diz-me. Olha! Nem precisas de mo dizer porque no Céu sabemos tudo e quando eu te vir no local, logo te envio os «reciclados». OHOHOH!!! Essa é muito boa!
E assim foi que me meti ao caminho... chegando nervoso ao grande salão dos banquetes ducais. Quem iria o Santo enviar-me???
Foi nessa dúvida que vi a enorme tapeçaria da parede abanar ligeiramente e uma sombra inconfundível a passar junto das garrafas de branco e tinto abertas sobre a grande mesa, como que a medir as saudades dos vapores. Vapor que agora era ele próprio...
Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno;
Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura;
Bebendo em níveas mãos, por taça escura,
De zelos infernais letal veneno;
Devoto incensador de mil deidades
(Digo, de moças mil) num só momento,
E somente no altar amando os frades,
Eis Bocage em quem luz algum talento;
Saíram dele mesmo estas verdades,
Num dia em que se achou mais pachorrento.
Eu próprio me esquecera por completo de pedir copos e, sobretudo, a tal «taça escura» pois bem sabia que ninguém tocaria em nada do que lá pusesse. Inconsequente esquecimento, até porque admito que a passagem pelo Purgatório o tenha desintoxicado dos vapores e da doentia apetência etílica. Poderia ter sido o maior poeta português mas deixou-se rodear por um anedotário de fábula burlesca e até pornográfica que nada terá a ver com ele. Mas pôs-se a jeito e aí está o povo para lhe torcer a fama.
Distraído com Bocage, não sei por onde entrou o seguinte que já vinha a declamar com voz tonitruante quando se aproximou de mim, apresentando-se...
Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!
Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formosura!
Com grandes golpes bato à porta e brado:
- Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas de ouro, ante meus ais!
Abrem-se as portas d'ouro com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão – e nada mais!
- Oh Mestre, então veio directamente dos Açores ou do Casino? – perguntei eu.
- Do Céu, meu Caro, do Céu!
Sorri-lhe por fora mas temi-o por dentro. Aquela falta de serenidade não fora muito benéfica no banco do jardim público de Ponta Delgada... à bons entendeurs. E foi por causa desse episódio que teve que passar pelo Purgatório. Pena, tanta perturbação por coisas que estavam fora do seu controlo. Mas, pelo menos, sempre nos explicou algumas das causas da decadência dos povos peninsulares. E essa angústia não poderia dar bons resultados numa mente clinicamente perturbada. Eis por que Deus, por certo, lhe perdoou acto tão desconforme com a esperança.
Tive que interromper a conversa com Antero para dar as boas vindas ao barbudo seguinte que trazia um melro poisado no ombro da sobrecasaca. E fui eu que me lembrei dos primeiros versos d’«A velhice do Padre Eterno» e lhos recitei como que a dizer que o reconhecera...
O melro, eu conheci-o:
Era negro, vibrante, luzidio,
Madrugador, jovial;
Logo de manhã cedo
Começava a soltar d'entre o arvoredo
Verdadeiras risadas de cristal.
(...)
- Desculpará, Mestre, mas mais não digo porque mais não tenho de cor.
- Ah, Henrique! Não imagina com quem tenho estado...
- Não imagino.
- Com o seu avô.
- Que boa notícia me traz o Mestre! Mas não me surpreende assim tanto como muita gente poderia esperar. Lembro-me perfeitamente da sua frase relativamente a ele de que se tratava de «um Santo que diz não acreditar em Deus». Eu sou testemunha de que ele era um verdadeiro Santo, não no sentido religioso mas sim no da ética e da moral. E a moral e a ética que ele professava eram as cristãs e mais nenhumas. Continuo a não crer que só vai para o Céu quem diz acreditar em Deus; quem diz que não acredita, se tiver tido na Terra um comportamento exemplar na perspectiva moral e ética cristãs, não tem que ser impedido da salvação eterna. Não é por alguém dizer que não acredita em Deus que Ele deixa de existir.
- Exacto! Concordo totalmente com essa perspectiva. Eu próprio O reconheci na hora da morte mas se não tivesse tido bom comportamento durante a vida, poderia muito bem ter passado pela reciclagem (como você diz) do Purgatório e correr o risco de passar de seguida à condenação eterna. Mas é com muito gosto que lhe digo que o seu avô está muito bem. E o seu tio também, lá por isso.
- O meu tio também se dizia ateu. Mas essa é uma questão menor para Deus.
- Bem. Agora vou ali dar uma palavrinha ao folgazão sadino para ele me contar o que fez lá pelo Oriente. Só não sei é se terei muita pachorra para o açoriano trombudo com quem ele está a conversar. Lá terei que os interromper.
E foi...
Então, como no Céu o tempo não conta e nenhum dos etéreos compinchas dava mostras de cansaço, dei por mim a imaginar como haveria de os aproveitar ao máximo sem cansar os leitores destes escritos. Só que eu me comprometi com Santo Ambrósio que todos eles voltavam o mais tardar à meia-noite terrena pois é então que as portas celestiais se fecham e toca a silêncio até às 6 da manhã terrenas. Fácil: deixo-os continuar até à hora limite, registo tudo com pormenor e conto amanhã ou depois aos leitores.
- D. Francisco – disse eu – tenho um problema a resolver para o que peço a sua ajuda.
- Pois não – disse ele com aquela expressão fantástica tão portuguesa da negativa significando afirmativa – diga o que o preocupa.
- Nesta nossa ronda pelos que usaram as letras para algo mais do que para fazer encomendas ao merceeiro, nem todos mereceram o Céu. Se o meu Amigo acha que também esses devem ser chamados aos nossos encontros – como já fez com o Antero - onde havemos de os procurar e por intermédio de quem?
- Respondendo por partes, acho que sim, também esses devem ser chamados. E se não estão no Céu, só podem estar no Purgatório ou no Inferno. Se estão no Inferno, não vejo modo de os sacarmos de lá; se estão no Purgatório, sugiro que invoquemos Santo Ambrósio ou mesmo São Boaventura que tanto nos explicaram sobre esse local. Pode ser que conheçam lá alguém que nos possa ajudar nessa busca de almas em vias de lavagem.
- Perfeito! E assim, não precisamos nós de contactar directamente o Chefe do Purgatório e não correremos o risco de algum salpico pecaminoso que ele ainda traga nas mãos das abluções ou dos clisteres purgantes. Os Santos têm curriculum suficiente para se salvarem de uma qualquer dessas putativas inconveniências.
- Fica então tudo esclarecido?
- Sim, creio que sim. Se um dos Santos estiver muito ocupado e não me puder responder, o outro há-de estar de folga. Oxalá!
- Oxalá é do árabe Inch Allah que significa «queira Deus». Veja lá se usa alguma expressão de que não gostem no Céu e lhe barram o contacto.
- Allah não é o Deus muçulmano; Allah é como se diz Deus em árabe. O Deus deles é o mesmo que o nosso; os Céus é que podem ser diferentes.
- Muito bem, então fica combinado que Você pede a um dos dois Santos e logo se vê o que eles dizem.
(...)
Disseram-me que São Boaventura estava a despacho (com Deus?) mas que Santo Ambrósio me poderia atender.
Stº Ambrósio (337 – 397)
- Meu «filho», em que te posso servir?
- Oh Santo Ambrósio: eu pretendo convocar para uma reunião terrena alguns escritores portugueses que devem estar no Purgatório mas não conheço ninguém da «nomenklatura» por lá mandante e lembrei-me de si porque nos explicou muito sobre o funcionamento daquilo e porque talvez consiga uma dispensa por pouco tempo de algumas almas escrevinhantes que ainda estejam por lá em abluções e clisterizações purgativas.
- Sim, conheço toda a «nomenklatura» purgativa e posso dizer-te que fizeste muito bem em vires falar comigo em vez de ires falar com eles. Ainda te sujavas e isso é que seria uma maçada. Mas estou a ver que já não te lembras dos meus ensinamentos... Há quanto tempo morreram esses escritores que queres contactar?
- Ui! Alguns morreram há mais de 20 anos e outros há mais de um século...
- Então, meu «filho», não precisas da minha intercessão pois as almas só estão no Purgatório por um máximo de 40 dias terrenos no fim do que ou estão limpas e vão para o Céu ou continuam encardidas e vão para o Inferno. Assim sendo, se estão no Céu, podes voltar a contactar quem contactaste das vezes anteriores para as reuniões que já fizeram...
- Ah, já vejo que sabe dessas reuniões.
- ... no Céu sabemos tudo...
- Sim, claro, desculpe o meu esquecimento.
- ... estás desculpado. ... se estão no Inferno, desde já te digo que não te posso ajudar de maneira nenhuma e não conheço ninguém que o possa fazer. São casos perdidos. Portanto, o melhor que podes fazer é pedires ajuda a alguém no Céu.
- Muito bem, acha que me pode ajudar?
- Sim, dize quem queres convocar, quando e para onde e eu vou ver o que se arranja.
- Posso dizer mais logo?
- Podes dizer quando quiseres. No Céu não medimos o tempo. Invocas-me e voltamos à conversa.
Continuava animada a conversa naquele inusitado encontro.
Rodeavam agora Dom Dinis todos aqueles que haviam passado pela sua Universidade lembrando que fora este grande rei que, em 1290 instituíra o Estudo Geral Português, com a assinatura do documento “Scientiae thesaurus mirabilis”. Parecia, e era (e continua a ser!) a maior figura da história de Portugal.
Propunham até, os antigos alunos, ali fazerem uma serenata ao grande Rei, e o lembraram, meio em segredo, para não melindrarem a memória de Dom Afonso o quarto, de seu filho Pedro Afonso que tanta obra deixou. Ainda ensaiaram uma pequena trova de D. Dinis, mas em voz baixa já que os outros convivas estavam, também em animada conversa:"Ai flores, ai flores do verde pino, se sabedes novas do meu amigo! ai Deus, e u é?
João Rodrigues, depois Amato Lusitano, lamentava ter ido estudar em Salamanca por ser considerado na altura de sangue sujo. Brilhou pela Europa, assim como Abraão Zacuto Lusitanum de quem Dom João III se serviu, mas não impediu que fosse igualmente expulso de Portugal. António Vieira conversava com eles que sabiam que ele também havia sofrido semelhante perseguição, bem como outro brilhante conviva, Garcia de Orta.
- Até o grande mestre Damião de Góis, de família nobre, por melhor e mais profundamente pensar, foi perseguido pelo mesquinho clero e acabou, ao que dizem, assassinado! E espero que ninguém se esqueça do que sofreu o também grande Diogo do Couto.
Lamentavam todos os presentes que os sefarditas tivessem sido expulsos dum país que eles tanto amavam e continuaram a respeitar mesmo longe. E, pior, expulsos por quem deles se serviu, D. João III, esmagado sob o peso da beatice dominicana. Herculano ouviu falar neste rei e não se conteve, seu ar austero:
- Era um homem medíocre, inábil, fanático, inábil para governar por si próprio".
António Vieira, mais cordato:
- Aproveitemos este encontro, este convívio e procuremos esquecer as nossas desventuras. Vamos beber um bom vinho das terras de Garcia de Orta, não direi à nossa saúde porque... mas ao nosso encontro.
Muito mais grupos se formavam sem que alguém fosse impedido de circular.
Já Dom João, o primeiro, beijara a mão de seu bisavô, e presenciado o respeito de que ficou sempre merecedor, num instante se viu rodeado pelos amigos, entre eles Dom João de Ornelas cujo semblante não negava o prazer de estar no “seu” antigo mosteiro! E pelos cronistas! Fernão Lopes, que elogiava o trabalho de Duarte Nunes ao refundir as crónicas dos reis da primeira dinastia e a dos três primeiros reis da dinastia de Avis, na Segunda Parte das mesmas crónicas, o que foi apoiado por Gomes Eanes, de Zurara, e Herculano que ainda acrescentou:
- Na opinião do 1° Marquês de Alegrete, foi Duarte Nunes de Leão quem abriu caminho à crítica da História em Portugal escrevendo com juízo e madureza, certamente enquanto apreciava o seu tão famoso e elogiado vinho!
O que ele também fez. Herculano estava eufórico. Ele, sempre aquela cara fechada, enigmático, exultava com os personagens que tão bem conhecera no Tombo.
E chegados estavam agora os filhos Dom Duarte e Dom Pedro.
- Bonito esse vosso livro meu filho, o Leal Conselheiro. Exemplo de um homem honrado que bebeu, sobretudo de sua mãe, a delicadeza e o comportamento exemplar. Pena que meu neto Afonso tenha sido tão ingrato com seu tio Pedro, que foi o melhor conselheiro que poderia ter encontrado.
Dom Pedro, que foi Duque de Coimbra, duque de Treviso, Cavaleiro da Ordem da Jarreteira, ar triste, no íntimo, o filho preferido de seu pai, que sempre amou seu irmão e seu sobrinho, perdoava, mas não podia esquecer o que lhe fizeram.
- São águas passadas. Penso em meu irmão Henrique e o quanto ele teria gostado de ler a carta de Pêro Vaz, de Caminha. Aproxima-te, Pêro Vaz, para te abraçar em nome de meu irmão Henrique.
- E tu também Pêro de Magalhães, o homem que veio de Gand para nos dar a primeira descrição, em história, das Terras de Vera-Cruz! E pensar que tudo isto devemos ao grande rei, nosso antepassado, com a sua grande visão.
Poucas eram as figuras femininas, entradas no Mosteiro sem o conhecimento do Dom Abade, mas ali estava Florbela Espanca, por especial deferência de São Pedro, que advogara em sua defesa a escrita libertina, os vários casamentos que não deram certo e as tentativas de suicídio, porque sabia o quanto ela havia sofrido.
- Florbela? Aqui? Acabo de sair de um outro encontro, feminino, porque não gostei do que disse a Soror Mariana, a fazer-se de vítima arrependida, quando já se sabe que não foi ela que escreveu as cartas ao francês ! Mas eu...
Sou aquela que passa e ninguém vê ...
Sou a que chamam triste sem o ser ...
Sou a que chora sem saber porquê ...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
- Alegra-te Florbela. És muito estimada e admirada entre todos – disse-lhe Guiomar Torrezão que “representava” a luta pela emancipação das mulheres.
Ao ver Guiomar, Camilo fez questão de abraçá-la e agradecer-lhe a carta que ela lhe escreveu “Há muito que penso em escrever um artigo substancial sobre Camilo...” e Guiomar retribuiu lembrando a carta dele: “Beijo as mãos de V. Ex.ª pela fineza dos seus cuidadoscom a minha esquisita existência.”
Carolina Michaelis de Vasconcellos, nascida em Berlim mas portuguesa por casamento e coração, notabilizou-se na história e poesia dos antigos do seu novo país, divulgando-os por toda a Europa. Já havia recebido os cumprimentos de Sá de Miranda que tão bem havia estudado e ajudado a difundir, as homenagens de Herculano e Antero de Quental (cuja vida suplantou em virtude o desastre da sua morte) lembrando as suas trocas de correspondência, sempre com um belo carácter de respeito próprio de uma grande dama e de grandes homens. Por fim e seu imenso espanto é com o próprio Camões quem lhe vai agradecer os Estudos Camoneanos que mais ainda o engrandecera, sobretudo junto ao povo germânico.
Um pouco afastados, conversam já Camilo e Herculano que, maliciosamente, lhe pergunta pelo cão que aquele lhe dera e após a sua nomeação para a Academia de Ciências de Lisboa lho pedira de volta! Camilo, mordaz, esboçou uma desculpa, o que, coisa rara, fez aparecer um largo sorriso na cara de Herculano.
Bernardo Corrêa de Melo, o Conde de Arnoso, ao lado da Ramalhal figura, ria-se com aquela conversa e Eça, que havia escutado Garrett falar na sua terra, a bela Póvoa de Varzim, pergunta a Antero se, lá no etéreo, em que pouco nos vemos, também lhe chamam, como ao grande apóstolo Simão, São Pedro, o Santo Antero!
- Aproveitemos e vamos brindar a este encontro, mas com vinho especial de Tormes que, no meio de tantas delícias etílicas, encontrei! É o vinho do Porto no seu melhor! E esquecer a triste e cómica Questão Coimbrã!
- Imodéstia tua Eça, com o vinho! Mas sabes bem que quem moveu esses ridículos combates coimbrões foi a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices! O espírito de rotina violentamente incomodado! Melhor mantermos o nosso Bom Senso e Bom Gosto para saborearmos o teu bom vinho e a magnífica companhia dos que aqui se encontram!
Esqueçamos as cartas que José Feliciano de Castilho, dizendo tanto disparate, publicou no Brasil, onde os homens de Bom Senso deram, não atenção mas até risada de desprezo.
- É verdade, atalhou Machado de Assis. Vivia-se uma época em que era permitido publicarem-se calúnias, mas os homens sensatos, se as liam, logo rasgavam esses escritos. Um dos que sofreu com isso foi o grande mestre Gilberto Freyre, usado como argumento político duma ditadura poderosa e logo a seguir insultado pelos revoltosos!
- Não há melhor meio para conhecer o homem português do que ler as obras de Gilberto Freyre, um homem simples mas com uma obra extraordinária. Foi às origens e mostrou como se adaptou aos trópicos e criou o homem brasileiro.
Palavras de Ariano Suassuna, sempre alegre e comunicativo, rendia assim homenagem a quem deu partida para que aparecessem depois os grandes romances sobre o homem brasileiro.
- Foi isso, Ariano, assim criei Grande Sertão: Veredas, Sagarana, e outros cantando baianos e mineiros e você, com o extraordinário Auto da Compadecida e tantas outras obras magníficas, mostrando o Nordeste do Brasil.
- Rosa, não esqueça João Cabral de Melo Neto. Camões cantou a epopeia dos portugueses. João Cabral o sofrimento dos nordestinos, como naquele incomparável poema «Morte e Vida Severina».
Luis Augusto Palmeirim, até então calado, deliciado a ouvir tantos colegas de letras, ele que teve o condão de “descobrir” novos talentos, estava entusiasmado com a conversa que entretanto derivara para o Brasil.
- Que maravilha! Já chegámos ao Brasil. Os nossos irmãos de Além o Grande Rio Atlântico. Mas não podemos passar incólumes pelos Açores. Aqui ao lado, calado, o que não é seu natural, está o homem do «Mau Tempo no Canal»!
Vitorino Nemésio, habitualmente bem disposto, alegre, brincalhão, rendia-se aos que o rodeavam,
- Desse Mau Tempo, Luis Augusto, tantos e tantos saíram para irem povoar novos mundos. Desde a América do Norte ao Brasil, para onde levaram o culto do Espírito Santo que a nossa grande Rainha Santa Isabel nos confiou.
- E o que me dizes dos que foram e criaram raízes por África, Ásia, Japão?
- Muito. Mas, como descobri no meio de tantas garrafas uma de vinho do Pico, vou afinar a garganta com uma delícia da minha terra, e do Antero, e já volto.
Nós também voltaremos, com a continuação deste Encontro de Escritores, daqui a uns dias.
- E a propósito de Almada, creio que será interessante o nosso anfitrião também dar voz às escritoras. Que acham?- pergunta Almeida Garrett.
De imediato, o grande Luis anuiu mas lembrou que a sua Jau nada escrevera.
- E lá por isso, a minha D. Madalena também não. Mas tanto a tua Jau como a minha Madalena são o resultado das nossas imaginações. Não, eu sugiro mulheres escritoras, elas próprias.
- Muito bem, vamos sugerir isso ao nosso anfitrião.
Falados, D. Francisco, o anfitrião, concordou mas logo lhes pediu que intercedessem junto de S. Pedro para que deixasse as Senhoras virem até ao lado de cá.
- S. Pedro? Porquê ele e não Santa Clara, por exemplo? - replicou o chique João Baptista. – Tratando-se de Senhoras, parece mais conveniente não meter homens pelo meio, por muito Santos que sejam.
- Sim, sim! – diz o Luís – Nada melhor que a intercessão de Santa Clara para termos por cá garantida Soror Mariana, a das cartas ao francês.
- Muito bem, seja! – diz o terreno D. Francisco – Vejam lá, então, se falam com Santa Clara.
E não é que falaram mesmo? E não é que obtiveram mesmo a autorização? Brilhantes! Pediu a doce Clara que dissessem onde deveriam as Senhoras aparecer e a que horas...
Foi então a vez do nosso amigo e anfitrião puxar pela cabeça para imaginar onde poderia ser a reunião das escritoras. Em Alcobaça não, obviamente, por ser mosteiro masculino.
Vai daí, mete-se ao caminho de Beja e procura o Convento da Conceição, das clarissas, onde residira Soror Mariana, mais conhecido por Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição para falar com a Dona Abadessa. E qual não é o espanto do nosso amigo D. Francisco quando se lhe depara o Museu Regional de Beja, totalmente laicizado (não propriamente profanado), sem Abadessa nem monjas. Pede então ao contínuo de serviço à portaria que lhe obtenha um encontro com a mais alta hierarquia do dito Museu. (...) Que sim, podiam usar uma das galerias desde que no dia de encerramento semanal ao público.
No dia aprazado, postas as mesas com os recipientes de «bebidas paulatinas» (nada de bebidas alcoólicas) e bolinhos conventuais (mas dos secos para obstar a molhangas e outras besuntices), logo ficou estipulado que o que sobrasse deveria ser distribuído por critério ad hoc, ou seja, a bel-prazer de quem por ali manda. E D. Francisco, o terreno, logo foi dizendo que sobraria quase tudo pois só ele comeria alguma coisa; que as espirituosas convidadas são austeras em beberagens e comissões.
Só o anfitrião presente e garantido o recato por expressa ordem de extra hominis, caiu o silêncio dentro da galeria colunada e...
... conhecedora dos cantos da casa, entra serenamente à hora prevista a antiga residente no Convento, Mariana Alcoforado. Dada uma olhada calma pelos rótulos das bebidas e pelos pratinhos com bolos, ia a nostálgica e platónica apaixonada pelo Marquês de Chamilli dirigir-se a D. Francisco quando, vinda do Céu de Angola, entra Alda Lara (1930-1962) que já vinha à conversa com a moçambicana Noémia de Sousa (1926-2002). A goesa Maria Elsa da Rocha (1923-2005) foi a seguinte mas logo seguida pela santomense Alda Espírito Santo (1926-2010). E quase se iam atropelando umas às outras ao passarem, saudosas, pelas gulodices em que já não metem dente quando todas param de espanto perante um chapéu «belle époque» esvoaçante por cima duma pele de raposa anunciando a chegada da mais bela flor que sempre se considerou esquecida mas não espancada...
Tentando pôr fim ao sururu dos gritinhos de surpresa, beijinhos de saudades e outros salamaleques, foi a vez de o anfitrião sugerir o critério de só falar uma Senhora de cada vez. (...) que sim, que estava bem. E que seria ele, o terreno, a pôr ordem na chamada à palavra. Que sim, que fosse.
- Então, minhas Senhoras, vou pedir a cada uma que nos fale sobre uma obra que considerem importante dentre todas as que produziram. Comecemos por Soror Mariana...
- Obrigada, querido Francisco por me dar a palavra. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, confesso perante vós, minhas irmãs e colegas de escrita, o meu sincero arrependimento por ter pecado por actos escritos, pensamentos lúbricos e terríveis omissões, tudo em favor desse malévolo francês que me enfeitiçou com lindas promessas que hoje considero escabrosas, imundas e sarnentas e que depois me desprezou com um sonoro silêncio. E foi esse silêncio que me conduziu ao desespero, à ignominiosa escrita que em França os pecaminosos tanto aplaudiram e me conduziram ao estrelato, às honras que hoje tanto me afligem. Foi em desespero que me deixei conduzir pelas vias do pecado e só porque é infinitamente bom, o Pai me perdoou no meu arrependimento e me acolheu ao seu lado direito. Hoje venho aqui perante vós reconhecer os meus erros e declarar-vos que numa próxima vida me dedicarei afincadamente ao estudo para conjugar melhor os verbos em francês. Chamilli vai pagar-mas!
E assim se retirou para perto dos bolinhos, sem lhes tocar. Grande penitência. E na vingança confessada, lá foi Mariana «tirando bilhete» para o Purgatório se não mesmo para as brasas eternas...
Estava D. Francisco, o terreno, quase em estado de choque com o destino adivinhado da monja quando viu uma sombra a acenar como que a pedir a palavra. Era a bela flor da porrada.
- Sim, bela flor. Diga-nos um poema seu, por favor.
E assim foi que todas viram o tal chapéu «belle époque» dirigir-se até junto duma coluna para dali ouvirem...
Eu quis amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente…
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente!...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!
Há uma Primavera em cada vida:
É preciso cantá-la assim florida,
Pois se Deus nos deu voz, foi p’ra cantar!
E se um dia me fiz pó, cinza e nada
Que fosse a minha noite uma alvorada,
Então eu soube-me perder... p’ra me encontrar...
E D. Francisco, o terreno, meio perdido no meio de tanta perdição, só pensava: - Ah! Grande sebenta que hás-de penar eternamente... Mas Deus é grande e perdoou-lhe. Só que deve estar ao Seu lado esquerdo.
Apressadamente, deu o nosso amigo terreno a palavra a alguém que lhe garantisse santidade na ex-vida terrena. E escolheu Alda que recordou o seu testamento...
À prostituta mais nova
Do bairro mais velho e escuro,
Deixo os meus brincos, lavrados
Em cristal, límpido e puro...
E àquela virgem esquecida
Rapariga sem ternura,
Sonhando algures uma lenda,
Deixo o meu vestido branco,
O meu vestido de noiva,
Todo tecido de renda...
Este meu rosário antigo
Ofereço-o àquele amigo
Que não acredita em Deus...
E os livros, rosários meus
Das contas de outro sofrer,
São para os homens humildes,
Que nunca souberam ler.
Quanto aos meus poemas loucos,
Esses, que são de dor
Sincera e desordenada...
Esses, que são de esperança,
Desesperada mas firme,
Deixo-os a ti, meu amor...
Para que, na paz da hora,
Em que a minha alma venha
Beijar de longe os teus olhos,
Vás por essa noite fora...
Com passos feitos de lua,
Oferecê-los às crianças
Que encontrares em cada rua...
Comovido, D. Francisco olhou em redor e viu todas as almas do outro mundo ali presentes com nós nas gargantas e lágrimas a correr suavemente pelas nuvens com formas de rosto.
Engoliu em seco, aclarou a voz e convidou Noémia de Sousa a dizer o seu «Magaíça».
A manhã azul e ouro dos folhetos de propaganda
Engoliu o mamparra,
Entontecido todo pela algazarra
Incompreensível dos brancos da estação
E pelo resfolegar trepidante dos comboios.
Tragou seus olhos redondos de pasmo,
Seu coração apertado na angústia do desconhecido,
Sua trouxa de farrapos
Carregando a ânsia enorme, tecida
De sonhos insatisfeitos do mamparra.
E um dia,
O comboio voltou, arfando, arfando...
Oh nhanisse, voltou.
E com ele, magaíça,
De sobretudo, cachecol e meia listrada
E um ser deslocado
Embrulhado em ridículo.
Ás costas – ah onde te ficou a trouxa de sonhos, magaíça?
Trazes as malas cheias do falso brilho
Do resto da falsa civilização do compound do Rand.
E na mão,
Magaíça atordoado acendeu o candeeiro,
À cata das ilusões perdidas,
Da mocidade e da saúde que ficaram soterradas
Lá nas minas do Jone...
A mocidade e a saúde,
As ilusões perdidas
Que brilharão como astros no decote de qualquer lady
Nas noites deslumbrantes de qualquer City.
Calado, pensou: - Aqui estão as nossas 800 toneladas de oiro, a pesada herança do Doutor Salazar. Pensou mas calou também a verdade inconfessada por muitos dos que se dedicaram a dizer mal de Portugal mas, quando doentes, se recolhiam à nossa guarda. E nós guardámo-los e demos-lhes tudo o que sabíamos dar. E por cá morriam e também eles nos davam tudo o que tinham: a vida.
Reconhecido, Francisco apenas se limitou a dizer – Obrigado!
A noite ia comprida e Santa Clara mandou recado de que lá em cima já eram horas das vésperas. Que as rezassem e regressassem ao Céu.
(...)
Foram os Magos seguindo
A estrela do Oriente
E com presentes confessam
A glória de Deus nascente.
(...)
E quem não falou desta vez, falará da próxima...
Cumpridor, D. Francisco agradeceu às Senhoras, viu-as sair através duma parede e pensou que da próxima teria que... o quê?
Corria por Lisboa um amante da história e das letras, à procura dum restaurante suficientemente grande que, por uma noite, pudesse fechar as portas para receber um elevado e muito especial número de convivas. Fechar as portas em sentido literal.
Isto porque os convivas, sobretudo os mais antigos e de elevada estirpe, não gostariam de ser vistos pelo público, muito menos entrando em lugares normalmente reservados a “plebeus”.
Nada encontrou em Lisboa, nem Porto, nem, correndo o país, em qualquer restaurante mesmo nos melhores hotéis, que lhe servisse para os fins em vista. Lembrou-se que um convento seria a melhor solução; lugares tranquilos, longe do mundo externo, e acabou por se fixar no Mosteiro de Alcobaça.
Levou tempo a convencer o Dom Abade que precisaria de uma sala, grande, fechada, onde ninguém pudesse entrar, nem por qualquer buraco espreitar. O refeitório do convento, espaçoso, seria o ideal. Argumentou como pôde: só o utilizariam a partir das 20 horas, pagaria o que fosse necessário, mas impunha uma condição: ninguém poderia ver quem lá iria estar dentro.
- Dom Abade: não tem que se preocupar, são todos pessoas da maior respeitabilidade. Depois lhe venho contar quem aqui esteve.
As instruções foram precisas: nada de cozinhados. Nada. Eles, os convivas, talvez quarenta ou cinquenta, não vêm comer. Só encontrar-se e conversar. Mas quem sabe se lhes apetecerá beber qualquer coisa, de modo que se porá à sua disposição, somente algo para quebrarem um pouco a « sede » e para alegrar o convívio, sobretudo vinhos. Os melhores.
Continuando, foi dizendo que tudo isso correria por sua conta, o Mosteiro não gastaria um cêntimo, e com a conveniente antecedência traria as bebidas, variadas, vinhos branco e tinto, vinho do Porto, outros vinhos generosos, vinho verde, aguardente e água. Todas as garrafas estarão abertas. Não precisaremos nem de saca-rolhas. Copos, sim, de todos os feitios, e à descrição. Muitos copos. Se o mosteiro não tiver, também posso trazer umas dúzias de copos. Não precisa ficar preocupado porque ninguém se vai embriagar e criar problemas. Não são necessárias cadeiras, só pequenas mesas espalhadas “aqui e além” onde os convivas possam depositar os copos vazios.
Como certamente vai sobrar muita bebida, desde já ela fica oferecida ao Mosteiro, esperando que os monges dela possam fazer bom uso, assim como dos copos.
Pessoal para servir, nem um. Não há necessidade. E que ninguém, rigorosamente ninguém, ali entre ou vá espreitar. Será eventualmente necessário fechar alguma janela porque não se deverá poder ver quem lá estiver.
O tranquilo Dom Abade julgava estar perante um louco. Para que se juntarem num restaurante se não iam comer? Só beber? Nunca tinha visto tal. O organizador do encontro limitou-se a responder perguntando quanto queria que lhe deixasse como pagamento ou contribuição para o acontecimento, o que o religioso deixou ao critério dele e, ainda cético, se ofereceu para colocar lá na sala alguns sumos das boas frutas da região, o que foi aceite com muito agrado. Foi-lhe então entregue então um envelope com generosa quantia.
- Aqui tem o seu dinheiro, Dom Abade. No dia seguinte eu venho acertar eventuais contas do que for necessário. Amanhã, a partir das oito da noite só poderão aqui entrar, além de mim estes poucos senhores cujos nomes estão nesta lista; eles sabem que ficarão numa sala separada, porta aberta para o salão onde não poderão entrar. Serão os testemunhos da reunião. E que ninguém mais saiba disto. E o senhor, Dom Abade terá que manter todo este assunto em segredo de confissão.
Face ao entusiasmo do visitante e do dinheiro, vivo, em notas, o Dom Abade, apesar de desconfiado, acedeu.
- Mais uma coisa só: onde tem aqui um altar dedicado a São Pedro?
Dom Abade levou-o a meio da nave central da bela igreja, e deixou-o ajoelhado, parecendo rezar com fervor.
Pouco demorou a tirar do bolso uma lista. Ajoelhado, humilde (pleonasmo: ajoelhar é já um ato de humildade!) frente à imagem do Santo e sem muito mais rezas diz-lhe:
- São Pedro, preciso de um grande favor. Tenho aqui uma lista de pessoas que gostaria que deixasse, amanhã, virem à terra. Por pouco tempo. Só algumas horas.
- Meu filho aqui não há ontem nem amanhã, e muito menos horas. Aqui só há o momento presente. O que não importa, porque tudo pode ser controlado. Mas o que vão eles fazer aí na Terra, quando aqui estão gozando a suprema felicidade?
- Será uma pequena reunião de escritores da língua portuguesa, incluindo até um que viveu antes de haver esta língua. Um encontro a que poucos, muito poucos vão ter oportunidade de assistir, e onde imagino se vão trocar curiosas ideias do tempo de cada um. Já todos aí estão a descansar, mas nós que os estimamos muito e estudamos, queremos ter o inestimável prazer de os poder ver.
Mas, querido São Pedro, tem que os deixar vir vestidos como andaram quando vivos, no seu tempo, pela Terra, independente de uns terem sido ricos e outros até pobres. Será uma ajuda para os podermos distinguir. Só os poucos vivos que assistirão ao encontro vão reparar nesses desprezíveis detalhes. Ah! Um outro detalhe: alguns eram judeus ou cristãos novos.
- Aqui não há judeus, nem há religiões. Há só Paz eterna para quem a mereceu quando peregrinou por essas bandas.
- Que bom, Santo Pedro.
- Mas estranho pedido esse, meu filho. Jamais alguém me apresentou semelhante ideia! Dizem que eu tenho as chaves do céu, mas aqui eu não mando nada. Somos todos iguais. Não sei como satisfazer este pedido que, devo dizer, até me parece interessante. Espera um instante que vou falar ao Pai.
Como no céu também não há instantes, de seguida São Pedro continuou.
- Vão poder ir sim. Não preciso da lista que trazes contigo, porque consigo ler o que te vai na alma. À hora combinada aparecerão, um de cada vez, sem ordem das hierarquias desse mundo. Vai em paz.
Já mais animado o nosso promotor da festa guardou a lista para depois conferir se viriam todos. Não que desconfiasse da palavra do Santo, mas para que ele próprio se não perdesse, e até porque talvez algum não tivesse ganho ainda... os céus!
Os convidados, terráqueos, autorizados a assistir, foram os seguintes de que só se indicam umas letras para não serem depois assediados por jornalistas e outros curiosos: CC, HS, AP, LS, e MC.
Refeitório arrumado, mesas encostadas às paredes, abertas as garrafas com as bebidas, os copos ao lado, arrumados, aproximam-se as vinte horas, o nosso “inventor” do encontro, nervoso, olha para o relógio a intervalos de poucos segundos. O que se iria passar?
De repente surge o primeiro, logo o mais fácil de identificar, zarolho (sem aquela ridícula coroa de louros na cabeça), calça a meio da coxa e uma capa pelas costas, só podia ser o Luis Vaz, de Camões! Olhou em volta, parece não ter visto o anfitrião, nem podia porque o anfitrião era um ser vivo e os convidados figuras etéreas (mas que iam beber vinho !) e com dois passos estava em frente das garrafas. Olhou para todas as garrafas, escolheu como bom conhecedor, encheu um copo de vinho verde e derramou-o num só trago! Ahhh! Que saudades!
Entretanto chega Brás de Albuquerque só reconhecido porque Camões ao vê-lo exclamou, alegre:
- Brás, aliás Afonso, vamos falar um pouco das nossas aventuras, ou desventuras, na Índia! Tu não estiveste por lá mas sabes de muita coisa. Vem beber à saúde daqueles tempos.Vinho verde da minha região ou da tua quinta ?
Num instante aparecem mais três, quatro, cinco, e o anfitrião começa a ficar baralhado sem saber quem era quem. Reconhece Alexandre Herculano, impossível de não ser reconhecido, vê-o dirigir-se a um personagem, de roupa vistosa, longa barba branca, ar altivo apesar de se ver já de idade avançada, e muito respeitosamente se dirige a ele:
- D. Alfonsi a Domino, quod est honor
Afonso X respondeu-lhe em castelhano, língua que ele havia introduzido oficialmente em Castilla y Leon em substituição do latim. Entretanto, garganta seca, pediu que lhe servissem um copo de vinho generoso.
- Dom Afonso, este é um vinho das encostas do rio Douro. Duero para usted. É ouro líquido para se beber!
Logo ao lado deles estava outra figura ímpar, que fez questão de beijar a mão de seu avô. Herculano logo o reconheceu também e não conseguiu calar o que sentia:
- Senhor Dom Dinis, o maior rei que Portugal teve!
Dom Dinis, em grande respeito por seu avô :
- Tanto e tão bem fizeste, meu Senhor e Rei, que eu seguindo vosso exemplo aboli também o latim em Portugal. Institui não o castelhano mas o que mais se fala no meu reino: o galaico-português!
E vinham-se juntando mais, encantados pela presença de tão destacadas figuras. Um deles, magrinho, nariz proeminente, bigode bem aparado, óculos pince nez, ajoelha-se em frente de Dom Dinis, olha-o bem nos olhos e diz-lhe:
- Meu querido e maior rei, o plantador de naus a haver! e deixa correr, de emoção duas lágrimas.
Já corre para se juntar ao poeta, roupa simples, humilde, o sapateiro de Trancoso, que Pessoa apresenta ao Rei:
- Senhor, aqui está o homem que previu o grande futuro de Portugal no Mundo, tudo iniciado pela gestão do vosso reinado!
António Vieira esticava a cabeça para ouvir o que diziam do Futuro. Dom Dinis que o viu mandou-o aproximar-se mais para o abraçar. Sabia da sua História, e no seu íntimo agradecia-lhe a expansão do nome de Portugal. Neste pequeno grupo Agostinho da Silva tinha que estar; encantava-se na presença do grande soberano, mas sobretudo bendizia a herança da Santa Rainha, ausente, mas muito estimada, e queria apresentar ao rei a também sua visão Império do Menino, a que se juntou, para aplaudir, Ariano Suassuna.
Ao grupo inicial, ia-se juntando um sem número dos muitos poetas coevos porque ali se encontrava o Mestre. Bernardim Ribeiro, a quem Camões perguntou pela “Menina e Moça e seu roussinol”, um canto triste de quem cantou a dor da Menina; Sá de Miranda com sua longa barba, que depois de abraçar efusivamente o seu amigo Bernardim, brincou com Camões dizendo-lhe
- Sabes bem, grande mestre, que se te salvaste do naufrágio, não te salvas que se tenha espalhado por toda a parte o teu imenso engenho e arte! Aprendeste que o Amor é fogo que arde sem se ver, mas Amor é cego minino e a Fortuna é cega mulher!
João de Barros aguardava a troca das amabilidades poéticas para se voltar para a Índia! Camões, Afonso de Albuquerque, Diogo do Couto, Garcia de Orta e até Duarte Nunes de Leão, que reclamava por não encontrar à disposição entre as preciosidades etílicas nem que fosse uma só garrafa da sua terra, o clássico Pera Manca, um vinho da minha terra que se cultiva há milhares de anos e que os romanos vinham aqui buscar para se deliciarem em Roma! André de Resende coadjuvou :
- Tens razão Duarte Nunes.
Todos riram e Afonso de Albuquerque correu para lhe oferecer um copo do que de melhor a Quinta da Bacalhoa produzia! Duarte Nunes:
- Obrigado. É bom, mas não se aproxima do Pera Manca, amigo Brás.
- E eu que o diga, confirmou Bernardim, orgulhoso do seu Torrão!
Não seria tão bom, mas Brás foi notando que só à conta dele uma garrafa inteira já se tinha evaporado!
Bocage, magro, de olhos azuis, carão moreno, bem servido de pés, meão na altura, triste de facha, o mesmo de figura, nariz alto no meio e não pequeno, irreverente, atento à troca de ideiais não se conteve. Sadino, sai em defesa dos moscateis de Setubal que costumava beber em níveas mãos, por taça escura, e com seu geito descontraido fez com todos provassem o cantado nectar, aprovado por unanimidade.
Os que andaram pelas Índias, cutucaram Camões:
- Mestre Luiz, nunca revelaste onde era a Ilha dos Amores, mas eu que por lá andei recordo bem uma das que mais prenderam o meu coração : a Ilha de Mussa Ben-Bique !Não andavam as belas deusas pela floresta, que não havia, mas vi-as tocar o alaúde e a qunan, a que nós chamamos harpa, e o nosso desejo se acendia mesmo que as carnes não fossem tão alvas!
- Tens razão Garcia, eu que por lá passei e vi muitas daquelas deusas de ébano, não as esqueci nunca. Como poderia? Depois de meses de mar...
Gaspar Correia, com um suspiro acrescentou:
- Ah! A ilha dos sonhos e dos amores era essa mesma, Diogo do Couto. Passei a minha vida, quase toda na Índia e lembro do grande Vice-Rei Afonso de Albuquerque que volta e meia me falava das “deusas daquela ilha”!
Seguia a conversa sobre a Índia, mas havia que escutar outros grupos.
Camões vê entre os de outras gerações alguém que queria muito cumprimentar. Ali estava outro poeta, elegantíssimo, casada verde bronze com botões de amarelo dourado, colete branco de grande bandas, calça cor de flor de alecrim, gravata de cores lubricas e luvas cor de palha!
- João Batista! Que ideia ter escrita aquele belo poema Camões! Muito me sensibilizou e até fez nascer almas poéticas em jovens simples!
- Luiz Vaz, deverias ter visto a magnífica peço de teatro que fez em meu nome! Foi um imenso sucesso!
E conseguiu um efeito especial do Castelo da Almada a arder dentro do teatro!
Exclamou Manuel de Sousa Coutinho.
- Sabem onde me inspirei? Numa barraca de marionetes na Póvoa de Varzim! E que bela obra também a tua Frei Luis de Sousa, sobre o grande arcebispo Dom Frei Bertalomeu!
A reunião estava animada, a noite virava e ainda duraria muitas horas.