A Nação não se funda nem sobre a unidade linguística, nem sobre a comunidade da fé, nem sobre a continuidade geográfica, nem sobre a partilha da História. A Nação existe pelo único desejo de constituir uma unidade.
Abdelwahab Meddeb
(citando Ernest Renan) in “A DOENÇA DO ISLÃO”, ed. Relógio D’Água, Março de 2005, pág. 206
As pessoas da elite espiritual são reconhecíveis até nos nossos dias. O viajante pode encontrá-las nas sociedades do Islão que conservam os traços da tradição, como em Marrocos. Aí, reconheci um deles, em Tameslohte, a meio caminho entre Marrakech e o Atlas, uma noite, sob os andrajos de um mendigo, nessa aldeola marcada pela santidade, sob a arcada do pórtico que precede a casbá dos chorfas. A atmosfera estava impregnada pelo odor acre do óleo que emana dos moinhos. Estávamos na época da apanha: a floresta de oliveiras que envolve o aglomerado oferecia uma rica colheita. Bela barba, aspecto robusto, o mendigo que vinha em minha direcção tinha como que escapado de A Morte da Virgem, pintado por Caravaggio; era tão humilde, tão robusto quanto uma das personagens que rodeiam os restos mortais da santa defunta, nesta obra que recentemente voltei a ver no Louvre.
Chegando perto de mim, procurou os meus olhos na penumbra e, tão singelo quanto solene, executou dois gestos que resumiam a sua condição, o seu empenho, o seu itinerário. Com a mão esquerda, indicou-me a terra e o desprezo que ela lhe suscitava e ergueu a mão direita num gesto que oferecia o seu assentimento ao céu; um concentrado de energia empertigava o corpo dele que repentinamente se encontrava como que pronto para a ascensão.
Com este encadeamento de mímicas teatrais, parecia querer dizer: nada existe aqui em baixo, lá em cima está o Ser. Tal é a eloquência muda do mendigo aristocrático marcado pela ignorância, pertencente à elite da elite que ilumina o não-saber, irmão e émulo tanto do mestre de Bistâm como do homem de Tabriz, sobrevivente no nosso século das preservadas terras dos petrodólares e do wahhabismo.
Foi esta distinção entre elite e vulgo que se manifestou sob a pressão de uma democratização sem democracia, generalizando, pelo seu populismo, o ensino, sem considerar a qualidade e sem readaptar o princípio hierárquico para constituir uma elite republicana ou democrática. É então que se dá o triunfo do vulgo o qual, ao adquirir o domínio de uma técnica, passa da alfabetização à especialidade sem se adestrar à experiência do antigo, relativamente ao saber a que noutros tempos se designava por humanidades e que nos nossos dias se associa à inutilidade.
Nesta forma de inculcar o ensino de uma especialização num espírito amnésico ou virgem, descubro um sinal suplementar que confirma a americanização do mundo. Deste modo, o vulgo, ainda que mestre de uma especialidade técnica, não se transformou em figura aristocrática pela simples razão de que é o produto de uma instrução sem cultura. São os instruídos incultos que mais arruínam os homens.
Sem hesitar, prefiro os iletrados de elevada cultura, à semelhança do mendigo de Tameslohte.
Abdelwahab Meddeb
BIBLIOGRAFIA:
A DOENÇA DO ISLÃO, Abdelwahab Meddeb, “Relógio d’Água Editores”, Março de 2005, pág. 148 e seg.