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A bem da Nação

SERVIÇO DA REPÚBLICA

 

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(...) a República não mereceria

os melhores desta geração por 

não se sentirem estes respeitados

nem reconhecidos, o que teria por

consequência o recusarem-se  a

continuar a entregarem os seus

méritos e esforços à Nação.

Adriano Moreira

(entrevista a Mário Crespo)

 

 

 

O Professor tem expressões interessantes que habitualmente exigem uma segunda leitura para cabal entendimento. Se lido é assim, ouvido exige muita atenção – a tal que impunha o silêncio no hemiciclo parlamentar quando subia à tribuna dos oradores – para não se perder o fio à meada. Sólido e substancial não é, contudo, límpido.

 

Da frase proferida entendo que gente de bem não se disponibiliza para a mistura com os vulgares profissionais de serviço à República. Tenho a ideia como boa.

 

Também tenho a República como boa e a actual ausência de Ética como má. Mas esta ausência nada tem a ver com o Regime. Tem, isso sim, com o pós-modernismo em que desgraçada e globalmente caímos. E ao anularem a Ética também mataram o futuro. Os modernistas foram os últimos que tiveram futuro. Os pós-modernistas veneram a Deusa Hedone e seu esposo US Dólar. Julgam-se ilustres mas não passam de vaidosos; julgam-se ricos mas vivem do crédito que os crédulos lhes conferem; julgam-se predestinados para o desempenho de uma missão que gerem a cada momento que passa sem uma perspectiva de futuro, o tal que mataram pois mais não lhes interessa do que o momento presente: não deixes para amanhã o que podes gozar hoje.

 

Na praça pública rareiam hoje os valorosos e pululam os banais. E não só no âmbito do vulgarizado debate político – prenhe de insultos, acusações, dislates e presumidas corrupções ao mesmo tempo que virgem de ideias novas ou de Sentido de Estado – mas na vida cá fora também.

 

Solução? Reponha-se a Ética – que é a questão dos factos – já que pedir Moral, a questão dos princípios, é demais para quem paira longe dessas alturas. Pode ser que então os valorosos se dignem servir a Nação. Se de uns e da outra ainda houver.

 

Henrique Salles da Fonseca - Chile

Henrique Salles da Fonseca

 (ao nascer do Sol no Estreito de Magalhães, Chile)

A HERANÇA COMUM PERTENCE À HISTÓRIA

Salazar no leito de morte.jpg

 

De vela ao cadáver de Salazar, fui-me lembrando de muitos acontecimentos relacionados com a vida pública da nossa terra, em que a sua presença foi dominante. E também de alguns relacionados apenas com o seu modo de ser, que marcou o estilo do governo e da administração, e o estilo de uma geração de dirigentes. Dos que o seguiram e dos que o combateram. Todos marcados, na sua intimidade mais funda, pelo homem e pela sua acção.

 

Recordarei aqui duas imagens persistentes. Numa manhã de domingo, do ano de Angola Mártir, fui visitá-lo ao forte do Estoril. Como cheguei a pé, não tocaram a sineta que habitualmente chamava para abrirem os portões do caminho de acesso dos automóveis. Subi a breve escada que ali existe. Ao fundo do pátio, onde se encontra a capela, as portas desta estavam abertas. De frente para o altar, a sós com Deus, Salazar cuidava da toalha, e das flores e das velas. Pensei que não tinha o direito de surpreender esta intimidade. Regressei vagaroso pelo mesmo caminho. Pedi para tocarem a sineta. Quando voltei a subir a breve escada do pátio, já ele estava sentado na sua velha cadeira, mergulhado nos negócios do Estado. Era a imagem de um homem de fé segura, sabendo que haveria de prestar contas. A brevidade da vida iluminada pelos valores eternos. O poder ao serviço de uma ética que o antecede e transcende.

 

Acrescento outra imagem desse tempo. Recordo os discursos, as notas, as entrevistas, as declarações, em que sucessivamente definia a doutrina nacional de sempre para a crise da época. Tudo escrito pela sua mão. Mas depois, não obstante a urgência e a autoridade pessoal, tinha a humildade de chamar os colaboradores e, em conjunto, discutir, e emendar. A grandeza natural de quem pode aceitar dos outros, sendo sempre o primeiro.

 

E assim foi exercendo o seu magistério. Com fé em Deus e recebendo agradecido os ensinamentos do povo. Porque nunca pretendeu sabedoria superior à de entender e executar o projecto nacional. E nunca quis mais do que amar até ao último detalhe a maneira portuguesa de estar no mundo, preservando e acrescentando a herança.

 

O Ultramar foi a última das suas preocupações maiores. Como se, ao crescer em anos e diminuir em vida, quisesse guardar todas as energias para sublinhar a essência das coisas. Todos os cuidados para a trave mestra. Doendo-se por cada jovem sacrificado. Rezando, e esperando que o sacrifício fosse atendido e recompensado. De joelhos perante Deus e de pé diante dos homens. Humilde com o seu povo, orgulhoso perante o mundo.

 

Assim viveu, acertando ou com erros, mas sempre autêntico. Com princípios. O único remédio conhecido contra a corrupção do poder. E muito principalmente quando se trata de um poder carismático, como era o seu caso. Um desses homens raros que a fadiga da propaganda não consegue multiplicar. Porque ou as vozes vêm do alto ou não existem. Não há processo de substituir o carisma. Por isso, também, essa luz, que tão raramente se acende, é toda absorvida pelo povo, o único herdeiro. Soma-se ao património geral. Inscreve-se no livro de todos. Pertence à História. Transforma-se em raiz.

 

8 de Outubro de 2008

 

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Adriano Moreira

AS VINHAS DA IRA

 

As duas guerras mundiais, que devastaram a Europa numa escala desproporcionada, foram as duas seguidas de uma espécie de nova belle epoque, a preencher o intervalo entre calamidades.

 

Entre as mudanças sociais decorrentes da primeira, a libertação das mulheres aparece como um facto dos costumes e dos valores.

 

Foi geralmente atribuída essa mudança às funções que inevitavelmente foram chamadas a exercer, vista a mobilização dos homens pelos exércitos e urgência de mão-de-obra, e do aprender a fazer, na retaguarda.

 

As oficinas, o campo, a casa, os hospitais, e assim por diante, encheram-se de uma criatividade feminina que, para facilitar a movimentação, e como foi observado, cortaram o cabelo e encurtaram as saias.

 

Uma nova atitude em relação às ascendentes que tinham sido viúvas de homens vivos que partiram para as tarefas do Estado nas lonjuras a descobrir, ou para onde o mercado de trabalho permitisse aos homens que emigraram que enviassem as remessas com que sustentavam a família que ficava e equilibravam a balança de pagamentos estaduais.

 

A crise de 1929, que antecedeu como anúncio a guerra seguinte, e que, como agora, teve causa relevante nos EUA, foi também caracterizada por uma explosão sem regra que não fosse a eficácia do enriquecimento especulativo.

 

A crise do comércio, o desemprego, o desespero, as tragédias, multiplicaram-se, com suicídios de grandes interventores no mercado.

 

Foi neste ambiente que Steinbeck, agora lembrado, escreveu As Vinhas da Ira, e que John Maynard Keynes publicou a Teoria Geral.

 

Felizmente para os EUA, o presidente Roosevelt, que evidentemente escutava os economistas, sabia que esta não dispensava, antes necessitava do estadista que, no caso, criou um conceito estratégico, o New Deal, assumido com essa natureza, porque, disse, tinha um encontro com um desafio de história (Barreau e Bigot).

 

A pergunta que a memória anda a suscitar é se As Vinhas da Ira, que corresponderam literalmente ao levantamento da circunstância social, não voltarão a ser uma leitura útil para quem governa em tempos de crise, atraindo-os para a realidade e não apenas para as proposições auxiliares dos analistas técnicos, acontecendo que Roosevelt nunca conheceu pessoalmente Keynes.

 

Na situação gravíssima da Europa, sobretudo a pobre, não faltam já páginas de novas Vinhas da Ira escritas por quem vive as circunstâncias reais da população, diferentes em cada comunidade, mas que são desconhecidas pelos qualificados técnicos que percorrem, decidindo, sobre os povos que não conhecem.

 

Isso não os impede de convictamente opinarem com decisão sobre a reforma de cada Estado, ou refundação do Estado, seja isso o que for, porque o consequencialismo visível, que envolve todos os outros, é o afundamento progressivo do Estado, da qualidade de vida, e das esperanças de futuro.

 

Alguma modéstia académica, e a leitura d'As Vinhas da Ira que vai sendo escrita, ou discursada, alguns dos excelentes cientistas que temos e não emigraram talvez pudessem enriquecer o processo de decisão, e sem dúvida diminuindo os custos da administração paralela.

 

As intervenções que constantemente fazem, tornando públicas as suas advertências e conselhos, correspondem a um ensino antigo, segundo o qual o acto de governar exige a coordenação da escuta do conselho com a responsabilidade de decidir.

 

A ordem e serenidade das vítimas dos erros da política de novo-riquismo demonstram que o civismo é um valor que resiste à quebra do valor da confiança na governança que lavra por todo o Ocidente.

 

É seguramente mais inquietante que pareça necessário afirmar que os responsáveis pela ordem garantem a governança, isto é, o civismo da população de que aquela depende, do que manter a certeza de contar com a boa ordem porque o valor da confiança não foi afectado pelo enfraquecimento da legitimidade do exercício.

 

Recentes eleições num país mais afectado pela crise, que é a Itália, demonstram que é a falta de esperança na legitimidade do exercício dos eleitos que já afecta o regime, visto pelos outros países.

 

5 de Março de 2013

 

 Adriano Moreira

"A CULPA MORRE SOLTEIRA"

 
 
Adriano Moreira tem 90 anos. Nunca viu um Portugal assim. Nunca viu um mundo assim. Fala da decadência do mundo ocidental, não fala apenas de políticos e de políticas ruinosas.

 

Não deixa, contudo, de sublinhar que “não é com fórmulas aritméticas que se governam os países”. Fala de um princípio de solidariedade que ainda é a marca maior da identidade europeia. Onde vai ele?

Jornal de Negócios, 14 de Fevereiro de 2013

 

Nesta entrevista, fala-se do futuro com um homem que já viveu muito. E que usa expressões como “remédios” quando aponta soluções para um país em estado comatoso. Somos um corpo doente?

 

A revolução está iminente? A resposta talvez esteja, como sempre está, quando se trata de grandes cataclismos, na fome.

 

Havia uma secretária entre nós, no seu gabinete da Academia das Ciências, quarta-feira de manhã.

 

Do outro lado da rua estava o liceu que frequentou. Mas não se falou do seu percurso nem do seu passado. Sob a lupa estava quem somos e o que vivemos, enquanto país.

 

 

“A culpa morre solteira” – expressão sua.

Usei-a no Parlamento. É uma prática muito verificável em Portugal, designadamente na crise que estamos a atravessar. Você ainda não viu que alguém assumisse a responsabilidade pelas circunstâncias a que chegámos.

 

Esse é um traço constante, observável em diferentes momentos históricos da vida portuguesa. De onde é que acha que vem esta característica? Em Portugal tudo fica no ar, e raramente há consequências e um sentimento de justiça que o acompanha.

Acho que devia ter nascido mais cedo e ter feito essa pergunta ao Agostinho da Silva. [riso] Era capaz de lhe dar uma resposta satisfatória. Há, em todo o caso, uma circunstância de que Portugal é vítima neste momento. Normalmente, quando examinamos a vida de um país, há três forças que é necessário avaliar. Uma é a sociedade civil, que neste momento faz manifestações completamente apartidárias, o que é preciso ver com cuidado. São expressões que dizem respeito a sentimentos que unem a população, por razões de queixa fundamentais.

 

Está a pensar na manifestação de 15 de Setembro de 2012?

Exactamente. Depois há outra força: o Governo. E finalmente a terceira força: a conjuntura internacional que influencia qualquer país, e cada vez mais face ao globalismo. Uma ordem internacional implica que pelo menos estes três factores tenham uma harmonia de funcionamento.

Essa harmonia não existe. Com frequência, aconteceu em Portugal a desarmonia entre o Governo e a população, a desarmonia do país com a conjuntura internacional. Portugal sofreu nos últimos tempos uma evolução extremamente alarmante. Na História portuguesa, o país precisou sempre de um apoio externo.

 

Sempre?

O Afonso Henriques pediu apoio à Santa Sé. A Segunda Dinastia pediu a aliança inglesa e pagou caríssimo por ela. No fim do império euro-mundista o único apoio que restou foi a União Europeia. Esta evolução mostra que o país (na ligação com o mundo) é muitas vezes exógeno. Quer dizer: sofre as consequências de causas em que não participou. Um exemplo: a Guerra de 14/18. Portugal participou nas causas? Não. As consequências, quer em Moçambique, quer em Angola, quer na Flandres [foram enormes].

Começou a ser evidente que o país tinha evoluído para um “estado exíguo”. (Escrevi um livro com esse título há anos, dizendo que a relação entre os recursos do país e os objectivos do país é deficitária.) Várias pessoas com responsabilidade na vida pública avisaram que este declínio estava em marcha. Quando essa equação (recursos-objectivos) chegou à situação de desastre em que nos encontramos, o país ficou em regime de protectorado.

 

Um regime sobretudo imposto pela situação financeira?

Sim. Os países têm uma espécie de hierarquia internacional – é por isso que o Conselho de Segurança tem as superpotências. Para terem essa hegemonia precisam de ter um poder que abrange o poder militar, estratégico e financeiro. Quando esses poderes começam a afastar-se, a hierarquia começa a diminuir. Os Estados Unidos estão a ser atingidos por isso. Portugal (últimas notícias sobre as restrições nas forças armadas) mostra que nessa relação (poder militar-poder financeiro) a nossa debilidade é extrema. É isso que justifica a situação de protectorado em que o país se encontra. As outras debilidades evidentemente atingem o país de um modo mais previsível.

 

Soluções?

Remédios? Em primeiro lugar é preciso restaurar um valor importante: o da confiança. A confiança entre a sociedade civil, Estado e conjuntura internacional está profundamente atingido. Parece-me que tem havido uma certa dificuldade, da parte do Governo, em compreender que há uma diferença entre a legitimidade eleitoral, que justifica a tomada de poder, e a legitimidade do exercício [de poder], que começa a ser avaliada no dia seguinte [à tomada de posse]. Esta legitimidade para a execução não é uma coisa para entretenimento das estatísticas de popularidade.

 

Está a dizer que tem de haver uma correspondência com aquilo que foi o programa eleitoral.

E com a autoridade que foi conferida. Não é só em Portugal que esse valor está em crise. O novo-riquismo que orientou a gestão europeia, e que levou a Europa a esta situação, já se traduziu no seguinte: a fronteira da pobreza, que ainda no século passado os relatórios da ONU situavam a sul do Sahara, ultrapassou o norte do Mediterrâneo. Portugal está na área de pobreza. Como está a Espanha, a Grécia, a Itália; a França já começa a dar sinais disso.

 

Os países mediterrânicos são os que mais têm sentido esse espectro de pobreza, são os que estão mais vulneráveis à crise. Porquê?

A hierarquia de capacidades, não apenas financeiras, mas científicas, técnicas, a eficácia de governo e de iniciativa económica – tudo isso faz que sejam ressuscitadas fracturas europeias. Não é de hoje a opinião que a senhora Merkel tem sobre o sul. Se bem me recordo, há um texto do Guizot [primeiro-ministro francês em 1847] que quase emprega as mesmas palavras para o dizer. O que considero errado é considerar que esta crise é uma crise puramente europeia. Se a comunidade europeia deixar aprofundar as quebras de solidariedade que já se verificam, a Europa arrisca-se a não ter voz no mundo. A crise é ocidental. É o ocidente todo que está num período de decadência.

 

Isso deve-se, sobretudo, à emergência da China, dos BRIC?

Há uns que perdem capacidades e outros que a adquirem. Não necessariamente com culpas. A Alemanha, que foi responsável pelas duas guerras mundiais que destruíram muitas das capacidades europeias, teve, entre outras coisas, a benesse de estar dispensada de despesas militares durante anos. E todos colaboraram, incluindo os povos do sul, na defesa do Muro para impedir que a República Federal fosse atingida pela [força política] a que o Leste estava submetido. Nos cemitérios da Normandia, as sepulturas são de soldados americanos. Não são de soldados alemães. Portanto, estas solidariedades, a Alemanha teve-as.

 

Como teve quando se tratou da reunificação das duas Alemanhas, após a queda do Muro.

Exactamente. Mas se a nossa crise é uma crise global, quem é que já convocou o Conselho Económico e Social das Nações Unidas? Ninguém.

 

Quem é que deveria tê-lo feito?

Qualquer membro interessado.

 

Na Europa existe uma subjugação à Alemanha? A orientação da chanceler Merkel é grandemente responsável pelo destino actual da Europa?

Ela – [Alemanha] –, a responsabilidade, é evidente que a tem. O que é discutível é que a percepção que tem da evolução da Europa coincida com o projecto dos fundadores. Atribuo aos fundadores da União Europeia uma espécie de [estatuto de] santidade. Esses homens enfrentaram a guerra, a destruição dos seus países, transformaram o sofrimento em sabedoria, e disseram: “Vamos criar condições para isto nunca mais acontecer”.

 

Schuman e Adenauer, sobretudo esses...

Tiveram esse espírito. Não podemos esquecer Jean Monet. Nas memórias, escreve que, se fosse hoje (quando estava a escrever), teria começado, não pelo comércio, mas pela cultura. Porque a crise de valores era extraordinária. Essa crise é que afecta as solidariedades, e faz que, mesmo num ponto de vista internacional, a governação ande entregue a órgãos que nenhum tratado criou – caso do G-20 – ou a órgãos que parecem transformar as Nações Unidas num templo de orações a um deus desconhecido.

 

A ONU está destituída de poderes e de importância?

Acho que a ONU está numa crise enorme. Precisa de uma remodelação. A começar pelo Conselho de Segurança, que já não corresponde, de maneira nenhuma, às condições em que vivemos. As potências, qualificadas de superpotências, com direito de veto, também têm a sua crise – incluindo os Estados Unidos. Mas para a Europa é importante saber porque é que a França e a Inglaterra têm direito de veto. Que poder é que [estes países] têm em relação ao mundo? Uma das reformas que seria útil fazer seria pôr no Conselho de Segurança países que, pela sua dimensão, são efectivamente necessários lá, e regionalismos. Era a Europa que devia estar no Conselho de Segurança, e não a França e a Inglaterra.

 

Há cerca de um mês assinalaram-se os 50 anos do Tratado Franco-Alemão. É extraordinário pensar como este “longínquo” projecto europeu se esgotou. Na sua génese, estava uma ideia de solidariedade e de desenvolvimento harmonioso que promovesse o equilíbrio entre as diferentes forças da Europa. Acha inevitável que se faça uma refundação de toda a Europa? Esse projecto assinado há 50 anos pode ainda ser afinado e recuperado?

Na base de qualquer projecto destes tem de estar um princípio. O princípio da unidade europeia é muito antigo. Continuo a ter admiração pelo conde Coudenhove-Kalergi, que parecia ter nascido para o internacionalismo. Todos os grandes líderes europeus depois da Guerra estiveram nos congressos que promoveu. (Ainda hoje existe uma fundação Coudenhove-Kalergi a que pertenço; já lá não vou). Esse homem falava na federação europeia. É claro que a palavra “federação” tem muitos sentidos, e isso não significava que ele tivesse o modelo final. Significava que tinha de se caminhar, como sempre entenderam os projectistas da paz (é preciso sempre falar do Kant). Tinha que haver uma gestão solidária, comum, da Europa, que está mais ligada por valores do que por etnias, pela língua, pela cultura. Que são variadas mas que têm um tronco comum. Não temos dúvidas quando dizemos que somos europeus.

 

Essa pertença é ainda herdeira dos valores da Revolução Francesa? É a famosa trilogia liberdade, igualdade, fraternidade que nos guia e que define o tronco comum?

Não é só isso. Esses valores são um produto da evolução do espírito europeu. “Todas as pessoas nascem com igual direito à felicidade”, mas os índios não, os escravos não, os trabalhadores não, as mulheres não... Foi preciso uma grande luta [para efectivar estas conquistas]. Mas sempre a partir do tal paradigma. Esse conjunto de valores é que dá identidade à Europa. A Europa que teve a ambição de europeizar o mundo... – daí o império euro-mundista que morreu o ano passado.

Essa circunstância tem uma consequência importante: a redefinição (a ideia de refundação é muito ambiciosa) desses valores. O principal deles é a soberania. E o direito a certas prestações que o Estado deve fornecer (“le droit aux prestations”, como dizem os franceses) – o Estado Social. Há uma coisa curiosa na vida [das nações] (na vida das pessoas também): mantêm a convicção do poder quando já não o têm.

 

Ou seja, funcionando Portugal num regime de protectorado, não temos o mesmo poder nem a mesma soberania.

Não, não temos. Nem temos o que está previsto no Tratado Europeu. Fomos vítimas do facto de sermos um estado exógeno. Também fomos vítimas de mau governo. [dito em tom irónico] Sem culpas, sem culpas... Mas queria dizer-lhe alguma coisa de esperança.

 

E voltamos à palavra antiga que usou: remédios. Há remédios?

 [riso] Acho que há. Em primeiro lugar, olhar para o país na situação actual e ver quais são os factores da redefinição da soberania de que precisamos. Não é só a segurança que diz respeito às forças armadas e à segurança interna. Há um elemento da soberania que é fundamental: o ensino e a investigação. Uma das razões da mudança de centros (entre os países emergentes e os que estão a descer) é que talvez tenha sido esquecido que não há fronteiras para a circulação do saber e do saber fazer. Hoje, a Alemanha parece que tem um bom mercado para os seus excelentes automóveis na China. Não me admira que daqui a algum tempo seja a Alemanha a comprar os automóveis à China. Um país que quer manter-se na competição global precisa de um ensino e de uma investigação que lhe permitam utilizar o saber e o saber fazer.

 

Em Portugal, era preciso que se continuasse a investir na investigação científica, na qual nos temos destacado nos últimos anos?

Sim. A minha vida tem sido quase toda na universidade. O que ouvi recentemente foi um conselho, [um apelo à] emigração. Há cursos de tal qualidade (sobretudo na área da Economia e da Gestão) que se orgulham que os seus diplomados, mestres e doutores emigrem e sejam muito bem recebidos lá fora. Eu não me sinto feliz que vão trabalhar por conta de outrem, para outro país. Queria era que tivéssemos condições para que aqui ficassem, e fizessem do país um país capaz de competir.

 

Esta vaga de emigração que agora temos...

É de alta qualidade.

 

Nada tem que ver com a vaga dos anos 50 e 60, essencialmente constituída por força braçal e iletrada.

É uma força altamente qualificada. Se os melhores vão embora... As contribuições de jovens cientistas, em especial da Universidade do Minho e da Universidade de Aveiro, sim, ajudam o país a recuperar uma posição no mundo concorrencial em que estamos.

 

E ajudam a recuperar confiança. Alento.

Sim. Por isso sempre sustentei que ensino e investigação é um problema de soberania. As propinas são taxas do Direito Financeiro. Não são o preço do serviço que o professor presta ao aluno. Diz respeito ao interesse do país que isso se faça.

Temos outras janelas de liberdade para o país. A meu ver, há duas principais. Uma é a CPLP.

 

A língua portuguesa como património, como motor, como tesouro?

Não é só a língua. É a maneira portuguesa de estar no mundo. É mais do que a língua. Da língua, o que digo é que a língua não é nossa – ela também é nossa. Mas os valores que a língua transporta, porque a língua não é neutra, esses valores não são iguais em todos os países onde se fala português. À maneira portuguesa de estar no mundo, o Brasil soma valores indígenas, africanos, alemães, japoneses, italianos...

A CPLP é um caso único. A França, que teve uma importância tão grande no norte de África, e naquele bocadinho do Canadá, não tem uma CPLP. A Espanha também não. E [a constituição da CPLP ainda é mais significativa] depois de uma guerra de tantos anos [com os países que a constituem]... O que significa que o conflito era com a forma de governo, não era com o povo português.

 

Angola, Brasil e Moçambique estão a crescer, mas todos têm grandes assimetrias entre ricos e pobres.

É. Acho que a CPLP precisa de grande atenção. A universidade deu por isso: há uma associação das universidades de língua portuguesa. A última vez que reuniu foi em Bragança, 400 pessoas.

Outro problema: o mar. A terra que não se pisa e a água que não se navega não são nossas. Lembro-me sempre da reunião de D. João I com os filhos.

 

Como foi essa reunião?

Tanto quanto a minha memória me diz, das leituras de há tantos anos, juntaram-se para discutir o que é que haviam de fazer para se expandir. Havia quem entendesse que a expansão devia ser para a Andaluzia. Os rapazes [os infantes] disseram: “Não. Tivemos uma guerra com Castela que durou anos, agora estamos em paz. Castela considera que a sua zona de expansão natural é a Andaluzia. Se formos para aí, vamos ter guerra outra vez”. Então para onde? “Para o mar.” Discutiram. Os recursos, o saber, as armas, os navios, tudo. Definiram um conceito estratégico nacional.

 

Portugal tem uma posição estratégica privilegiada, mas não tem...

Conceito estratégico nacional. Mesmo agora está a ser discutido um documento sobre defesa e segurança. Fui ouvido. A minha primeira pergunta foi: defesa e segurança de quê? Falta o conceito estratégico.

Ser uma plataforma continental é outra janela de liberdade. Se nos for reconhecida pelas Nações Unidas, será a maior plataforma continental do mundo. O reconhecimento estava previsto acontecer em 2013. Agora já se fala em 2015. Não gosto disto. Esta plataforma é uma riqueza incomensurável. Vi uma notícia sobre a intenção da União Europeia de redefinir o mar europeu. Lembrei-me de 1890. Nós também tínhamos a ideia de Angola à Contra-Costa e depois veio o Ultimato [Inglês]. Se definem o mar europeu antes de definir que a plataforma é nossa, provavelmente todos os países da União Europeia vão considerar-se co-proprietários. Devíamos apressar isto.

 

E meios, e força, e dinheiro para apressar isto?

O financiamento é um problema, naturalmente. Aí precisa de uma esplêndida diplomacia. A nossa é boa. É equivalente à do Vaticano!, com a diferença de a do Vaticano ser ajudada pelo Espírito Santo. [riso]

 

Está a pensar especificamente no actual ministro dos Negócios Estrangeiros?

Também no nosso ministro, mas a nossa diplomacia é muitíssimo boa. E muitas vezes trabalha sem instruções. É o amor à Pátria, é o que [é considerado] o interesse nacional, e lá vão. Acho que isto faz parte do futuro de Portugal.

 

Usou a expressão “janela de liberdade”, e não “janela de oportunidade”, que é uma expressão que agora se usa muito. Não é a mesma coisa.

Não, não é. As pessoas acham que, porque pertencemos à União Europeia, tudo tem de ser feito de acordo com a UE. Eu digo: “Não, não. Há um espaço de liberdade. A França: aquela germanderie que manda para África, para explicar o que é a democracia, não tem nada a ver com a UE. Tem a sua liberdade”. Temos de ter a nossa. Temos de cumprir com os tratados da União, mas a União não nos impede que tenhamos um espaço de liberdade. A CPLP é a nossa liberdade. Por isso prefiro a palavra “liberdade”. Essa liberdade já vem ligada a uma espécie de posse. A oportunidade é outra coisa. É preciso [para essa oportunidade] ainda um outro esforço.

 

Este Governo que temos vai para dois anos: está desapontado? Têm sido crítico nas intervenções públicas que tem feito. Esperava mais?

Devo dizer que desapontado estou com a Europa. Depois estou desapontado com a solidariedade atlântica. (Os efeitos colaterais do abandono dos Açores são enormes do ponto de vista económico para o arquipélago.) Neste Governo, há uma coisa que me incomoda: o objectivo fundamental é o Orçamento. Uso a expressão “ministro do Orçamento”.

 

Ministro ou primeiro-ministro?

Ministro do Orçamento, e não ministro das Finanças ou primeiro-ministro. O ministro mais importante é o do Orçamento.

 

Portugal não está refém do Orçamento, ou seja, do cumprimento do memorando da Troika?

O estar preso pelas obrigações financeiras internacionais é evidente que exige que essas obrigações sejam assumidas. É isso que restaura a confiança e que restaura a igualdade internacional do país (e que elimina o protectorado). Mas se fosse um caso isolado, a nossa debilidade seria maior. Não é o caso. O caso é que a fronteira da pobreza atingiu a Europa, como disse. A solidariedade do espaço, que é um princípio que está em vigor, implica que a situação real dos países tenha de ser avaliada. Não é com fórmulas aritméticas que se governam os países. E não é um favor que fazem. É uma dedução do princípio da solidariedade. Já viu algum médico tratar todos os doentes com o mesmo remédio? Nunca viu. O remédio não é igual para todas as situações. A situação de cada país precisa concretamente de ser avaliada. Portugal não está na mesma posição que está a Inglaterra ou a França.

 

Os países com que nos comparam não são esses. Portugal quis comparar-se com a Grécia, para dizer que não é a Grécia. Que é o bom aluno, cumpridor.

Mas estão todos em pé de igualdade com a Alemanha e a França no que respeita a direitos e obrigações dentro da UE. Se há o princípio de ajuda mútua na UE, tão obrigada [a isso] está a Alemanha como estamos nós. Quando chegam as dificuldades queremos ser tratados como os outros.

 

Voltemos à apreciação a este Governo. Falta-lhe conceito estratégico, dizia.

Falta conceito estratégico. E é evidente que a gestão neoliberal do Governo está a destruir o Estado Social. O Estado Social, uma conquista do ocidente, é uma convergência do socialismo democrático, da doutrina social da Igreja e até do manifesto comunista de Karl Marx. (As palavras têm uma força tremenda. Às vezes falo do poder da palavra contra a palavra do poder.) Na Constituição portuguesa o Estado Social é uma principiologia. Não é uma regra imediatamente imperativa. O que diz é: na medida da possibilidade. É estranho que se transforme uma principiologia numa rejeição. Não se devem rejeitar princípios, em especial princípios que levaram séculos a ser desenvolvidos e a ser incorporados na cultura da população. Nesse aspecto, tenho uma certa apreensão e falta de confiança no entendimento da real situação portuguesa. E não posso considerar que o Orçamento seja o elemento fundamental. Os que estão já numa situação de pobreza, juntos, têm força suficiente para dar um murro na mesa [e exigir] que os princípios da UE sejam respeitados.

 

Estamos na iminência de uma revolução em Portugal, justamente porque esses que apontou, juntos, já são capazes de dar um murro na mesa?     

Tenho admirado a maneira ordeira e não-partidária com que as reacções se têm verificado. Mas penso que a população portuguesa atingiu o limite da pressão fiscal. Quando vemos os suicídios, as mães que se atiram da janela com os filhos para não os deixar cá, quando as coisas chegam a estes extremos, lembro-me disto: a fome não é um dever constitucional. Sabido isto, a inquietação aumenta dia-a-dia. Não preciso de dizer mais palavras.

 

Isto que estamos a viver tem algum paralelo com alguma coisa que tenha vivido nos seus 90 anos?

Não. É a situação mais deprimente que vivi na minha longa vida. As condições de vida eram diferentes. É mais difícil [agora] perder [determinadas] condições de vida. As condições não eram as desejáveis, mas as pessoas não sofriam tanto. Porque havia a... “vida habitual”.

Embora a culpa morra solteira, a sociedade civil não é a que tem mais responsabilidades. Estamos esmagados. Pagamos as dívidas que o novo-riquismo do Estado desenvolveu (não tenho de fazer distinção entre partidos). Temos de pagar as dívidas das câmaras, dos institutos que o Estado multiplicou, e o que sobeja, e que não pode ser o último dos interesses, é a vida de cada ser humano. A dignidade tem de ser igual. A Europa sabe isto.

 

É por cegueira que os políticos não atentam nisso que diz?

Vou dar-lhe um texto do Padre António Vieira [que responde]: “Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra. Vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os sonhos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos povos, os clamoroso e gemidos de todos? Ou os vedes ou não os vedes. Se os vedes, como não os remediais? E se não os remediais, como os vedes? Estais cegos.” Que é que acha?

 

Que o Padre António Vieira escreveu em 1669 o que podia ser escrito hoje. Esta é a nossa sina?

Se isto nos acontecer mais vezes, pode ser que a gente, quando vier para a rua, traga o papel e mude.

 

Porque é que o seu discurso está muito mais esquerdista do que eu imaginaria?

Porque você tem uma imaginação pequena. Vamos lá ver. Nasci numa família muito pobre. Sei muito bem como é que vivem os pobres. Descrevi isso num livro de memórias que publiquei. Éramos felizes – engraçado. Havia uma solidariedade. O que fiz [politicamente] não obedece a esquerda ou a direita. Obedece à escala de valores que aprendi em criança. Uso muitas vezes a expressão: os valores são o eixo da roda. A roda corre todas as paisagens. O eixo acompanha a roda, mas não anda. Quando fui presidente do CDS, disse: “Este partido tem que assumir a obrigação em relação aos pobres”. Parece-lhe muito de direita?

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