OCIDENTE CONTRA OCIDENTE - 3*
III
A civilização da liberdade
Chegados a este ponto, um defensor do relativismo poderia retorquir da seguinte forma: “Está bem, concedo que o relativismo não funda a liberdade e a tolerância. Mas qual é então o valor ou valores fundadores? Que valores podem ser demonstrados como sendo universais? Quem é que pode demonstrar que um valor é melhor do que outro? “
Gostaria de afirmar aqui que não penso existir uma resposta inteiramente racional para esta pergunta, se por racional se entender uma resposta que não é baseada em pressupostos. Embora este ponto me levasse muito para além do âmbito da nossa discussão, sempre gostaria de afirmar que o meu entendimento de racionalidade não assenta na crença de que é possível começar do zero, sem pressuposições iniciais.
Também gostaria de declarar que a ambição de começar do zero, de limpar a tela e ignorar tudo o que alcançámos até agora não é um conselho de perfeição, é um conselho de desespero, o qual foi aliás seguido por Nietzsche, com resultados pouco encorajadores.
Como tenho argumentado noutras oportunidades, seguindo o pensamento de Karl Popper, a ambição de procurar argumentos primeiros isentos de pressupostos é o erro do racionalismo dogmático, racionalismo esse que, quando descobre que a sua tarefa é impossível, se transforma em racionalismo dogmático desapontado, isto é, em relativismo dogmático.
A minha proposta para discutir este problema é que evitemos o erro do racionalismo dogmático, o erro de tentar começar com pressupostos isentos de pressupostos. Na filosofia política e moral, tal como na ciência devidamente entendida, temos de começar aos ombros das gerações anteriores. Nos valores dos nossos pais, dos nossos avós, dos nossos antecessores. Não estamos sozinhos no mundo, nem o mundo começou aqui.
Se pesquisarmos nesta direcção, vamos entrar num diálogo intrigante com as tradições, com a sabedoria acumulada ao longo das gerações e expressa, nomeadamente, nas grandes obras da filosofia política e moral. Acabaremos por descobrir, parece-me, que uma fundamental mensagem moral - não certamente a única, mas uma decisiva - foi dada, embora nunca tenha sido “cientificamente provada", pela tradição judaico-cristã: os homens foram criados à imagem e semelhança de Deus, por isso têm basicamente a mesma dignidade moral. Mas esta dignidade é acima de tudo espiritual, é dada pela "alma": nem só de pão vive o homem.
Gostaria de argumentar, na linha do que foi brilhantemente apresentado pelo meu amigo Robert Royal no excelente livro The God That Did Not Fail [16], que esta é uma mensagem moral fundamental que está na base das nossas democracias liberais. Note-se, por exemplo, que os fundadores da democracia americana estavam a par disso mesmo: "Nós sustentamos que estas verdades são auto evidentes", - escreveram eles na Declaração de Independência de 1776 - "que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador com certos Direitos inalienáveis, entre os quais estão o direito à Vida, à Liberdade e à busca da Felicidade".
É importante recordar estas palavras da Declaração de Independência e perceber por que razão foram lá colocadas. E a razão é relativamente simples: ao contrário dos relativistas, os fundadores da democracia americana sabiam que a democracia é um legado do Cristianismo. Para eles, o Cristianismo não era apenas mais uma das múltiplas tradições religiosas que hoje concorrem entre si nas sociedades seculares do Ocidente. Tal como Alexis de Tocqueville observaria cem anos mais tarde, o Cristianismo era o berço da democracia na América – e era também no mundo cristão em geral que a democracia se desenvolvia.
Um dos maiores e mais admiráveis princípios morais do cristianismo é o de que todos os homens são filhos do mesmo Deus, criados por Ele à sua imagem e semelhança e é exactamente isso que é dito na Declaração de Independência. Isto significa que todos os homens possuem o mesmo valor moral, a mesma dignidade moral. Por isso, para usar a linguagem secularizada de Kant, nenhum indivíduo pode legitimamente tratar um seu semelhante como um meio; todos os indivíduos merecem ser tratados como um fim.
Ao contrário do que defende o relativismo e muitos discípulos da Revolução Francesa, a liberdade e a tolerância não nasceram do combate contra a religião, muito menos contra o cristianismo. A liberdade e a tolerância nasceram da convicção judaico-cristã de que existe uma lei moral mais alta que não depende do capricho da vontade sem entrave. Essa lei moral, pelo contrário, impõe limites ao exercício da vontade sem entraves, designadamente à vontade política sem entrave.
Esta associação entre liberdade e religião foi particularmente evidente para Tocqueville, quando o autor procurou descrever a distinção mais importante entre a América liberal e a França jacobina: “Já disse o suficiente para iluminar com exactidão o carácter da civilização anglo-americana. É o resultado (e deve-se manter isto sempre em vista) de dois elementos distintos, que noutros locais estiveram em desacordo frequente, mas que os americanos realizaram através de, em certa medida, uma junção e uma combinação admirável de ambos. Refiro-me ao espírito de religião e ao espírito de liberdade […] Deste modo, no mundo moral tudo é classificado, sistematizado, previsto e decidido com antecedência; no mundo político tudo é debatido, discutido e incerto. Num, deparamo-nos com uma obediência passiva, apesar de voluntária; no outro, com uma independência desdenhosa da experiência e desconfiada em relação a toda a autoridade. Estas duas tendências, aparentemente tão dissonantes, estão longe de conflituarem: ambas progridem em conjunto e apoiam-se mutuamente. […]
A liberdade considera a religião como a sua parceira em todos os seus combates e triunfos, como o berço da sua infância e a fonte divina das suas reivindicações. Entende a religião como uma garantia da moralidade e a moralidade como a melhor segurança da lei e o penhor mais certo da duração da liberdade” [17].
*
Procurei aqui brevemente argumentar que o relativismo não é capaz de sustentar a civilização da liberdade que diz defender. Procurei sugerir que só uma cultura da dignidade da pessoa humana pode oferecer uma base moral sólida para a civilização da liberdade.
No meu argumento não recorri a autores religiosos mas gostaria agora de sublinhar que a conclusão a que cheguei é exactamente a mesma que tem sido defendida pela Igreja católica e que foi, designadamente, recordada brilhantemente pelo então Cardeal Ratzinger na “Nota Sobre a Participação dos Católicos na Vida Política” de Novembro de 2002. Seja-me pois permitido referir agora uma citação desse documento: “O direito à liberdade de consciência e, de modo especial, à liberdade religiosa, proclamado pela Declaração Dignitatis Humanae do Concílio Vaticano II, está fundado sobre a dignidade ontológica da pessoa humana e, de maneira nenhuma, sobre uma inexistente igualdade entre as religiões e os sistemas culturais humanos. Nesta linha, o Papa Paulo VI afirmou que ‘o Concílio, de modo nenhum, funda um tal direito à liberdade religiosa sobre o facto de que todas as religiões e todas as doutrinas, mesmo erróneas, tenham um valor mais ou menos igual; funda-o, pelo contrário, sobre a dignidade da pessoa humana, que exige que não se a submeta a constrições exteriores, tendentes a coarctar a consciência na procura da verdadeira religião e na adesão à mesma.’ A afirmação da liberdade de consciência e da liberdade religiosa não está, portanto, de modo nenhum em contradição com a condenação que a doutrina católica faz do indiferentismo e do relativismo religioso; pelo contrário, é plenamente coerente com ela.”[18]
Esta concepção da dignidade humana está no centro da civilização ocidental. Aqueles que querem ignorá-la, ou que querem apagá-la, ou que querem exclui-la da vida pública põem em risco a própria liberdade ocidental que dizem defender.
Por isso, também os não crentes que amam a liberdade devem compreender a tempo que a separação entre a Europa e a América, ou a guerra do Ocidente alegadamente ateu contra o Ocidente cristão é na verdade uma guerra contra o Ocidente no seu conjunto: o Ocidente como conversação a várias vozes de que falei no início desta palestra, citando Michael Oakeshott e Edmund Burke, ou, como referiu o Papa Bento XVI no célebre discurso da Universidade de Ratisbona, o Ocidente como conversação entre fé e razão. Essa mesma ideia de conversação foi recordada por João Paulo II na sua exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa com a qual gostaria de terminar: “Múltiplas são as raízes que com a linha dos seus ideais contribuíram para o reconhecimento do valor da pessoa e da sua dignidade inalienável, o reconhecimento do carácter sagrado da vida humana e do papel central da família, da importância da instrução e da liberdade de pensamento, de palavra, de religião (...). Importa recordar aqui o espírito da Grécia antiga e da Romanidade, os contributos dos povos celtas, germânicos, eslavos, ugro-finlandeses, da cultura hebraica e do mundo islâmico. No entanto, há que reconhecer que historicamente estas inspirações acharam, na tradição judaico-cristã, uma força capaz de as harmonizar, consolidar e promover. É um facto que não se pode ignorar; pelo contrário, é preciso reconhecer, no processo de construção da “casa comum europeia”, que este edifício deve assentar também sobre valores que encontram na tradição cristã a sua plena epifania. Reconhecê-lo é vantajoso para todos”[19].
João Carlos Espada
* Comunicação apresentada ao IX Congresso Católicos y Vida Pública, Madrid, Universidade CEU San Pablo, 16-18 de Novembro de 2007
[1] Kenneth Clark, Civilisation, London: The Folio Society, 1999, p. 10 (Ed. Or., London: BBC Books & John Murray, 1969).
[2] George Weigel, O Cubo e a Catedral:A Europa, a América e a Política sem Deus, Lisboa: Aletheia, 2006.
[3] Robert P. George, The Clash of Orthodoxies: Law, Religion and Morality in Crisis, Wilmington: ISI Books, 2001.
[4] “Religion and Public Life”, in The Economist, London, 3 de Novembro de 2007.
[5] James Ceaser, “O Anti-Americanismo na Europa e mais além”, in Nova Cidadania, Ano VI, Nº 22, Outubro/Dezembro 2004, pp. 36-40.
[6] Martin Heidegger, Na Introduction to Metaphysics, New Haven: Yale University Press, 1959, orig. 1935, p.37, citado por James Ceaser, op.cit, p. 40.
[7] James Ceaser, op. cit., pp. 39-40.
[8] William Galston, Liberal Purposes: Goods, Virtues and Diversity in the Liberal State, Cambridge, UK: cambridge University Press, 1990, pag. 90.
[9] Idem, op. cit., Vol. II, p. 206.
[10] Idem, op. cit, Vol. II, p. 55.
[11] Emil Brunner, Justice and the Social Order (New York, 1945, p.7), citado por F. A. Hayek, op. cit., Vol. II, p. 173, nota 68.
[12] F. A. Hayek, Law, Legislation and Liberty, (London: Routledge & Kegan Paul, 1982), Vol. I, p. 55.
[13] Isaiah Berlin, “Dois Conceitos de Liberdade”, in A Busca do Ideal, (Lisboa: Bizâncio, 1998) pp. 288-9.
[14] Leo Strauss, Natural Right and History (Chicago & London: The University of Chicago Press, 1965) pp. 1-2.
[15] Idem, “The Three Waves of Modernity”, in An Introduction to Political Philosophy: Ten Essays (Detroit: Wayne State University Press, 1989) p. 81.
[16] Robert Royal, The God That Did Not Fail, New York: Encounter Books, 2006.
[17] Alexis de Tocqueville, Democracy in America, (London: Everyman’s Library, 1994 [or. ed. 1835]), pp. 43-44.
[18] Jospeh Card. Ratzinger e Tarcísio Bertone, SDB, “Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação dos católicos na vida política”, Roma, 24 de Novembro de 2002, citado de Nova Cidadania, Ano V, Número 19, Janeiro/Março de 2004, pp. 28-29.
[19] João Paulo II, Exortação apostólica pós-sinodal Ecclesiain Europa, Vaticano, 2003, pag. 19, citado em João César das Neves, Europa e o Futuro: Maria e a mensagem de Fátima, Lisboa: Paulus, 2007, p. 148.