FORA DA CURVA NO DIA DAS MÃES
Será isto o Islão do entendimento?
O ensino nas mesquitas?
Farkhunda. Não é preciso saber pronunciar correctamente o prenome dessa afegã de 27 anos para embarcar na corrente de indignação. Adesões têm-se multiplicado há dois meses, atravessaram fronteiras e percorrem as redes sociais em todas as línguas imagináveis. Para a histórica revista feminista "Ms.”, co-fundada por Gloria Steinem nos anos 1970, o caso da jovem merece ser chamado de crime contra a humanidade.
Filha de pai engenheiro e mãe com ensino médio completo, Farkhunda cursara a faculdade de Matemática antes de optar pelos estudos do Direito Islâmico numa madrassa. Nascera, portanto, numa família de formação excepcional para um país que há quatro décadas está em guerra ou foi governado por extremistas do Talibã que proibiam meninas de estudar.
Na manhã de 19 de Março passado, a jovem decidiu enfrentar o bando de ambulantes que vendia amuletos para mulheres numa mesquita adjacente a um famoso santuário de Cabul. Farkhunda considerava imprópria a atividade mercantil naquele local de oração, e também criticava a actuação de videntes que apelavam à superstição de fiéis. Pretendia convencê-los a sair dali.
O que se seguiu à luz do dia no pátio de uma mesquita a poucos metros do palácio presidencial, numa cidade que é a 64a maior do mundo, foi selvagem.
Diálogo não houve e a discussão, breve, logo atropelada pela acusação fatal, em voz alta, de um funcionário do santuário: "Essa mulher é uma infiel. Ela queimou páginas do Corão." De imediato o esparso aglomerado inicial de gente adensou-se e virou multidão, com centenas de homens fechando um cerco em torno de Farkhunda e passando a xingá-la.
De um dos muitos punhos veio o primeiro soco, seguido de pedras e paralelepípedos. Um dos golpes com tábua de madeira a fez voar. O véu lhe foi arrancado como blasfémia. Nem quando ela já estava abatida no chão a selvajaria diminuiu: houve homenzarrões que deram pulos de vitória em cima do corpo estendido.
Essas e outras tantas sequências foram sendo captadas pelos celulares em mãos das crianças e adolescentes que iam se esgueirando em busca do melhor ângulo. Horror maior do que o close do rosto desfigurado da jovem talvez seja a imagem da mão infantil que segura o celular e busca esse close do rosto desfigurado.
Ao final, um dos perpetradores ainda passou o automóvel por cima do corpo de Farkhunda, que é arrastado por algumas ruas de Cabul e incendiado numa das margens do rio poluído da capital.
Em momento algum um só policial presente interveio ou fez menção de intervir.
O sinal de que tudo isso poderia não ser totalmente em vão ocorreu no momento do enterro, quando o país que assistia à transmissão viu o caixão ser carregado só por mulheres, ao arrepio da milenar tradição de ombros masculinos. Um solitário pinheiro também havia sido plantado por activistas de um pequeno partido de oposição no local em que o corpo da jovem fora incendiado. "Se não levantarmos a voz, mais Farkhundas haverão de ser incineradas no inferno do islamismo”, explicara o líder do grupo.
Entidades feministas mundiais decretaram uma espécie de estado de alerta enquanto no Afeganistão a palavra de ordem, abraçada por homens e mulheres, passou a ser "Somos todos Farkhunda. Queremos justiça"
Não teve outro jeito. As autoridades afegãs tiveram de admitir que a jovem vivera como muçulmana devota e que era falsa a acusação da queima de páginas do Corão feita pelo funcionário do santuário.
Assim, Farkhunda passou de pária a mártir e começa a ser vista como heroína por ter desafiado um homem na defesa do Islão.
Esta semana, um tribunal de primeira instância de Cabul anunciou as sentenças para 30 dos 49 acusados pela morte da jovem: quatro condenações à morte, oito condenados a 16 anos de prisão e 18 absolvidos, entre eles o que achou necessário passar com o carro por cima do corpo inerte. Os 19 restantes são todos policiais acusados de negligência, cujas sentenças devem ser anunciadas ainda hoje.
É possível celebrar o fato de a família de Farkhunda ter decidido adoptar orgulhosamente o nome da filha como sobrenome, quando é comum afegãos se identificarem a vida inteira apenas pelo prenome. Ademais, contrariamente à insistência da polícia para que saíssem da capital, todos continuam morando em Cabul.
Outros aplaudem o compromisso assumido pelo Ministério de Questões Religiosas de banir tanto vendedores de amuletos quanto videntes em santuários. Fala-se até mesmo em renomear uma rua em homenagem à jovem.
Ainda assim, a reabilitação de Karkhunda através de sua morte não elimina a distorção principal de que foi alvo em vida. Farkhunda morreu abatida como animal por ser mulher.
In “O Globo”, 10/05/2015
N.- Se alguém tiver coragem que veja na Internet (procure Farkhunda) a bestialidade de fotos e de vídeos.
São um horror. Só isto já justificaria tudo quanto os americanos lá andam a fazer. Infelizmente mal feito, como é hábito deles.
Os homens, em bando, são uns covardes fdp! Riem olhando para a mártir enquanto a arrastam, morta, e continuam a apedrejá-la! Como se fosse um joguinho! Infâmia.
Um clérigo ainda levantou a voz para dizer que ela "tinha merecido o que lhe fizeram!"
Um drone que “cumprimentasse” aquela mesquita seria um bem para a humanidade!
A nossa capacidade criativa jamais poderia pensar que tal bestialidade pudesse existir. COVARDES!
10/05/2015
Francisco Gomes de Amorim