Fátima Patriarca (1944-2016)
OBITUÁRIO
Maria de Fátima da Silva Patriarca nasceu no Monte do Sol Posto, no Couço, concelho de Coruche, em 19 de Janeiro de 1944 e morreu em Lisboa, no Hospital da CUF, na manhã do dia 11 de Março de 2016.
A sua família era natural de Manteigas, e Fátima Patriarca nasceu no Ribatejo por uma circunstância fortuita: o seu pai trabalhava no Monte do Sol Posto como contabilista da casa agrícola dos Ribeiro Telles e professor dos filhos dos trabalhadores daquela herdade.
Em 1949, a família partiu para Benguela, em Angola, onde Fátima Patriarca passou a infância e os primeiros tempos de juventude. Aí fez a escola primária, o curso comercial e o liceu, após o que veio estudar Germânicas na Universidade de Lisboa. Tendo ingressado em Letras em plena crise académica de 1961, duas reprovações inesperadas – a Inglês e a Alemão – deram-lhe pretexto para abandonar um curso que não a motivava, indo ao encontro do seu interesse pelos problemas sociais. Assim, transferiu-se em 1963 para o Instituto Superior de Serviço Social, onde se diplomou, com 17 valores, em 1967. Em Novembro desse ano, participou nas acções de socorro às vítimas das cheias que devastaram a Grande Lisboa, e provocaram centenas de mortos. Recordaria para sempre o cenário dantesco desses dias, um momento decisivo na formação cívica e política de muitos jovens da sua geração.
Entre 1968 e 1973, foi técnica de Serviço Social na Direcção-Geral de Previdência e Habitações Económicas. A actividade desenvolvida aí permitiu-lhe enriquecer o seu já profundo conhecimento do país, sendo um factor determinante da futura carreira académica e da obra que produziu.
Tendo decidido ir para Paris em 1969, Fátima Patriarca foi, entre 1970 e 1972, bolseira da Fundação Gulbenkian. Nessa qualidade, frequentou o Troisième Cycle em Sociologia, na École Pratique des Hautes Études, VIe Séction, onde obteve o Diplôme d’Études Approfondies en Sciences Sociales (deass).
Após regressar de França, reassumiu funções na Direcção-Geral de Previdência e Habitações Económicas e, em simultâneo, colaborou no Grupo de Sociologia do Gabinete Técnico de Habitação da Câmara Municipal de Lisboa. Em 1973, transitou para o Centro de Documentação e Informação deste organismo, onde permaneceu até 1975.
Quando, em 1974/1975, colaborou, no Gabinete de Investigações Sociais (GIS), na investigação sobre “Conflitos de trabalho após o 25 de Abril”, sob responsabilidade de Maria de Lourdes Lima dos Santos, Marinús Pires de Lima e Victor Matias Ferreira, Fátima Patriarca possuía já alguma experiência docente, pois leccionara entre 1969 e 1970 no Instituto Superior de Serviço Social, funções que retomaria em 1974/1975 (sendo responsável pela disciplina de Sociologia do Trabalho). Neste ano de 1975 foi assistente do ISCTE, sendo igualmente em 1975 que ingressou no Gabinete de Investigações Sociais. A partir daí, inicia em pleno o seu percurso como investigadora, encerrando--se um ciclo de vida até então pontuado pelo trabalho como técnica de Serviço Social e por uma passagem pelo ensino, que não terá sido especialmente relevante para a sua obra posterior.
Em 1980, licencia-se em Sociologia no ISCTE, com a classificação final de 18 valores. A sua área de especialização – a Sociologia Industrial – levara-a a contactar directamente o meio fabril português, acompanhando de perto a laboração de empresas como a Lisnave, a Sidul, a Sorefame, a Setenave e, sobretudo, a Mague. Com a integração do GIS na Universidade de Lisboa, passa a Assistente de Investigação no Instituto de Ciências Sociais (ICS). Entre 1989 e 1991, primeiro sob orientação de Maria Filomena Mónica e Manuel de Lucena e, depois, de Adérito Sedas Nunes, desenvolve o projecto de investigação “O processo de instauração do corporativismo, no domínio das relações entre o capital e o trabalho (1930-1947)”, o qual culmina na sua dissertação, em Janeiro de 1992.
Antes desse trabalho de grande fôlego, Maria de Fátima Patriarca estivera envolvida noutros importantes projectos: entre 1975 e 1978, com Marinús Pires de Lima e José David Miranda, “A acção operária nas empresas após o 25 de Abril – significado do movimento conflitual e grevista”; em 1978, num trabalho financiado pela Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica e intitulado “O trabalho e a acção operária na indústria metalomecânica pesada”; e, entre 1983 e 1986, “Sindicatos, contratação colectiva e greve: o caso dos metalúrgicos portugueses (1968-1972)”.
Em Janeiro de 1992, concluiu as provas da carreira de investigação no ICS, com a classificação máxima. Para o efeito, apresentou a dissertação “Processo de implantação e lógica e dinâmica de funcionamento do corporativismo em Portugal – os primeiros anos do salazarismo”, volumoso trabalho, mais tarde publicado em livro, em dois tomos, com o título A Questão Social no Salazarismo, 1930-1947 (Lisboa, INCM, 1995). A obra é dedicada a Adérito Sedas Nunes, a quem agradece “uma total liberdade e uma crítica implacável, condições indispensáveis ao trabalho e maturidade intelectuais”. Além desse agradecimento, Fátima Patriarca manifesta a sua gratidão a diversos colegas, mas destaca dois: Maria Filomena Mónica, com quem colaborou durante anos sobre as “questões operárias”, e Manuel de Lucena, que apelida de “pioneiro nos estudos sobre o corporativismo”, e ao qual agradece o estímulo e, em particular, as críticas e as sugestões nascidas de uma “leitura atenta e rigorosa” do texto, traço que é fácil reconhecer por todos quantos beneficiaram da argúcia e generosidade de Manuel de Lucena.
Além da dissertação, prestou provas complementares, tendo apresentado o trabalho “Projecto de investigação: sindicatos e luta social no regime corporativo – dos anos 50 a 1974”. Tratava-se de um projecto que prosseguiu mesmo após a sua jubilação, ocorrida em Outubro de 2005. Ao jubilar-se, Fátima Patriarca concluía uma carreira que a fizera percorrer todos os passos de um exigente caminho, de Assistente a Investigadora Principal.
Maria de Fátima Patriarca concentrou praticamente toda a sua actividade no ICS. Foi aí que, com Maria Filomena Mónica, criou em 1979 o Arquivo Histórico das Classes Trabalhadoras, mais tarde Arquivo de História Social do ICS. No GIS e, depois, no ICS, exerceu as mais diversas funções, entre as quais as de vogal do Conselho de Gestão e do Conselho Científico do GIS, membro do Conselho de Redacção do Boletim de Estudos Operários, representante dos investigadores do ics na Assembleia da Universidade de Lisboa, responsável pelo Arquivo de História Social do ICS, membro da Comissão Permanente do Conselho Científico, do Conselho de Redacção da Análise Social, da Imprensa de Ciências Sociais e presidente da Assembleia de Representantes.
O reconhecimento dos seus méritos como cientista social e o apreço pela integridade do seu carácter fizeram com que fosse chamada a desenvolver trabalhos sobre questões relacionadas com o ensino superior e a investigação. Entre 1991 e 1993, participou na pesquisa dirigida por José Mariano Gago sob o título “Papel das investigações científicas e tecnológicas e do ensino superior no planeamento estratégico de Lisboa”. Entre 1993 e 1994, foi membro do Grupo de Trabalho – Inquéritos, no quadro da avaliação da Universidade de Lisboa. Sendo muito vasta a sua acção nestes domínios, seria fastidioso recordar cada um dos momentos em que Fátima Patriarca neles teve intervenção, bastando mencionar a sua participação em 2004 – e a convite de António Barreto –no painel de avaliação de projectos de investigação apresentados à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) e ao Ministério da Segurança Social.
É certo que, como atrás se referiu, a sua obra como investigadora se destaca em face da actividade docente. No entanto, Fátima Patriarca ministrou cursos e palestras, organizou conferências e, sobretudo, mobilizou e integrou várias equipas de cientistas sociais. Neste contexto, entre 1974 e 1976 leccionou no ISCTE o “Seminário sobre a sociedade portuguesa – área de conflitos de trabalho”. Em paralelo, de 1975 a 1983 iria, com Marinús Pires e Lima e Maria Filomena Mónica, promover a realização de palestras e seminários de investigadores estrangeiros, como Alain Touraine, Michelle Perrot, ou Patrick Friedenson. Foi também convidada a proferir conferências ou leccionar em seminários de pós-graduação ou cursos de mestrado nos mais variados lugares – Escola Nacional de Saúde Pública, ISCTE, FCSH da Universidade Nova de Lisboa, ICS. Foi, todavia, em colaboração com Maria Filomena Mónica que mais frequentemente trabalhou, seja nas iniciativas atrás citadas, seja na organização, em 1981, do colóquio “O movimento operário em Portugal”, seja, enfim, na coordenação do seminário “Fontes e arquivos com importância para o estudo do movimento operário”, de 1984.
Além do Budo, que praticou durante quase 50 anos, cultivava outras artes, igualmente marciais. Entre elas, a maior de todas, a amizade. Por leal amizade, tomou entre mãos e chamou a si tarefas que a obrigaram a abandonar a sua “zona de conforto”, como agora se diz, mergulhando a fundo, por exemplo, na coordenação científica da exposição “1936 – Tarrafal – Guerra Civil de Espanha”, inaugurada na Torre do Tombo em 2006. Antes disso, recolhera apoios para a elaboração, a que procedeu, de um fac-símile do Álbum Fontoura, composto por 549 fotografias da antiga colónia portuguesa de Timor e depositado no Arquivo de História Social do ICS. Mais tarde, a amizade com Manuel de Lucena levá-la-ia, sob coordenação deste, e em colaboração com Rita Almeida de Carvalho, a acompanhar a transcrição e disponibilização online de fontes escritas e orais preciosas sobre a descolonização portuguesa. Não seria este o último gesto de amizade que teria para com Manuel de Lucena, cuja morte inesperada a abalou profundamente. Dedicou-se, com alguns colegas, à organização da obra colectiva Estados, Regimes e Revoluções. Estudos em Homenagem a Manuel de Lucena (2012), para a qual contribuiu com um texto sobre “A batalha de Pomigliano d’Arco”.
Ao longo da sua carreira, publicou dois livros. Um, já citado, sobre a questão social no salazarismo. O outro chama-se Sindicatos contra Salazar.
A Revolta do 18 de Janeiro de 1934, e foi dado à estampa pela Imprensa de Ciências Sociais em 2000. Além disso, cerca de uma vintena de artigos de revista, textos breves, entradas de dicionários. Tratou um dos mais importantes documentos que se conhecem sobre a génese do Estado Novo: o “Diário” do chefe de gabinete de Salazar, Antero Leal Marques, que, graças à generosidade da família, deu entrada no Arquivo de História Social e daí saiu impecavelmente transcrito, anotado e apresentado por Fátima Patriarca nas páginas desta revista. Realizou o seu último trabalho – a revisão científica de Cronologias de Portugal Contemporâneo (1960-2015) – de forma tremendamente séria, com o perfeccionismo que decorria do profundo sentido de responsabilidade que colocava em tudo quanto fez em vida.
Ao evocar a sua obra, num texto notável lido por ocasião da oportuna homenagem que em 2015 o ICS prestou aos seus historiadores, Álvaro Garrido observou: “Publicou sempre textos amadurecidos e só publicou quando entendeu que tinha coisas importantes a dizer porque entendeu submeter resultados de investigação ao escrutínio dos pares”.
Como também sublinhou Álvaro Garrido, Sindicatos contra Salazar. A Revolta do 18 de Janeiro de 1934 é uma “obra sofisticada, de grande maturidade e de culto pela micro-história à Carlo Ginzburg”. Intrigada pelo 18 de Janeiro como um dos mitos fundadores da imagem revolucionária do proletariado português, Fátima Patriarca deslinda-o com a exasperante minúcia de um médico legista ou de um detective de romance.
Avessa aos desconcertos do mundo, nunca buscou a polémica, ainda que neste seu livro haja desmantelado, pedra a pedra, mitos quase sacrais e crenças bem arreigadas sobre o “soviete da Marinha Grande”. A dado passo da Introdução, a autora fornece-nos uma pálida imagem do que foi a dimensão do seu esforço: além de uma cronologia ao minuto de tudo o que se passou em Portugal no dia 18 de Janeiro de 1934, a pesquisa envolveu a elaboração de um ficheiro onomástico de perto de 400 pessoas referenciadas pela imprensa. Depois, com a abertura do arquivo da PIDE/DGS, houve que reabrir o labor de pesquisa, meses a fio.
Escrevendo no dia da sua morte, a sua grande amiga Maria de Fátima Bonifácio disse, sagazmente, que “a maior dificuldade da Fátima Patriarca era convencer-se a si mesma”. A humildade era um dos traços mais vincados do seu carácter. Mas foi dessa humildade que nasceu a enorme solidez da sua obra. Nada ousava dizer sem a certeza absoluta de que as suas afirmações eram apoiadas em dados certos, indesmentíveis. Tinha, aliás, a consciência de que, trabalhando com arquivos, estes nem sempre são fiáveis.
Deixou-se para último aquilo que é primeiro. Estas linhas foram escritas porque alguém me fez chegar às mãos o curriculum vitae de Fátima Patriarca.
Esse alguém tem um rosto e um nome: Jorge Almeida Fernandes. Casaram em 1965, na Igreja de São João de Brito, Lisboa. Estiveram juntos, portanto, mais de cinco décadas. Num sábado de tempo incerto, lançou-lhe as cinzas ao mar – e, com elas, um pouco de todos nós.
António Araújo
(FCSH-UNL)
in Análise Social, 219, LI (2.º), 2016