SUBTILEZAS DA CRISE
De há muito que é assumido que Portugal se encontra confrontado com uma grave crise e que esta é na sua essência estrutural.
Não obstante, o discurso político parece não ter este facto devidamente em conta.
Frequentemente o acento tónico é posto em causas exteriores ou passageiras, como se o simples desaparecimento das mesmas permitisse alcançar o almejado desenvolvimento. Elimina-se assim a nossa responsabilidade básica, enquanto país e colectividade, na resolução dos nossos problemas e o contributo decisivo que nos incumbe na construção do nosso bem-estar enquanto nação.
Embora isto seja sabido, é importante relembrá-lo, numa perspectiva visando identificar os factores que de forma decisiva nos impedem de alcançar maior prosperidade e felicidade. Neste campo muito tem sido sugerido. Há, contudo, uma dimensão da problemática que sistematicamente é esquecida.
Com efeito, as democracias ocidentais caracterizam-se por possuírem um conjunto de instituições – os chamados órgãos de Estado – visando assegurar os "controlos e equilíbrios" que caracterizam a verdadeira democracia. É precisamente a este nível institucional básico que a nossa democracia falha: falta-nos um efectivo funcionamento dos controlos susceptíveis de assegurar o equilíbrio institucional, indispensável à eficaz prossecução dos objectivos, resultantes de desígnios partilhados.
Mas porquê esta falha? Qual a razão para a sua persistência? É convicção de muitos que ela deriva basicamente do sistema eleitoral vigente, sequestrado por lideranças e directórios dos partidos políticos dominantes, que não permitem que sejam efectivamente os cidadãos eleitores a decidir quem são os deputados que os representam na Assembleia da República. Estes acabam assim por ser os representantes desses directórios e suas clientelas de interesses, a quem, no fundo, prestam fidelidade. A partir daqui, todo o sistema de representação política fica comprometido e contaminado, com a concomitante essência democrática posta em causa.
Assim se explica o divórcio crescente entre os cidadãos e a política, de que o nível de abstenção eleitoral é um indicador relevante. O actual descrédito na opinião pública da política e dos órgãos de Estado é patente e preocupante; só por ingenuidade ou má-fé pode ser ignorado.
Neste contexto, não deixa de ser igualmente preocupante a passividade e a displicência com que tudo isto vem sendo abordado, em particular pelos partidos do "arco da governação". Claro que há vozes a denunciar a situação em que o país se encontra a nível político; mas, infelizmente, sem quaisquer repercussões práticas inspiradoras e mobilizadoras. É de facto bastante estranho que não seja no seio das próprias organizações partidárias existentes - particularmente nas de orientação mais democrática - que surjam vozes a insurgir-se contra a partidocracia dos directórios e a pugnar por novas formas de liderança. Seria de esperar que fossem os próprios membros dos actuais partidos do "arco do poder" a apoiar e tomar as iniciativas com vista à implementação das reformas políticas de que o país carece - e acabará por exigir e concretizar. A persistir esta situação, teremos de concluir que o grau de promiscuidade entre o poder político e as redes clientelares de interesses atingiu entre nós dimensões e um nível de degenerescência institucional incompatíveis com a salutar reforma do sistema. Outros com visões mais radicais poderão assim vir a tomar o "comando das operações".
Conclui-se assim pela urgente renovação e regeneração do sistema político em Portugal, a começar pelo sistema eleitoral. Este deverá assegurar a rigorosa representatividade parlamentar das diferentes correntes de pensamento existentes na sociedade, mas por forma que os cidadãos tenham voz activa e decisiva na escolha dos representantes eleitos, bem como uma real garantia de eligibilidade; não somente o direito de votar. Só assim se garante a verdadeira democracia. O corolário de tudo isto é que importa igualmente repensar e melhorar o actual sistema de financiamento dos partidos, por forma a dotá-lo de maior transparência.
José António Girão
Professor da FE/UNL