Não faltam análises a denunciar a má qualidade da nossa comunicação social na actualidade. Na verdade, sobram razões para destratar os media nestes tempos em que o vale tudo serve para disputar o mercado.
Certo tipo de televisão está a tornar-se um autêntico agente de intoxicação mental. Os canais generalistas inundam-nos com programas recreativos decalcados do mesmo modelo rasca e repetitivo. Anos a fio o fazem. “Entertainers” de rasa cultura, mais palhaços de rua que profissionais de televisão, contudo destoando dos palhaços por não terem graça nenhuma, saturam-nos diariamente em longos horários matutinos e vespertinos com uma mistela de pseudo espectáculo de variedades, concursos e vulgaridades que muitas vezes roçam a ordinarice e a abjecção. Não adianta fazer zapping que o lixo é o mesmo. É evidente que há escapatória para quem dispõe dos canais da TV Cabo ou tem outras opções lúdicas e recreativas. Mas pobres dos velhos reformados e de magros recursos, faixa considerável da população que fica à mercê de tamanho atentado à inteligência e ao bom gosto!
O mesmo é falar do chamado horário nobre (entre o telejornal e a meia-noite). A chapa é rigorosamente igual entre os três canais generalistas. Não há alternativa. Telenovelas, concursos ou “reality shows”, ou então uma que outra série de ficção, não raro sobre temas em que predomina a violência e a sordidez do comportamento humano, pouco espaço sobrando para programas culturais, educativos e formativos, que deviam, esses sim, justificar a dita nobreza do horário.
Relativamente aos telejornais emitidos pelos canais em causa, o modo, o estilo e o timbre são rigorosamente iguais. Hoje em dia, quase que se tornaram dispensáveis os telejornais porque normalmente são caixa-de-ressonância das notícias que foram sendo repetidas ao longo do dia nos canais de especialidade informativa (RTP 3, SIC, TVI24 e CMTV). Por isso, a não ser que alguma figura pública seja eventualmente convidada para comentar os conteúdos noticiosos, assistir aos telejornais é um exercício de “déjà vu”. Mas inacreditável é quando a notícia já tratada em dias transactos é apresentada como se dada em primeira mão. Outro incómodo intolerável é o excesso de intervalos, sempre longos, para publicidade, muitas vezes decorridos apenas dois minutos depois de iniciado o serviço. Perante este cenário deprimente, actualmente não vejo os telejornais em directo. Só depois de transmitidos, com recurso ao processo de gravação automática. É a maneira de reduzir o tempo do telejornal a uns escassos 10 ou 15 minutos, alijado da ganga inútil, notícia enjoativamente repetida e publicidade.
Escusado é falar nos programas em que se discute futebol porque esses deviam suscitar uma insurreição nacional. O objectivo desses programas não é o futebol como desporto e espectáculo recreativo, é explorar o lado javardo e indigno da natureza humana. O futebol, de que sou adepto, não tem culpa dos que dele se aproveitam para fins pouco recomendáveis. Mas valha a verdade dizer que alguns debates televisivos entre políticos pouco diferem em elevação e correcção.
Seria ocioso, e talvez pouco avisado, ocupar o pouco espaço desta crónica com uma incursão na imprensa escrita. Mas a extrapolação que me proponho nesta crónica não dispensa falar do diário de maior tiragem na nossa imprensa escrita. Há nesse diário uma exploração “ad nauseam” da morbidez, do “voyeurismo”, da insinuação, do intriguismo, da denúncia, do instinto de abutre, do justicialismo primário, as mais das vezes com recurso a informações que fogem inexplicavelmente ao domínio de quem as devia guardar em segredo, o que é mais grave quando se trata de órgãos da Justiça. Esse jornal enche as suas páginas de criminalidade de toda a sorte, acidentes de viação, casos de pedofilia, violações sexuais, violência doméstica e outros derivados da degenerescência da natureza humana. O objectivo é mais explorar comercialmente o “voyeirismo” e o sensacionalismo do que informar por informar. Por exemplo, que interesse tem saber diariamente que a “Miss Bumbum” andou atrás do Cristiano Ronaldo ou que este tem um caso com esta e aquela? Citar Cristiano Ronaldo é como citar qualquer desses cidadãos ou cidadãs que enchem as páginas finais do jornal em apreço, regra geral pessoas de fraco ou nenhum calibre social e cultural, que estão longe de constituir exemplos de cidadania.
A técnica do jornal é habilmente congeminada: notícias curtas, doseadas e variadas dentro da temática preferida, no entanto entremeadas com curtos e bons artigos de colunistas de mérito reconhecido e que assim lhe emprestam, talvez acriticamente, uma suposta credibilidade. É um facto que o jornal tem sucesso. Todavia, tal só poderia ser objecto de gratificação e reconhecimento públicos se o seu conteúdo primasse por uma razoável qualidade e não tivesse como principal, se não único, móbil o objectivo puramente comercial, sem olhar a meios para atingir os fins. Mas o modelo do jornal é idêntico ao de outros que pontificam por esse mundo fora onde há liberdade de imprensa. Nada tem de original.
Não surpreende este comportamento generalizado dos media, entre nós como em quase toda a parte, porque sociologicamente há uma explicação. A comunicação social é o barómetro do nível social, cultural, político e económico de uma sociedade. Perante a realidade que se lhe depara, ela tem duas opções: ou rema contra a maré e tenta contribuir para melhorar o nível cívico e cultural do cidadão leitor ou espectador; ou fornece-lhe precisamente o que ele quer ou do que mais gosta. E dispensa grande trabalho de auscultação prospectiva. No nosso caso, basta olhar para algumas carências cívicas que ainda não conseguimos suprir de todo e em que pontifica um espírito insuficientemente crítico. Reflexo do nosso escasso investimento na educação durante séculos, a situação não é também alheia à influência que a perversa Inquisição exerceu na nossa alma.
De facto, alguns dos nossos comportamentos, como o intriguismo, a inveja e a denúncia são reminiscências doentias dos efeitos daquela maligna instituição criada pela Igreja Católica quando ela tropeçou no percurso da sua história. É muito disso que alimenta as estratégias para aumentar as boas tiragens ou as audiências, no pressuposto de que competir no mercado explorando o lado nobre do jornalismo não produz bons resultados comerciais.
Resta auspiciar tempos novos em que a comunicação social não precise de depender tão largamente da disputa do volume de vendas ou audiências, para assim poder libertar-se e prestar ao público um serviço de real qualidade e utilidade social. O mundo digital está em franca e acelerada expansão e é possível que venha a assistir-se num futuro próximo a uma mudança radical das regras que norteiam a vida humana. Só assim haverá verdade absoluta nas palavras de Hegel quando disse que a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno. Ora, nos tempos actuais essa oração só pode invocar a presença fatídica de demónios, em vez de ungir os espíritos.
Bem, todo este fenómeno de libertinagem é indiscutivelmente fruto da liberdade e da concorrência que são filhas dilectas do Estado de Direito democrático. Mas o argumento de que as rosas têm espinhos não nos pode servir de lenitivo. Porque é pena que a democracia aceite no seu seio anticorpos que atentam contra o seu aperfeiçoamento como sistema político.
Encontro na imprensa regional um espaço ainda imune à contaminação que assola o sector, não obstante também ela passar por dificuldades de sustentabilidade económica.
Perguntado, em recente entrevista ao jornal Expresso da Ilhas de 02 de Novembro de 2016, se “julgava que há pessoas que são contra a oficialização (do crioulo) só para não lhe darem o prazer de ver o seu reconhecimento”, o Professor Manuel Veiga (MV)1, antigo ministro da cultura, respondeu taxativamente que “o prazer não será para ele, mas sim para o povo de Cabo Verde”, visto que ele, Manuel Veiga, “fala o português, o crioulo e outras línguas.”
Ora, esta afirmação do MV tem que se lhe diga e não pode passar em branco. Costuma-se dizer que o peixe morre pela boca. É que das suas palavras tem de deduzir-se que a oficialização do crioulo será mais para consagrar a situação de baixa escolaridade de largo segmento do povo cabo-verdiano do que para a elevação do dialecto a língua capaz de todos os desempenhos sociais, formais e literários. Sim, implícito na afirmação de MV está o reconhecimento de que o seu estatuto social e cultural dispensa o uso do crioulo, já que para a sua projecção como intelectual e homem de letras tem outras línguas ao seu dispor, em particular o português. E não é por acaso que o diz. Ele sabe que se escrever obras literárias em crioulo, será para ganharem poeira nas prateleiras das lojas… cabo-verdianas, bem entendido. Magríssima procura devem ter e o autor não realiza os seus objectivos de notoriedade pública, além de ter de arrostar com prejuízos financeiros.
Contudo, outro entendimento do MV poderia supor numa aposta firme na língua portuguesa, conferindo-lhe prioridade, espaço e meios acrescidos, em benefício dos currículos escolares e também do ensino de adultos. Mas essa opção só ocorreria ao ex-ministro da cultura se ele tivesse uma visão mais alargada, evoluída e prospectiva do papel da língua na vida dos povos, em vez de circunscrita a este fraseado, qual epigrama, gravado no seu pensamento: “o crioulo faz parte da dignidade política, social e cultural conquistada com a independência em 1975” (entrevista ao Expresso das Ilhas em 2010). Caberá então ao leitor julgar se a “dignidade política, social e cultural” do povo cabo-verdiano sairia ferida com essa segunda opção, ou se, pelo contrário, ganharia mais sólida armadura para o futuro.
Com efeito, o MV bem a podia ter considerado, concedendo-lhe ao menos o benefício da dúvida, porque outra dignificação “política, social e cultural” teriam hoje as camadas desfavorecidas da população, acaso tivessem fruído das oportunidades que ele e outros tiveram na vida, a ponto de poderem hoje optar por esta ou aqueloutra língua no seu discurso. Porque está por demonstrar qualquer nexo de causalidade entre a promoção do crioulo e a afirmação da dignidade do povo cabo-verdiano, ao passo que cientificamente parece mais plausível que o reforço do ensino do português alargue os seus horizontes no plano “político, social e cultural”.
É que o crioulo é uma realidade adquirida e consumada, e vivenciada espontaneamente entre nós, pelo que a sua oficialização, uniformização e domesticação gramatical (alupequização)2 podem não acrescentar coisa alguma às competências pessoais e profissionais dos cabo-verdianos. Com o crioulo, as populações das nossas ilhas resolvem os seus problemas de comunicação mais triviais e instantes dentro do seu espaço social, mas já não será assim em circunstâncias laborais mais exigentes, e mesmo dentro do nosso território, como é o caso de empresas estrangeiras instaladas no país, em que no mínimo será útil e recomendável a comunicação em português.
Escusado é referir que fora das nossas fronteiras é que o crioulo, oficializado ou não, “alupecado” ou não, de nada valerá à nossa gente, se tiver de conviver no espaço lusófono, em situação informal, escolar ou laboral, com falantes da língua portuguesa, sejam eles angolanos, brasileiros, moçambicanos ou outros. Afinal, somos apenas uma presença insignificante de 500 mil entre 250 milhões de criaturas cuja ferramenta linguística comum é, fundamentalmente, o português. Por isso, é no mínimo surreal que nos deslumbremos tanto com o crioulo a ponto de o eleger como bandeira política. Assim como abjurar, por nosso arbítrio, a capacidade para comunicar escorreita e fluentemente, e em igualdade de condições, com os parceiros de um espaço comunitário – CPLP – que tem objectivos de concertação político-diplomática e de cooperação nos mais diversos domínios. Ripostar que a promoção do crioulo não interfere com a língua portuguesa, como pretenderão os autores desta cruzada, é tão insensato que não merece sequer resposta.
À afirmação do MV sobre a dignificação que o crioulo nos confere como povo, não encontro nada melhor para contrapor que esta reacção de uma mulher do povo quando lhe disseram que o filho ia aprender o crioulo na escola: “Adé, bsot insnal ê português porque crioulo ele nascê quel prindid”4. Este episódio foi contado por Viriato Barros. Pois então, será de concluir que uma mulher do povo, que labuta arduamente para ganhar o pão do dia, sabe mais da vida que um intelectual? Terá ela uma aptidão natural, vinda do instinto, para descortinar entre as sombras do futuro aquilo que um homem culto não lobriga? Provavelmente é o caso, se considerarmos que a lucidez humana muitas vezes se ilumina mais facilmente frente à agrura da vida real do que em monólogos intelectuais. No mais, o entendimento do MV sobre a dignidade do seu povo não passa de um chavão, mero palavreado para bordar uma presunção (política), e por isso perfeitamente descartável. É como se os factótuns desta cruzada do crioulo se julgassem ungidos por um desígnio escatológico, dispostos a toda a via-sacra, mesmo à revelia da opinião pública.
O MV, eu e muitos cabo-verdianos tivemos a feliz oportunidade de frequentar o liceu e outros níveis de ensino, o que não aconteceu com largas camadas da população cabo-verdiana. Assim, nós, os “privilegiados”, temos um painel de opções linguísticas que não está ao alcance do comum dos nossos conterrâneos. Livremente, falamos o nosso crioulo nos momentos e circunstâncias informais que entendemos, inscritos no universo da nossa memória afectiva. Contudo, não nos sentimos mais cabo-verdianos por isso, nem sentimos que algo acresça à parcela individual da nossa “dignidade política, social e cultural”. Por outro lado, não nos sentimos menos cabo-verdianos ao termos de falar o português. Simplesmente, o uso desta língua, que é tanto nossa de direito próprio como o é para 250 milhões de pessoas que connosco partilham séculos de história comum, alarga-nos as perspectivas do futuro, abre-nos um espaço de convívio multinacional, potenciando as condições para um maior acesso ao trabalho, à cultura e à promoção social.
O que o MV devia cuidar de saber é se os seus conterrâneos menos favorecidos desdenhariam a possibilidade de usar desenvoltamente o português, na sua terra e fora dela. Basta pensar que uma das mais gratas realizações da independência foi o aumento considerável da população escolarizada e instruída, havendo hoje numerosos licenciados, mestres e doutores na pirâmide da hierarquia social porque tiveram, efectivamente, uma oportunidade que antes era escassa. Não fora isso, talvez muitos deles estivessem a engrossar o sector dos que não dominam a língua portuguesa. Portanto, a continuidade da aposta na escolarização e no ensino poderá ser a via acertada para melhorar o desempenho dos cabo-verdianos na língua portuguesa e, implicitamente, resolver ou minimizar o problema da diglossia.
Pelo contrário, criar condições para o crioulo competir com o português, como propugna o autor do ALUPEC, vai agravar o problema linguístico cabo-verdiano, com o risco de liquidar definitivamente as competências na língua de Camões. E isso entra em contraciclo com as tendências de aglutinação e padronização de valores materiais e culturais perceptíveis neste mundo em acelerada transformação, tanto que um grupo de linguistas e peritos da UNESCO concluiu em 2003 que, em cada ano, entre 20 e 30 línguas minoritárias desapareciam no mundo. No fundo, é iniludível que o problema linguístico entre nós foi suscitado mais por um preconceito político contra a “língua do colonizador”, na expressão dos fundamentalistas de alguma cultura, do que por um “estado de necessidade”. Em minha opinião, o progresso contínuo da escolarização e um redobrado apoio ao ensino do português, tendem a resolver a nossa questão linguística, cada um dos idiomas ocupando o espaço da sua verdadeira vocação.
Bom seria que os factótuns da causa do ALUPEC e tudo o que lhe está subjacente reflectissem seriamente sobre esta problemática e não pressionassem os governos com o capricho do seu egocentrismo. Os desafios do futuro não se compadecem com a carnavalização de assunto tão delicado e importante para o futuro do país.
Tomar, Dezembro de 2016
Adriano Miranda Lima
Linguista cabo-verdiano, Professor numa universidade do país, defensor desde a primeira hora da oficialização do crioulo falado no território, tendo, para o efeito, criado um alfabeto a que deu o nome de ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Crioulo).
Com escrita baseada no alfabeto ALUPEC.
Idem
Ora, ensinem-lhe mas é o português porque o crioulo ele nasceu com ele aprendido.
No passado domingo à tarde, assisti num canal televisivo a uma entrevista do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Questionado, afirmou que o mundo em que vivemos é hoje bem melhor do que o foi no passado, apesar das nossas queixas e lamentações. Pode ser verdade, mas o padrão de avaliação envolve parâmetros de vária natureza e depende do quadrante geográfico de quem o faça. A opinião de um europeu ou americano não será seguramente a mesma de um africano ou asiático.
Ponto assente, isso obriga-nos a revisitar Alvin Toffler, escritor e jornalista americano (Outubro de 1928 - Junho de 2016), autor do best seller “A Terceira Vaga”, quando afirma que a História da humanidade é feita de sucessivas vagas de mudança operadas pelo processo civilizacional. A primeira vaga foi a Revolução Agrícola, a segunda a Revolução Industrial e a terceira a presente era da informação, da cibernética e da robótica, de que somos hoje beneficiários. Em Abril deste ano, Toffler proferiria uma conferência na Reitoria da Universidade de Lisboa, onde desenvolveu a sua teoria sobre aquilo que designou por Quarta Vaga – Bioeconomia, defendendo que a economia não pode mais desligar-se de práticas que ignorem a sua sustentabilidade numa equilibrada relação com o meio ambiente. Terá sido das últimas intervenções públicas do escritor, que faleceria dois meses depois, em 27 de Junho, aos 87 anos.
O bem-estar que o homem almeja depende, inapelavelmente, da forma como vive e explora os recursos do planeta, como se organiza e como resolve os seus conflitos. As mudanças civilizacionais foram moldando a percepção do homem sobre os modelos de organização política e social e as formas de exercício do poder político. Na Primeira Vaga, o poder era personificado e exercido autocraticamente ou quanto muito assistido por um conselho. A noção de território e o sentimento de consciência nacional progressivamente foram tomando forma e consolidando-se. Na Segunda Vaga, com a Revolução Industrial e o Iluminismo, surge o Estado-Nação e desde logo o poder ganha formas de maior sofisticação, mediante estruturas jurídicas que orientam e regulam o exercício da soberania e a defesa dos interesses nacionais em confronto com outros povos.
Hoje, as mudanças determinadas pela Terceira Vaga e a iminência da Quarta Vaga vieram pôr em cheque o modelo das instituições que nos governam desde há séculos tornando-as obsoletas e questionando a sua validade operativa. Embora permaneça o mito das soberanias nacionais, é cada vez mais difícil para um governo tomar decisões com a independência de outrora, sem ter de levar em conta factores exteriores que ganham relevo crescente com o processo de globalização proporcionado pela Terceira Vaga. Talvez seja a razão por que hoje há dificuldade em descortinar líderes de perfis que desejaríamos idênticos aos de um Churchill, de um De Gaulle, de um Roosevelt ou de um Adenauer. Mas estes líderes, transpostos para a nossa época, provavelmente iriam evidenciar as mesmas debilidades e insuficiências que a opinião pública aponta a par e passo aos governantes de hoje. Com efeito, a complexidade dos problemas sociais da actualidade não tem paralelo com o passado. O líder dos estados de direito democráticos não consegue exercer a sua autoridade pessoal sem ser contido pelas constituições ou expedientes jurídicos como as providências cautelares ou pressionado pela opinião pública através dos mais variados meios de comunicação.
O que é verdade na esfera interna dos estados é particularmente reflexivo nas relações entre os estados e no plano em que se concertam com maior ou menor eficácia as políticas e as estratégias nacionais ou comunitárias. Dentro da União Europeia é cada vez mais nítida a percepção de que as soberanias nacionais se esbatem face às instituições comunitárias e aos desafios da globalização, e isso levanta interrogações, sobretudo nos sectores políticos mais à esquerda. O controlo dos orçamentos e a formatação das principais políticas nacionais obedecem às directrizes e imposições comunitárias. Mas o pensamento futurista de Alvin Toffler leva-nos ainda mais longe fazendo-nos ver que sem uma política mundial devidamente concertada o planeta compromete os seus equilíbrios e pode soçobrar.
https://www.youtube.com/watch?v=E2sDnfoC3Hk
(falhada a ligação directa, copie-se a URL acima para o browser e veja-se o vídeo de apresentação de "A Quarta Revolução")
Então, os desafios são inumeráveis sem que as respostas se perfilem por enquanto com a urgência e a clareza desejadas. No seu livro “A Quarta Revolução − A Corrida Global para Reinventar o Estado”, Adrian Wooldridge e John Micklethwait denunciam a crise da governação do mundo actual e a ineficácia do Estado no Mundo Ocidente, afirmando que é necessário revolucionar o sistema político e apontando caminhos para melhorar o futuro da sociedade humana. É verdade que a globalização trouxe benefícios óbvios ao mundo não obstante reger-se por um viés neoliberal, com os defeitos vários que lhe têm sido apontados, dos quais o mais preocupante é o impacto ecológico negativo em consequência do consumismo desenfreado e da devastação dos recursos naturais. Mas o processo da globalização é imparável e as sociedades humanas têm de se ajustar aos seus impulsos.
Assim, se os problemas planetários atingem uma dimensão de tal ordem preocupante que não se compadecem mais com a inoperância de Estados soberanos fechados em si, incapazes de gerar os melhores consensos no plano internacional, não haverá outra solução senão repensar o seu modelo. Ora, se a economia depende cada vez mais da dinâmica global, é natural que as soberanias tenham de encontrar pontos de convergência em espaços supranacionais onde as decisões políticas se sirvam dos mesmos instrumentos que lograram a agilização e a expansão da economia. A democracia não deixará de ser válida, importante e insubstituível como sistema de governo, mas ela terá de ser transposta eficazmente para as relações internacionais, de par com a diplomacia, aperfeiçoando os seus mecanismos de representatividade, auscultação e sondagem de opiniões, em ordem à melhor concertação de vontades para a melhor solução dos problemas globais.
Neste processo, a Europa e os Estados Unidos não podem continuar a dar sinais de perderem o pé ante o ressurgimento da Rússia e a emergência das potências asiáticas. Caso contrário, deixará de fazer sentido a opinião de Mario Vargas Llosa quando, ao afirmar que o mundo está melhor, tomava como padrão de referência o Mundo Ocidental.
Começou por ser um lago de águas limpas e cristalinas onde Jean Monnet e os seus companheiros Adenauer, Schuman, Churchill e outros gostavam de ver os seus rostos reflectidos. Porém, mais tarde, aquelas águas se foram tornando fétidas, graças ao efeito pernicioso e superveniente de novos e variados afluentes, e, sobretudo, de uma poluição ambiental colectiva antes não imaginável. E é nesta espécie de pântano que acontece o BREXIT, ou seja, uma valente pedrada no charco. Que ninguém esperava e que alguns entendem que pode ser seguida de outras, como admite Wolfgang Münchau em artigo recente publicado no Financial Times.
Metáforas à parte, passemos a tratar os bois pelos nomes.
Várias causas podem ser apontadas para explicar o falhanço do projecto europeu, cujos sinais são cada vez menos disfarçáveis. O pano de fundo começou a ser tecido com o fim da Guerra Fria e o advento do Neoliberalismo, quando a lógica do mercado financeiro começou substituir sem rebuço os ideais de partilha, de solidariedade e de subsidiariedade. Mas o que é intrigante é a União Europeia se ter constituído em perfeita testa de ferro dos novos valores, completamente ao arrepio daquilo que foi o sonho de Jean Monnet. E o curioso é que ele deve ter pressentido este cenário à grande distância quando, em 1972, numa conferência realizada em Lausanne a que deu o título de “L’Europe Unie, de L’Utopie à la Realité”, afirmou que teria sido porventura mais avisado começar pela cultura e não pela economia. Este facto é-nos lembrado pelo Professor Adriano Moreira em artigo publicado no Diário de Notícias no passado dia 22 do corrente mês.
O que é particularmente incómodo e desanimador é constatar que os actuais sucessores dos pais do sonho europeu não têm qualquer identidade genética com quem os precedeu no passado. Olha-se para o senhor Dijsselbloem (presidente do Eurogrupo), para o senhor Juncker (presidente da Comissão Europeia), para o senhor Schäuble (ministro das finanças da Alemanha), ou para o senhor Barroso (ex-presidente da Comissão Europeia), entre outros mais títeres do sistema hoje dominante, e o que é que se vê? Gente de duvidosa estirpe política, gente de visão anquilosada, gente ignorante ou insensível à História da Europa; ou se não a ignoram fazem dela autêntica tábua rasa. Com líderes deste calibre, o sonho europeu não podia almejar grandes horizontes, e provavelmente foi esta realidade redutora que Jean Monnet previu em 1972.
Não vão faltar análises e previsões acerca do BREXIT. Há quem seja de opinião de que os efeitos da decisão dos ingleses serão mais devastadores para a zona euro do que para a sua própria economia interna. Além das suas previsíveis repercussões na coesão política do Reino Unido, e ainda com o ónus de poderem contaminar países onde os nacionalismos estão latentes, como os casos da Espanha e da Bélgica.
Se não houver forma de regular os referendos sobre a União Europeia, estabelecendo a expressão eleitoral mínima para caucionar qualquer futuro Exit, a União irá ruir como um baralho de cartas. É inacreditável que esta situação não tenha sido anteriormente prevista nos tratados, mediante, por exemplo, a imposição de um mínimo de 70% de votos para caucionar a saída e um limite aceitável para a abstenção eleitoral, uma vez que se trata de situação deveras delicada para a estabilidade da União. Basta lembrar, como veio a público, que grande parte do eleitorado britânico se queixou de insuficiente informação sobre o que estava em causa e também de grosseira e despudorada manipulação eleitoral por parte de algumas forças partidárias concorrentes, designadamente dentro do Partido Conservador.
No entanto, e apesar da apreensão que nos traz este BREXIT, há quem até pense que a pedrada no charco vai obrigar a União Europeia a reflectir sobre o seu estado e provavelmente a inflectir o rumo que vem seguindo. Isto é, a refundar-se. Mas independentemente deste Exit ou de outros que possam vir a perfilar-se no horizonte próximo, a União Europeia, à vista dos primeiros sinais, desde há muito que devia ter empreendido uma verdadeira autognose para tirar as devidas ilações sobre as causas do pântano contaminado em que se converteu. É quase unânime apontar como a causa mais flagrante do desvio do caminho o que ficou resolvido no Tratado de Lisboa, a partir do qual passámos a ter a Europa dos directórios, ou das chancelarias, em vez da Europa dos cidadãos. Com as vontades soberanas a ficarem na dependência de poderes que não passaram por escrutínio eleitoral, e, por isso, com duvidosa legitimidade democrática.
Não quero ser alarmista, mas não posso deixar de ser realista e confessar a minha pouca fé no futuro desta União Europeia.
No dia 12 do passado mês de Maio, assisti no Convento de Cristo, de Tomar, a uma conferência proferida pelo coronel Nuno Lemos Pires sobre geopolítica − “Ameaças e riscos tangíveis e intangíveis, do global ao nacional”. O conferencista, fazendo uso de uma linguagem clara e elucidativa, e servindo-se de ilustrações convincentes, descreveu e analisou o cenário das múltiplas ameaças que impendem actualmente sobre o homem e o planeta: a degradação ambiental; a exploração económica irracional dos bens naturais; o esgotamento das reservas de água doce; a explosão demográfica nas regiões mais carenciadas; o terrorismo internacional e os conflitos regionais incontroláveis; o êxodo das populações em direcção às regiões mais ricas, etc.
Confirmou-se-me a impressão pessimista de que o geossistema (conjunto formado pelo sistema ecológico e o sistema social) é neste momento um compósito perigoso e pouco recomendável para o futuro da humanidade.
Recentemente, li um artigo de José António Saraiva intitulado “INTERCÂMBIO TÊXTIL”, publicado no jornal Sol. Nele afirma que “há diversas provas de que a nossa civilização está a chegar ao fim. Uma delas consiste na perda de referências que durante séculos permitiram organizar o pensamento”. E fundamenta o seu diagnóstico apontando a arte e as suas tendências actuais, desde a pintura e a música ao cinema e à literatura, como a maior evidência desse fenómeno. Mas não chega a insinuar se essa perda de referências exprime ou não em si mesma uma intenção de arte.
Depois adianta que “não só nas artes se perderam as referências”. E então cita comportamentos sociais aberrantes que denotam falta de nexo: cabelos cuidadosamente despenteados; fralda da camisa por fora das calças; sapatos a que se retiram os atacadores. Tudo sinais a aparentar desprezo pelas convenções, “mas que no fundo representam exactamente o contrário: um seguidismo cego em relação à moda”. E remata assim: “As calças compradas na loja já rotas constituem o exemplo máximo de uma civilização que chegou ao fim da linha e já não consegue inventar mais nada. Então põe-se a rasgar deliberadamente a roupa nova. É o nonsense no seu máximo esplendor!”.
Mas esse olhar de José António Saraiva abarca apenas a espuma da realidade, e é por isso que lhe basta a arte para fundamentar os seus juízos. De outro modo, teria de descer ao terreno da antropologia e da ciência política. Sim, a arte permite toda a metáfora possível, porque os nossos preconceitos culturais são incapazes de lhe impor limites, quer ao seu abstraccionismo quer à sua ânsia de transgressão. O fenómeno das “calças rotas” e outros comportamentos similares são indícios do esgotamento dos nossos padrões de satisfação, de ruptura com as convenções, e de algum modo enquadram-se numa prosaica intenção de arte ou filosofia de vida, talvez reivindicando um qualquer “neo-existencialismo”. É como se a História e a Cultura nos tenham colocado num beco sem saída.
No entanto, só o homem ocidental se pode dar ao luxo de querer subverter as referências do real, trocando as voltas ao mapeamento da sua caminhada. Resolvidos quase todos os seus problemas, incapaz já de se surpreender com o que a sociedade de consumo lhe oferece, sobra-lhe disponibilidade mental para a alienação e até para a mistificação de si próprio. Isto porque subjaz ao mundo das futilidades a espessura de uma realidade outra, bem crua e tenebrosa, onde é inútil usar subterfúgios para iludir o que quer que seja. É, com efeito, a realidade dos lugares do mundo onde o viver custa e dói imenso, onde escasseia a comida, a água e os medicamentos, onde, enfim, a vida se prende por um fio. Aí não sobra tempo para interpelar o sentido da existência, a razão de se estar vivo ou morto, quanto mais para subir a proscénios do ilusório.
Nada mais ilustrativo que esta tirada final do discurso do José António Saraiva: “Entretanto, para dar algum sentido útil a uma moda sem sentido nenhum, arrisco-me a fazer uma sugestão. Sugiro às empresas de confecção têxtil que façam convénios com ONGs actuando em países do terceiro mundo para enviarem para lá jeans novos – recebendo em troca jeans velhos e usados. Que têm mais valor do que os que se vendem nas lojas, porque foram envelhecidos pelo uso e não de modo artificial. E que podem inclusive ter andado na guerra, exibindo rasgões feitos em combate ou mesmo buracos de balas.”
Eis, pois, a verdade dura e crua sobre a realidade de um mundo assimétrico, esquisito e cada vez mais instável e perigoso. No conforto das nossas latitudes “primeiro-mundistas” podemos ter dificuldade em lobrigar que tudo se agravou nas últimas décadas e que a ameaça generalizada não é uma ficção: em breve faltará água no planeta para matar a sede da totalidade dos seus habitantes; a produção alimentar não acompanhará o desmesurado crescimento populacional, enquanto os ecossistemas vão destruir-se sem remissão; hordas de milhares e milhares de seres humanos demandarão os territórios onde supõem encontrar a segurança e a sobrevivência, como aliás já está a acontecer; de permeio, os conflitos regionais e de expansão imprevisível poderão ser a pólvora para acelerar a derrocada.
Todo este cenário resulta da acumulação de sucessivas transgressões que o homem vem cometendo no ecossistema planetário, para satisfazer os seus modelos económicos e sociais. Existem neste momento mais de 7 bilhões de seres humanos no mundo, em que 25% estão abaixo da linha da pobreza e 75% consomem mais recursos do que permite a capacidade de recuperação do planeta. É inimaginável a dimensão que pode vir a atingir a disputa dos espaços vitais. Há quem preveja que o cenário para as próximas décadas é de caos ambiental e humano. Já em 1972, a equipa londrina de The Ecologist publicava um documento cuja conclusão não deixava de ser inquietante: “É lógico recear que, num futuro próximo, ultrapassaremos o limite, na brutalidade dos nossos empreendimentos sobre o meio, e que, por uma série de efeitos acumulados, provoquemos a derrocada da nossa civilização”.
Ora, quarenta e quatro anos decorridos, quem pode desmentir a severidade angustiante daquela previsão? O homem aperfeiçoou as ferramentas da ciência e da técnica e no entanto paradoxalmente parece mais longe de si próprio, como o demonstram as aberrações do seu comportamento cultural, de que o fenómeno das “calças rotas” é apenas um exemplo menor. Invocando Jeremy Rifkin, cabe perguntar se não estamos já às portas da entropia, ou seja, da desordem irreversível.
O blogue ARROZCATUM (arrozcatum.blogspot.pt), de Zito Azevedo, postou uma imagem elucidativa dos atentados terroristas cometidos na Bélgica ontem, 22 de Março, contendo a seguinte legenda:
NÃO TERÁ CHEGADO O MOMENTO DE COLOCARMOS AS NOSSAS BARBAS DE MOLHO?!
COMEÇO A DUVIDAR, SERIAMENTE, SE VALERÁ A PENA CONTINUAR A HIPOTECAR INDEFINIDAMENTE A SEGURANÇA E O DIREITO À VIDA E À LIBERDADE UNIVERSAL!
As palavras do editor do blogue são breves mas são avisadas, contendo a síntese de uma questão verdadeiramente dilemática. Merecem a mais séria e urgente ponderação ao mundo civilizado. É que a liberdade universal não passa de uma abstracção e não pode sobrepor-se ao direito à vida. Ela é, efectivamente, uma abstracção humana, e por isso um valor sempre aferido pelo relativismo, ao passo que a vida é de uma transcendência e concretude tais que não pode ser posta em causa por qualquer outro princípio regulador da nossa convivência comum. Aliás, toda a criatividade humana deve ter como finalidade última o respeito pela vida, a sua dignificação e a sua preservação. Tudo lhe deve ser subordinado.
Estamos assim perante um dilema. O inimigo utiliza o espaço das nossas liberdades, direitos e garantias para nos aniquilar. Restringir a fruição desse espaço resulta sem dúvida em prejuízo da comunidade geral, mas facilita seguramente o combate ao inimigo, o controlo dos seus passos, a sua detecção, o seu cerco e a sua captura. Só que os ideólogos de um mundo livre entendem que alterar os nossos hábitos é dar um trunfo ao inimigo. Interessará é saber até quanto é permissível ficar incautamente a mercê das fauces da morte inesperada e traiçoeira.
O ideal seria que a liberdade universal cuidasse, antes de mais, de situar a vida humana ao mais alto patamar dos princípios invioláveis, e que esse entendimento fosse partilhado por todas as culturas e credos. Quando as filosofias iluministas foram concebidas há 3 séculos, a esperança era que irradiassem clarividência para toda a humanidade, mais cedo ou mais tarde. Mas o que se tem visto neste século XXI de acelerado progresso material frustra em absoluto qualquer expectativa. É que as luzes da civilização estão a ser desviadas do seu curso por incompreensíveis fenómenos de obliteração, e, por estranho paradoxo, com uma frequência e intensidade mais acentuadas desde que entrámos na era da globalização. A impressão é que não chegou ainda o momento certo para a universalização das regras de vida civilizada. A globalização falhou nos seus propósitos de galgar etapas de progresso, com resultados que até nos colocam perante quadros de autêntico retrocesso civilizacional. Pois outra conclusão não permitem as cenas de selvajaria demencial a que assistimos. Donde é lícito inferir que a globalização parece estar a ser o melhor catalisador da entropia em que o mundo mergulhou desde o início deste século.
Insistir em que coabitem connosco os que se instalam convictamente em quadrantes mentais adversos, não passa de uma inutilidade perversa, de um estoicismo sem sentido e que pode até fazer ruir o castelo das nossas próprias crenças e princípios civilizacionais. Se nada se fizer de forma firme e concludente, enquanto for ainda possível, não tardarão a eclodir no mundo energias de sinal contrário tão primárias como aquelas que actualmente ameaçam o mundo civilizado e cristão. E aí o planeta voltará a mergulhar num conflito provavelmente sem precedentes e com consequências imprevisíveis. Para isso, basta conferir mandato a mentes retrógradas do nosso espaço civilizacional como um Donald Trump e outros que provavelmente andam à espreita da sua oportunidade.
Dizia o editor do blogue: “Primeiro, Madrid... depois, Paris... hoje, Bruxelas…” Mas pergunto por que só esses países. E o resto, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, a Líbia, onde a barbárie não tem hora marcada, onde se instalou com armas e bagagens? Se não conseguimos espalhar globalmente o bem-estar e a felicidade, ao menos que apreendamos globalmente as dores e as tristezas do mundo. Sem fronteiras e sem delimitações. É que quando a tragédia bate à porta do mundo ocidental, sentimo-la com um impacto mais doloroso e mais angustiante. Iluminamos com as respectivas cores os símbolos emblemáticos dos países atingidos, o clamor da emoção é partilhado irmãmente pelos que são do mesmo credo e cultura. Nada a obstar. Mas porque não generalizar a mesma simbologia expressiva da consternação quando, todos os dias, a barbárie bate à porta dos que se situam em outras coordenadas geográficas e são ainda mais vítimas do que nós? Bem, reconheça-se que seria um procedimento tão repetitivo que acabaria por banalizar o acto simbólico, esvaziando-lhe o significado. Por isso é que chegou o momento de agir para evitar que o avolumar das nossas perplexidades filosóficas nos trave o discernimento e a noção da verdadeira extensão da tragédia.
Alguém afirmou que a ameaça terrorista é uma autêntica guerra mundial. Outros admitem que apenas estamos no início do terror. Assim sendo, com justa razão se pergunta por que não se lhe declara guerra total, com todas as consequências que isso implica. Continuar a responder com proclamação de princípios é proceder como a avestruz. É portar-se com a mesma passividade com que se assistiu à ascensão da Alemanha nazi. É uma retórica que fica bem na fotografia mas que não nos protege do mal, como se tem visto.
Posto isto, só restam duas hipóteses. Ou o mundo ocidental continua na sua atitude timorata e comedida até que, por via eleitoral, surjam líderes totalitários que entrem pela via da irracionalidade, ou então se tem de enveredar por uma estratégia de intervenção ainda possível dentro de limites controláveis, como sejam:
─ Investir nos meios e nos efectivos de forças de segurança e militares adequados à contenção e/ou destruição da ameaça. Isto porque é sabido que a Europa descurou o investimento na sua defesa e se desarmou psicologicamente;
─ Suspender sine die o Acordo de Schengen;
─ Reforçar o controlo da circulação dentro dos parâmetros exigidos pela luta contra o terrorismo global;
─ Convocar os líderes das comunidades islâmicas dos países de acolhimento para a assunção plena das suas responsabilidades;
─ Encarar como inevitável a urgente intervenção de uma força militar mundial com mandato das Nações Unidas, orientada para a Síria, o Iraque e o Afeganistão, empenhando especialmente o mundo árabe, e não dar tréguas até à aniquilação total das forças do terror, onde quer que estejam instaladas ou dissimuladas;
─ Aceitar como incontornável o redesenhar da geografia política do Médio Oriente, já que aí reside a causa remota do problema, o que exige uma acção diplomática de elevada complexidade e mestria.
Se alguém rotular de profeta da desgraça quem elenca estas medidas, é porque ainda não acordou para a realidade. Outros, que preferem o idealismo hipócrita e vazio, dirão que a montante de tudo isto está a má conduta política da Europa e dos Estados Unidos, para quem a geopolítica foi e tem sido um fato talhado à medida dos seus interesses. É verdade irrefutável. Mas não é por culpas do passado remoto e mais recente que se tem de enterrar a cabeça na areia. Se não há líderes mundiais capazes, que se arranje uma lanterna de Diógenes para procurar alguém que tenha herdado os genes de um Winston Churcchil.
Esta opinião da Dra. Berta Brás parece-me mais realista do que a análise do texto a que se refere.
Afinal, “isto está-nos na massa do sangue”, diz, e com razão. E é por isso que é impossível anunciar uma era de regeneração e redenção. É que não basta cortar uma ou outra árvore (podem ser muito mais do que aquilo que supomos) para se poder afiançar que a floresta está sã e promissora de abundante seiva e madeira. Sabemos bem que não, e é a nossa História que o diz.
Revisitemos o desaire que foi o constitucionalismo monárquico e o descalabro em que se saldou a I República para termos forçosamente de concluir que o problema está na nossa incapacidade de nos organizarmos em liberdade e com sentido de responsabilidade colectiva. Salazar conseguiu um período de interregno com a sua imposta visão doméstica de um povo rendido e conformado com a sua modéstia, ao mesmo tempo que acreditava na sua ficção de um império contra os ventos da História, sem reparar na flagrante contradição entre os extremos da sua utopia. Com o 25 de Abril, fez-se a festa do exorcismo do “fascismo”, mas tanto bastou para a demagogia e a cegueira arrasarem com o que tinha sido amealhado pelo velho de Santa Comba. Só os mais lúcidos poderiam ter compreendido que o salazarismo foi a versão coerente da nossa impotência económico-social colectiva (mesmo possuindo um império) e que as reivindicações selvagens não tinham o sortilégio do Toque de Midas.
A adesão à CEE, que se julgava ser o virar da página, pode ter sido o caminho menos indicado para um povo que precisava parar para pensar, dentro dos seus muros e de si mesmo. A partir daí, de ilusão em ilusão, de deslumbramento em deslumbramento, abdicámos de fazer a autognose que se impunha, e não tardaríamos a chegar a esta perigosa encruzilhada. Não, não é por culpa do José Sócrates que estamos nesta situação. O caldo de cultura foi criado ou iniciado pelo chamado Cavaquismo (rédea solta para toda a sorte de negócios e compadrios), e isto temos de reconhecer sem sofismas. O outro, o Sócrates, quanto muito pode ser o bode sacrificial, com culpa ou sem ela, para a lavagem dos nossos pecados. E se assim for, até tenho pena porque, mesmo a provar-se em tribunal a sua “cleptomania”, considero que foi o governante que mais visão estratégica teve para o país, como, aliás, o reconheceu o insuspeito Santana Lopes. De resto, em matéria de culpas sobram à saciedade exemplos de como nunca as conseguiremos assumir.
Se no seio de uma família responsável pela mais importante instituição bancária assistimos a uma despudorada auto-desculpabilização, tal como acontece na classe política que nos governa, como esperar que outros menos visíveis (cidadãos e interesses privados) possam um dia reconhecer e pedir perdão por se terem apropriado fraudulentamente de dinheiros europeus que se destinavam a relançar a nossa economia? Sim, a culpa é de todos, e “está-nos na massa do sangue”. É trágico mas é verdade. A hipocrisia de alguns analistas (intelectuais, jornalistas, etc.) é tanta que tentam distanciar-se e passar a mensagem de que são virgens impolutas, mas é apenas uma questão de oportunidade para cometerem os mesmos erros e os mesmos pecados. Está na "massa do sangue". Agora, vêm à tona vestígios do que a Inquisição instilou na psique e na memória do nosso povo: a necessidade de apontar o dedo e encontrar um culpado, a melhor maneira de mascarar as culpas colectivas. Este festim de purga e revanchismo é que me repugna e quando vejo pessoas com alguma responsabilidade intelectual e moral a ir na toada fico preocupado porque isso sinaliza a nossa congénita incapacidade de ir ao fundo de nós mesmos para sarar os males congénitos. Sim, acredito que a maldita Inquisição foi uma das grandes responsáveis pelos nossos males e ainda hoje os seus efeitos estão aí e impedem que possamos encontrar os meios para a cura psicanalítica que se impõe. Herculano, Quental, Queirós e outros puseram o dedo nesta chaga.
Foi um deleite ler este cocktail de provas de que a História se repete, INDOCHINA – O TEMPO E A MEMÓRIA
Valéry Giscard d'Estaing e General Bigeard
De entre tudo, recorto a figura do militar Bigeard, que chegou a general, um dos mais consagrados da França. Um verdadeiro patriota, a síntese perfeita da coragem física com a coragem moral.
Astray e Franco
Recorto também a figura de Unamuno, cuja inteligência e desassombro lhe permitiu responder assim ao general Astray:
- Este é o templo da inteligência e eu sou seu sumo-sacerdote! Vós estais profanando este sagrado recinto. Tenho sempre sido, digam o que digam, um profeta de meu próprio país. Vencereis porque tendes sobrada força bruta. Mas não convencereis porque para convencer há que persuadir. E para persuadir lhes falta algo que não tendes: razão e direito. Mas me parece inútil cogitar de que pensais na Espanha.
No entanto, não creio que se possa concluir com rigor científico que a História se repete. Não será que é mais a incapacidade de o homem aprender com os seus erros?
Senhor Dr. Salles da Fonseca, agradeço a sua resposta mas a minha dúvida subsiste.
Vejo que a sua resposta, aliás corroborando o pensamento exposto no seu texto, afinal se funda num conceito ideológico puro e duro. Com o qual desde já lhe digo que merece a minha discordância, tal como a de muitos daqueles que entendem que a lógica do mercado não deve ser o mandatário do nosso destino. Por outras palavras, não deve sobrepor-se à vontade soberana dos Estados, ainda mais quando a realidade nos vem demonstrando que a lógica funcional do dito mercado é, na generalidade dos casos, uma perversa distorção dos princípios humanitários que deviam nortear a humanidade nesta fase da nossa civilização. É que a tão festejada globalização afinal de contas pariu um mercado dogmático que preza muito mais o interesse das elites financeiras do que a ideia de um mundo mais justo e mais equilibrado, que é o que nos faz pensar a liberalização desregulada dos mercados de capitais e a existência de paraísos fiscais (como foi o Luxemburgo), com toda a sorte de infracções, conúbios secretos e patifarias, de que temos tido sobejas provas. Vide as falências bancárias chez nous, para não falar de outras por esse mundo fora.
Ora, essa concorrência fiscal que defende, assim como alguns comentadores, não será mais que a expressão dessa desenfreada liberdade do mercado transferida para o seio de uma União Europeia fundada por gente de visão que acreditava que a solidariedade dentro do seu espaço era essencial para evitar as dissensões e os conflitos bélicos que dilaceraram o continente no século passado. Infelizmente, os actuais líderes da Europa estão a atirar para a sarjeta a cartilha dos bons princípios fundadores e a criar condições para a instalação larvar de uma nova onda de descontentamento e clivagens que não podem conduzir senão a rupturas de consequências imprevisíveis.
Portanto, ao contrário daquilo que defende, bom seria que a Europa voltasse aos carris que vinha percorrendo. O Estado Social, em que o Senhor não acredita, é obra da Europa e não me parece que esse projecto esteja comprometido só por causa do mercado livre, desregulado e desumano. Julgo que a Europa é ainda depositária de um património ideológico suficiente para enfrentar o odioso capitalismo que pode estar a ameaçar a segurança e a paz mundial. Desde que o queira, a Europa tem ainda capacidade para ter uma palavra diferente, tenha para isso líderes que conheçam a História e possuam outra visão do mundo. Penso que o código de vida da humanidade não pode subordinar-se à dissuasão do “pisganço” de gente sem alma.
Senti muito o desaparecimento do “Nosso General”, oficial que eu tenho na mais elevada estima e consideração, quer pela minha condição de militar quer pela minha origem cabo-verdiana, conhecedor que sou da forma a um tempo valiosa, competente e, sobretudo, humanitária, como exerceu o seu cargo de governador em Cabo Verde.
Ficou para a História a decisão que ele tomou para minorar o problema das graves carências alimentares em Cabo Verde. Por seu despacho, nomeou uma comissão para elaborar o que ficou conhecido por “Plano de Abastecimento de Cabo Verde em Época de Seca”, 1959-1960, constituída pelo então capitão do Estado-Maior Arménio Nuno Ramires de Oliveira, hoje general reformado, pelo Dr. Júlio Monteiro e pelo Dr. Henrique Teixeira de Sousa. Este último teve, há uns anos, a amabilidade de me oferecer um exemplar desse Plano, em cuja introdução se pode ler: “Trata-se de um minucioso estudo de carácter oficial para o qual o Instituto de Investigação Científica Tropical não concorreu, nem com o seu pessoal, nem sequer com o seu patrocínio. O seu relatório, que é hoje um documento de inegável importância histórica, baseia-se em dados económicos e demográficos, utiliza informadores sobre a circulação de bens e de pessoas, e recorre a todos os índices de interesse para se estabelecer o projecto de combate aos efeitos gravosos das secas cíclicas de Cabo Verde, com as suas consequências desastrosas na população e também, na riqueza pecuária das ilhas. Todavia, para além de caracterizar situações, de pôr em confronto números que as indiciam, o projecto é mais ambicioso, visto propor soluções de emergência e soluções a longo prazo que poderiam, segundo os especialistas encarregados da missão, vir a mitigar os efeitos terríveis das secas”.
A verdade é que depois disso nunca mais voltaram a acontecer os calamitosos episódios de fome que marcaram tristemente a vida do arquipélago no passado.
Uma grande sensibilidade aos problemas humanos e o mais completo sentido de missão são os dois vectores principais que orientaram a acção do Governador. Pena é já não haver na actualidade Homens de semelhante têmpera e envergadura moral. As novas gerações, além de desprovidas de real preparação para o serviço público, parecem desatentas aos grandes exemplos do passado. É uma pena, e o problema é que estamos todos a pagar por este flagrante défice de valor e cidadania.
Pelos contactos que tenho com cabo-verdianos de boa cepa e gente séria, sei que o Governador deixou as mais gratas memórias em Cabo Verde. É o que ouço de pessoas da minha geração e de gerações mais velhas que têm em boa lembrança a sua acção governativa e o tamanho da sua humanidade. Certamente que as gerações mais novas não fazem a mínima ideia de quem seja o General Silvério Marques. E isso acontece em parte porque os que hoje detêm o poder não têm interesse em que a História se faça inteira e verdadeira, pelo que a informação pública não é de molde a realçar e a enaltecer Homens destes.