«SOLI DEO GLORIA»
Por três vezes, a cultura esteve bem alta em Portugal. E se digo «em Portugal» e não de outro modo, isso deve-se a que o pretexto dos três eventos foi Bach e três das suas seis suites para violoncelo solo. Mas todos os intervenientes – palestrantes e instrumentista – são portugueses e quase me apetecia dizer que foi a Cultura Portuguesa que esteve bem alta nesses três serões na Capela do Rato, aqui em Lisboa. Mas contenho-me. Contudo, se o tema fundamental era oriundo da Cultura Alemã, foram portugueses que o glosaram no nível mais sublime e conduziram os ouvintes ao mais requintado prazer cultural. Assim, sim!
Irene Lima, a violoncelista de que há muito ouvia falar, tem uma postura que inspira confiança pela suave decisão que imprime ao arco quando «ataca» as cordas e pela forma como domina os problemas técnicos que adivinhamos quase ciclópicos. Não está ali para brincar, sabe o que faz. Então nós, ouvintes, percebemos que aquela é mesmo música séria interpretada com seriedade e muita mestria. E quando o meu padrão pessoal se regia pelas gravações das Suites de Bach que tenho por Pablo Casals e por Paul Tortelier, tenho agora que elevar o registo pelo nível do arco de Irene Lima. Repito: assim, sim!
E
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano...
Mas esta foi arte efémera pois desapareceu com a última nota tangida. Devemos ser muitos os melómanos que aguardamos pela gravação comercial das seis Suites de Bach para violoncelo solo executadas por Irene Lima. Aguardemos...
E como toda a capela tem um Capelão, a do Rato também nivela por cima e tem como seu principal responsável o Padre José Tolentino Mendonça que, como os demais palestrantes neste ciclo, dispensa apresentações.
Organizado por Bruno Caseirão, o ciclo de três palestras-concerto teve sempre «casa» cheia e tenho a certeza de que, como eu, todos tivemos pena de ver o ciclo chegar ao fim. Resta a esperança de que haja segunda volta para, das seis Suites, ouvirmos as que por agora ficaram em falta, a 3ª, a 4ª e a 6ª.
À hora certa, o Padre Tolentino abria a sessão com brevíssimas palavras de agradecimento pela ocorrência de tanta gente à sua Comunidade e pela feliz temática da conjugação do belo e do Divino a que se seguiam palavras interessantíssimas do Bruno Caseirão específicas à Suite que iria ser de seguida tocada. E, para além de interessantes, foram palavras importantes que permitiram aos leigos na matéria percebermos «coisas» que, se não referidas, nos haveriam de escapar. Mas não se ficou apenas por temas técnicos, fez sempre um breve enquadramento histórico que nos permitiu imaginar o ambiente circundante de Bach. Os aplausos que lhe demos não foram por favor.
No primeiro evento, falou João Tordo, no segundo fomos brindados com palestra de Guilherme d’Oliveira Martins e no terceiro e último pudemos escutar Mário Cordeiro e Eduardo Lourenço. Ninguém por certo contestará a minha opinião de que se tratou de cartaz de luxo.
Outros espectadores terão retido outras particularidades do que foi dito mas eu registei sobretudo o cristianismo luterano de Bach sobre que tanto se falou. E houve mesmo quem abordasse a questão da Justificação de Lutero (Guilherme d’Oliveira Martins e Eduardo Lourenço), fazendo-o em termos breves mas dando-lhe a perspectiva do Divino, essencial na temática do ciclo e, pelos vistos, essencial também no espírito de Bach ao compor estas Suites.
É tão bom escutar gente inteligente e sabedora. Assim, sim!
E para acabar, digo apenas que estas Suites de Bach fazem parte do reduzidíssimo número de peças que tenho como a essência da música. Outras que incluo neste muito restrito clube? As Vier Letzte Lieder de Richard Strauss.
Novembro de 2016
Henrique Salles daFonseca
ET: já que a Antena 2 da RDP divulgou mas não gravou os concertos, espero que as palestras proferidas em cada sessão possam ser publicadas para deleite repetido de quem as ouviu em tiro tenso e para aprendizagem de quem não esteve presente.