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A bem da Nação

SUBSÍDIOS PARA A CABOVERDEANIDADE (2)

 

 

Qual é a origem do Arquipélago? Faz parte de África?

 

 

Já o grande poeta Jorge Barbosa se tinha preocupado com as origens do Arquipélago, em 1955.

 

Seriam

 

Destroços de que continente,

                                                       De que cataclismos,

                                                       De que sismos,

                                                        De que mistérios?...

estas

                                                        Ilhas perdidas

                                                       No meio do mar,

                                                       Esquecidas

                                                       Num canto do mundo,

                                                       Que as ondas embalam,

                                                       Maltratam,

                                                       Abraçam…

 

Hoje, muitos parecem acreditar e outros continuam a afirmar, leigos e conceituados especialistas, que o Arquipélago se encontra em África.

 

Jorge Querido (2011, Um demorado olhar sobre Cabo Verde, 342 p., Chiado Editora, Lisboa ou Praia?) escreve peremptoriamente: “Todas as ilhas do arquipélago caboverdiano, sem excepção, são de origem vulcânica”, esquecendo-se de que a ilha de Maio resultou dum movimento tectónico, que trouxe à superfície sedimentos pelágicos depositados a cerca de 2.000 m de profundidade (Frederico Machado, 1967, Geologia das ilhas de Cabo Verde, Junta de Investigações do Ultramar, Lisboa, 25 p.). Depois afirma que as “dez ilhas e algumas ilhotas” (oito mais precisamente) “se situam sobre a vertente da plataforma continental africana”. Poucas linhas mais adiante, lembra que “as ilhas estão separadas da costa africana por fundos que, em muitos pontos, ultrapassam largamente os 3.500 metros” de profundidade. Como é que Jorge Querido, um conceituado especialista na matéria, quer prolongar a plataforma africana ou a sua “vertente” para ocidente destes fundos oceânicos, onde se encontram as dez ilhas e oito ilhéus do arquipélago? Esses fundos oceânicos separam obviamente o Arquipélago do continente a que ele chama “nosso” e o Arquipélago está fora do continente de Jorge Querido.

 

Desde o século XIX, os geólogos nunca consideraram os arquipélagos da Madeira e de Cabo Verde como uma dependência de África, atendendo à grande profundidade dos mares que os separam deste continente (Fig. 1). Esta conclusão foi tirada muito antes do aparecimento da teoria tectónica de placas, que só veio confirmá-la e procurar explicá-la.

 

 

JCH-Arquipélago.jpg

Fig. 1. O Arquipélago de Cabo Verde no Oceano Atlântico a 450 – 600 km de distância do continente mais próximo (P. Torres, L. C. Silva, J. Munhá, R. Caldeira, J. Mata e C. Tassinari, 2010, Petrology and Geochemistry of lavas from Sal Island:  Implications for the variability of the Cape Verde magmatism, Comunicações Geológicas, Nº 97, Laboratório Nacional de Energia e Geologia, Amadora, Portugal 20 p.)

 

 

Os arquipélagos da Madeira, Canárias e Cabo Verde são de formação mais antiga do que o dos Açores. Mas, vejamos primeiro o que são ilhas vulcânicas. Trata-se de vulcões submarinos, que são muito numerosos, dando relevo aos fundos oceânicos e às planícies abissais. Só alguns crescem e se levantam acima do nível das águas para formar ilhas. Há ilhas vulcânicas de dois tipos. As do primeiro tipo, como os Açores e a Islândia e a ilha de Santa Helena, pertencem a uma dorsal vulcânica médio-oceânica, ou cordilheira de montanhas submarinas, que divide os oceanos em duas bacias. Nesta dorsal a crosta ou litosfera oceânica abre-se, acompanhando o afastamento dos dois continentes dum lado e outro do oceano e deixando sair lavas basálticas, que se vão solidificando para formar nova litosfera oceânica dum lado e doutro da dorsal. Essa nova crosta oceânica ocupa assim o espaço libertado pelo afastamento dos dois novos continentes, um do outro, no nosso caso o Brasil ou América do Sul a ocidente e a África a oriente. 

 

 

JCH-intrerior da Terra.jpg

 

Fig. 2. Num corte do globo terrestre (Wikipédia), pode ver-se que, à volta duma esfera muito densa, chamada núcleo, vem o manto de 2000 km de espessura e, por cima deste, à superfície, a litosfera rochosa, que pode ser muito delgada (geralmente 7 a 8 km de espessura) no fundo dos oceanos ou mais espessa, melhor menos delgada, com cerca de 30 km de espessura nos continentes. As dorsais vulcânicas médio-oceânicas dividem a litosfera em placas grandes e pequenas. Estas dorsais expulsam magma basáltico, que faz crescer as placas e as empurra e faz deslizar sobre o manto, umas contra as outras e ainda umas por debaixo das outras, perdendo-se no manto, a chamada subducção. Estes movimentos tectónicos das placas de litosfera rochosa são acompanhados de vulcanismo, nas faixas de tracção, que as separam e fracturam, como nas (1) dorsais médio-oceânicas e nos (2) riftes continentais, exemplo o grande rifte africano e nas faixas de (3) subducção, como a África a passar por debaixo da Europa fechando o Mediterrâneo. Há ainda faixas de compressão como o sub continente indiano contra a Ásia, levantando os Himalaias e o Tibete. A litosfera oceânica delgada é formada por rochas basálticas de composição química dita básica, ao passo que a litosfera continental é formada por rochas de composição química preponderantemente ácida, sendo os granitos as rochas plutónicas mais representadas e características dos continentes acompanhados pelas rochas metamórficas.

 

Há ainda outro tipo de ilhas vulcânicas, que resultam da passagem das placas de litosfera oceânica, deslizando sobre o manto (Fig. 2), por cima de pontos (na realidade zonas de mais de 100 km de dimensões horizontais) de acumulação de calor neste manto. Estes pontos quentes ou penachos de calor, fundem as rochas do manto e da litosfera oceânica, dando origem a câmaras de magma, que se descarrega periodicamente, rasgando a litosfera oceânica e formando arquipélagos de ilhas alinhadas. Estão neste caso o arquipélago de Hauai, onde o movimento da placa oceânica em relação ao manto é rápido (cerca de 10 cm/ano), assim como os arquipélagos das Canárias, Madeira e Cabo Verde, que se deslocam mais devagar, a menos de 1 ou 2 cm/ano relativamente ao ponto quente correspondente do manto. Todos eles são formados por montanhas submarinas e ilhas alinhadas em cadeias, com o respectivo ponto quente do manto, cuja posição é conhecida ou extrapolada.

 

Em Cabo Verde, acima do nível do mar, há duas cadeias de ilhas alinhadas, a de Barlavento no Norte (Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, esta alongada no sentido do alinhamento, Boavista e Sal, esta fora do alinhamento e a Norte deste) e a de Sotavento no Sul (Brava, Fogo, Santiago e Maio). Os eixos das duas cadeias fazem um ângulo inferior a cerca de 40º, cujo vértice está a 21º 45’ de longitude W e 15º 40’ de latitude N. Neste vértice encontra-se um monte submarino, chamado Monte Cabo Verde (Fig. 1). As ilhas de Maio, Santiago ou Boavista e Sal, com o parcel de João Valente, uma antiga ilha erodida, entre Maio e Boavista, a 20 m de profundidade, alinham-se grosseiramente num terceiro eixo de SSSW-NNNE de fraca curvatura. Trata-se de uma terceira cadeia, cortando o ângulo agudo das outras duas cadeias e dando ao conjunto do Arquipélago a forma duma ferradura aberta para ocidente.

 

O alinhamento das ilhas em duas cadeias diferentes e uma terceira cadeia de que faz parte o parcel de João Valente indica que o movimento da litosfera oceânica não tem sido uma simples translação, houve rotação e mudança de direcção da translação da placa oceânica, quando o continente africano e a Peninsula Arábica esbarraram com a grande placa euro asiática a Norte. A abertura do Grande Rifte ou sistema de falhas dos lagos da África Oriental também certamente perturbou este movimento. O terceiro alinhamento das ilhas em arco de círculo pode ser o resultado duma tectónica profunda e representar a intersecção do globo com uma falha sub vertical com pendente para ocidente.

 

As ilhas de Sal e Maio na terceira cadeia são as mais antigas. A sua formação, sem contar os complexos de base o os seus socos, inacessíveis à colheita directa de amostras para datação, iniciou-se há cerca de 17 Ma (milhões de anos). A ilha de Maio não apresenta vulcanismo recente, contrariamente a todas as outras, confirmando que a sua origem é tectónica e não vulcânica. Está num processo de erosão, que é compensado por um movimento de levantamento vertical (José Ricardo Ramalho, Rui Quartau, Alan Trenhaile, George Helffrich, José Madeira, Sónia S. D. S. Victória e Daniela N. Schmidt, Why have the old Cape Verde islands remained above sea level? Insights from field data and wave erosion modeling, http://www.webpages.uidaho. edu/~dgeist/Chapman/Ramalho _AGU_Chapman_erosion.pdf). A formação das outras ilhas datadas não vai além de 6 Ma (Santiago, São Nicolau, São Vicente) ou 3 Ma para Santo Antão. A ilha do Fogo com o seu vulcão activo é a mais jovem e está em fase de construção. A idade das ilhas de Boavista, Santa Luzia e Brava ainda não é bem conhecida, só foi extrapolada das ilhas mais próximas (Ricardo Alexandre dos Santos Ramalho, 2011, Building of the Cape Verde Islands, Springer Verlag, 207 p.).

 

Todas estas ilhas estão no cume e no centro de uma elevação arredondada ou abóbada dos fundos submarinos, que é a maior do mundo com mais de 1500 m de altura e um diâmetro lateral de cerca de 1500 km. A espessura da placa de litosfera oceânica de 7 km entre as ilhas é normal, trata-se duma abóbada ou inchamento do próprio manto. A estratigrafia da ilha de Maio indica que o movimento de elevação desta abóbada atingiu 2000 m no fim do Mioceno e início do Oligoceno e que esta elevação foi contemporânea do início de actividade do ponto quente. Ao sul desta elevação, encontra-se a planície abissal da Gâmbia e a pequena abóbada da Serra Leoa, ao norte, a planície abissal entre Cabo Verde e Madeira. A ocidente, as duas planícies abissais unem-se na planície abissal de Cabo Verde, que se prolonga até à dorsal médio-atlântica e a oriente a abóbada de Cabo Verde com a sua litosfera oceânica esbarra com o continente africano ou prolonga-se por debaixo deste.

 

O movimento lento e complicado da placa oceânica praticamente estacionária em relação ao penacho de calor, ou ponto quente do manto e as rupturas tectónicas e movimentos verticais desta placa, são os dois factores, que combinados podem explicar a origem das ilhas e a forma do arquipélago. A origem das ilhas não é puramente vulcânica, há intervenção da tectónica profunda e da sedimentação no fundo oceânico, o Arquipélago não é simplesmente de origem vulcânica, além de rochas vulcânicas, as ilhas compreendem rochas sedimentares antigas e depositadas a grandes profundidades, que são visíveis na ilha de Maio. Em Santiago, Boavista, Maio, São Vicente, Brava, encontram-se rochas plutónicas macrocristalinas alcalinas, pobres em sílica e também gabros. Citemos ainda os carbonatitos das ilhas Brava, Fogo e Santiago (A. Ferreira, 11.11.2016, Comentário, http://coral-vermelho.blogspot.pt/) para sublinhar a complexidade litológica das ilhas. Faltam porém, em todas as ilhas, as rochas ácidas graníticas e metamórficas características das litosferas continentais (Ramalho, 2011). Estas ilhas não têm nada que se assemelhe a um continente. Contrariamente a Madagascar, Cabo Verde não é um pedaço de continente, um pequeno continente, que teria ficado entre a África e o Brasil, quando o continente primitivo, Gondwana se fracturou e desintegrou, ou que se teria separado tardiamente da África. Também não é um micro-continente, como o Arquipélago do Almirante, onde se encontra a República de Seychelles do nome dum deputado francês, o qual se separou de Madagascar com a Índia, para depois se separar desta última e compreende um conjunto de ilhas graníticas. Cabo Verde será talvez um micro-continente embrionário, uma pequena placa, que falhou no seu desenvolvimento, ficou incompleta, sem crosta continental e não chegou a ser placa continental. A tectónica de placas não é tão simples como parece na sua apresentação esquemática. As placas nem sempre deslizam sobre uma estenosfera, ou manto superior, bem lubrificada, a superfície de contacto nem sempre é uniforme mecanicamente (viscosidade, resistência à ruptura) e quimicamente, compreende asperidades variáveis, é rugosa, pedaços da litosfera continental inferior podem ser arrastados à superfície da estenosfera, como talvez tenha acontecido no Arquipélago e sua abóbada oceânica.

 

As ilhas Canárias estão só a cerca de 100 km da plataforma ou margem do continente africano, porém não pertencem ao continente, nem estão relacionadas com a tectónica norte-africana, nem com o grande acidente tectónico activo de Agadir, sensivelmente alinhado com elas (J. C. Carracedo et al., 1998, Hot spot volcanism close to a passive continental margin: the Canary islands, Geol. Mag., 135, 5, p. 591-604). As ilhas de Cabo Verde encontram-se a distâncias de 450 a 600 km do continente mais próximo, que é o africano. Estão mais longe de África do que a Madeira, que os madeirenses nunca pretenderam considerar como fazendo parte do continente africano.

 

JCH-Plataforma continental.jpg Fig. 3. A plataforma continental prolonga o continente sob as águas do oceano até uma profundidade de 200 m, com larguras variáveis de alguns a poucas dezenas de quilómetros. O continente acaba por um talude íngreme entre 200 m e mais de 3000 m de profundidade (Wikipédia).

 

A plataforma ou margem continental da África (Fig. 3) é estreita e só se alarga na África do Sul e no canal de Moçambique (Fig. 4). A sua largura é de 20-25 km, em média, ao longo da costa Atlântica. Como é que Jorge Querido desejaria encaixar o arquipélago completo de dez ilhas e oito ilhéus, mais um parcel e um monte submarino na estreita plataforma do “seu” continente e no talude ainda mais estreito desta plataforma? As ilhas grandes não cabem lá, quanto menos o arquipélago! Só as “ilhotas” lá caberiam, com as suas pequenas dimensões, o arquipélago só lá cabe em mitos delirantes ou disparates irreflectidos..., copiados das autoridades políticas marxistas-leninistas.

 

 

JCH-África.jpg Fig. 4.  Mapa simplificado do continente africano com a sua plataforma continental geralmente estreita (Wikipédia)

 

 

Felizmente, os recursos do oceano à volta de Cabo Verde pertencem à República de Cabo Verde, à volta do Arquipélago. Não há razão para disputa com os distantes países africanos e ainda mais distantes países americanos ou europeus. Os países da África Ocidental exercem as suas jurisdições nos troços de plataforma continental delimitados ou a delimitar relativamente às suas fronteiras terrestres, que frequentemente não foram validadas por ambas as partes, como é o caso da Guiné, por exemplo. No caso de Cabo Verde não há fronteiras terrestres, a sua jurisdição para oriente irá até metade da distância à África.  

 

Cabo Verde não está, nem nunca esteve em África. Com efeito e resumidamente, o estudo da sua geologia, geoquímica e geofísica só tem comprovado que o arquipélago de Cabo Verde, como os arquipélagos da Madeira e das Canárias, faz parte do Oceano Atlântico, pertence a uma placa da litosfera basáltica oceânica, não faz parte de nenhuma placa continental. Está fora do continente africano e da sua estreita plataforma e separado desta por profundidades superiores a 3.500 m, como atinadamente lembrou Jorge Querido.

 

No Oceano Índico, a situação é mais diversificada. A grande ilha de Madagascar é um pedaço de continente ou um pequeno continente, que se separou da África, mais precisamente de Moçambique, a seguir à Austrália e ao Subcontinente Indiano. É de origem tectónica, com vulcanismo e rochas vulcânicas na sua periferia, que são cicatrizes da ruptura por tracção do grande continente pré-existente, o continente de Gondwana. O Arquipélago do Almirante é um pedaço de continente ainda mais pequeno. A formação dos arquipélagos das Mascarenhas e do Cômoro está ligada a pontos quentes ou penachos de calor do manto.

 

Está assim bem estudado e documentado, que as dez ilhas, oito ilhéus, um parcel e um monte submarino do nosso Arquipélago, pertencem ao nosso Oceano Atlântico. Contrariamente à linguística, o estudo da geologia do Arquipélago não foi descurado, nem politizado pelos investigadores caboverdeanos e portugueses, que trabalham em equipa e se apoiam mutuamente. Foi recentemente publicado o livro acima referido (Ramalho, 2011), que reúne e interpreta os conhecimentos adquiridos até à data sobre a formação deste arquipélago oceânico. Mas, a formação das ilhas e do arquipélago ainda não foi bem compreendida, as investigações continuam. Tampouco ainda não foi bem estudada a tectónica da África Ocidental, que aparenta estabilidade, mas apresenta uma sismicidade notável, com movimentos horizontais entre compartimentos separados por falhas e movimentos verticais, com as rias da Guiné a afundarem-se, enquanto se eleva o Futa Djalom. Serão estudos apaixonantes a fazer pelas novas gerações de geólogos caboverdeanos, dispostos a esquecerem os mitos e porem-se a trabalhar para acertar o relógio caboverdeano, com já diziam os Claridosos (Jorge Barbosa, 1936, citado por Arnaldo França, em Baltasar Lopes, 2010, Escritos Filológicos e Outros Ensaios, Praia, 365 p.), ou melhor, no caso da geologia, mantê-lo acertado e, quem sabe, adiantá-lo, tudo depende deles.  A longa história comum da Guiné e de Cabo Verde talvez possa ser reatada pelo trabalho dos geólogos e outros profissionais dos dois países, porque a luta dum só partido e duas nações dos políticos marxistas-leninistas falhou.

 

Nas nossas discussões do metro de Paris, em 1960, e nas numerosas discussões, que se seguiram, em Leipzig, na Alemanha, em Rebate, Marrocos e em Argel, até 1965, uma das principais preocupações do meu grande e saudoso amigo Abílio Monteiro Duarte era arrasar os mitos. Havia, nessa época distante, mitos baseados mal ou bem na história, mas havia muitos e grandes preconceitos sociais erigidos em mitos, como o grande disparate da incapacidade intelectual correlacionada com a taxa de melanina dérmica, que nunca chamou a atenção dos caboverdeanos, nem os preocupou. Esses preconceitos, disparates e mitos do passado estão hoje muito abalados e reduzidos a escombros e resíduos, mas infelizmente surgiram outros, como aquele dum candidato a presidente de Cabo Verde, que, durante a sua campanha eleitoral, desejaria governar com os dois pés fincados em África, proeza que nunca conseguiria fazer, a não ser que um golpe de estado à moda africana o enviasse para o exílio, em Dacar (Fig. 5). Graças a Deus, isso parece impossível, porque Cabo Verde não é África. Contra tal golpe de estado, “até as pedras das calçadas se levantariam”. Foi assim que Mestre Baltazar Lopes da Silva comentou uma observação do meu amigo jurisconsulto guineense João Cruz Pinto sobre a pena de morte do código militar do seu país africano e a sua possível aplicação em Cabo Verde (comunicação verbal do último, Lisboa, Outubro de 2013).

 

JCH-Jerry.jpg

Fig 5. Jerry John Rawlings (Wikipédia), filho dum farmacêutico escocês e de mãe comerciante jeje (= ewe, em língua jeje), inaugurou a quarta república como presidente do Ghana (1993-2001). Depois dum primeiro golpe de estado (1979), foi preso, condenado à morte por um tribunal militar e libertado pelos soldados, antes de ser executado. Combateu impiedosamente a classe dirigente predadora (Professor Ibrahima Thioub, Universidade Cheik Anta Diop, Dacar, 2010, L’Afrique et ses élites prédatrices, Le Monde, 1.6.2010, http://www. guineelibre.com/article-l-afrique-et-ses-elites-predatrices-pr-ibrahima-thioub-683193. html), que se tinha instalado no poder durante a primeira república de Kwame Nkrumah (1960-66) e desgovernado o país durante a segunda e terceira repúblicas (1966-79). Os generais e ministros mais corruptos foram passados pelas armas, incluindo um tio do Presidente, que tinha entrado no novo governo por cunha da família materna e que logo tinha aproveitado para ganhar dinheiro ilicitamente. Ao acabar o seu segundo mandato, deixou o Ghana no caminho do desenvolvimento económico e social bem à frente dos outros países da África Ocidental.   

 

 

Falta-nos o Padre António Brásio, que estava “muito habituado” a essa tarefa, com muita prática de “demolir mitos históricos e (…) derribar estátuas de bronze… com pés de barro”, (Padre António Duarte Brásio, 1960, Santiago escala imperial, Cabo Verde, Boletim de Propaganda e Informação, Ano XI, Nº 131, p. 28 a 32, lido na rádio a 14.6.1960). Vamos inspirar-nos dele, porque esta tarefa se tornou urgente depois de quatro décadas da independência do Estado-Nação caboverdeano, um estado feito à pressa, durante a guerra-fria e uma nação, que se tem afirmado e enriquecido durante quase sessenta décadas, mas cuja história tem sido escondida pelos marxistas-leninistas e não foi ensinada às crianças durante as quatro últimas décadas. Vamos aqui lançar mãos à obra, certos que seremos apoiados pelos caboverdeanos, cada vez mais numerosos, que já se entusiasmaram pelos “estudos históricos caboverdeanos” com tanto “êxito” como os que se têm entusiasmado pela “literatura de ficção e a poesia” (Padre António Duarte Brásio, 14.6.1960).

 

Para desfraldar ou tentar fazer sobreviver o mito de que Cabo Verde faz parte de África, vimos mais acima, que Jorge Querido se embrenhou numa contradição na mesma e única página do seu livro (p. 25), que trata de geologia. Infelizmente, na geografia, houve e continua a haver talvez pior. António Leão Correia e Silva, ilustre discípulo de Mestre António Carreira, intitulou o seu livro Histórias de um Sahel Insular (Praia, 2ª. Edição, Agosto de 1996, Edições Spleen, Praia, 175 páginas). Dois anos depois (Vários Autores, 1998, Descoberta das Ilhas de Cabo Verde, Arquivo Histórico Nacional, Praia, 259 p.), José Maria Semedo intitulou a sua contribuição para o livro citado “Um arquipélago do Sahel”, que considera ser de origem vulcânica. No primeiro caso, trata-se de um estudo histórico e socio-económico de Cabo Verde, em que o autor, com muito mérito, procura averiguar, quais os recursos do Arquipélago e da sua situação geográfica, que poderão ser utilizados no desenvolvimento económico, um problema tão antigo como a colonização do Arquipélago, que já mereceu soluções bem acertadas, em algumas épocas da sua história, nomeadamente logo no início da colonização, e que continua a ser da maior actualidade. Mas, no âmbito da discussão dum problema tão importante e sério, colocar ilhas no sahel, só pode ser anedota ou grande disparate.

 

Porque, se são ilhas, não podem ser litoral, que é só isso, que a palavra árabe sahel quer dizer, litoral semi-desértico do deserto do Sahara a norte e a sul do mesmo, colinas do sahel, em Argel, ou colinas do litoral húmido do mar mediterrânico. Sahel não é um topónimo geográfico, não é um termo de climatologia ou meteorologia. Esta palavra árabe significa litoral ou margem (PAIGC, 1974, História da Guiné e Ilhas de Cabo Verde, Lisboa, Afrontamento, 185 p.). 

 

Cabo Verde encontra-se na zona tropical e o seu clima oceânico sub-húmido a semi-árido é determinado pelas variações da zona de convergência intertropical, que também determinam a aridez do Nordeste brasileiro. Os efeitos da variação desta zona de convergência fazem-se sentir no Oceano Atlântico a ocidente e a oriente de Cabo Verde e ainda nos outros oceanos (Ana Bárbara Coutinho de Melo, Paulo Nobre, David Mendes e Marcus Jorge Bottino, 2002, A zona de convergência intertropical sobre o Oceano Atlântico, Climatologia XII, Congresso Brasileiro de Meteorologia, Foz do Iguaçu - PR, p. 682-6). Porque é que Cabo Verde não seria um Nordeste insular, se tivesse como referência o Brasil e o Atlântico tropical, sem disparate, nem anedota, porque é que há de ter, por referência, a África, à custa de contradições e disparates? A referência à África estava na moda, em 1960, um tempo que já lá vai, assim como a unidade da “luta” dos povos da Guiné e Cabo Verde, que tinha uma base na história e não era uma simples utopia, como alguns sugeriram (António Tomás, 2007, O fazedor de utopias, uma biografia de Amílcar Cabral, Tinta da China, Lisboa, 344 p.), mas infelizmente falhou, custando centenas de vidas guineenses (Aristides Pereira, p. 157, 173, 177, entrevistado por José Vicente Lopes, 2013, Aristides Pereira: Minha Vida Nossa História, Praia, Spleen Edições, 492 p.), entre as quais a do seu principal promotor, o engenheiro agrónomo Amílcar Lopes Cabral, um massacre no continente, que só parou graças à enérgica intervenção de Abílio Duarte e que deixou a Pequena Guiné numa situação trágica e tragicómica até hoje.

 

As ilhas do arquipélago na plataforma continental africana, se lá coubessem, ainda teriam as pernas dentro de água…, mas na margem ou litoral semidesértico do grande deserto africano, com os pés enxutos, deixavam de ser ilhas… Uma contradição insolúvel numa página do livro do primeiro autor e outra no título das obras dos dois outros autores, todos levados pela premissa errada de que Cabo Verde é África, um novo mito sem fundamento algum.

 

A vantagem desta referência ou mito africano é, hoje em dia, só dos políticos, que medem o seu desempenho pelos índices económicos africanos (José Maria das Neves, 2015, Cabo Verde, Gestão das Impossibilidades, Lisboa, Rosa de Porcelana Editora, 134 p.). Por enquanto, estes índices estão abaixo dos índices de Cabo Verde. Só por enquanto, porque os africanos estão a trabalhar nas suas Áfricas continentais e qualidades de bons e abnegados trabalhadores nunca ninguém lhas negou, com o seu trabalho cativo e forro fizeram as Américas dos outros e, em liberdade e dignidade, hão de fazer as suas próprias Áfricas, são capazes de trabalhar nas condições mais duras, sem se queixarem e sem perderem a alegria de viver. Se, entretanto, os políticos continuam a embalar os caboverdeanos com mitos e a ignorar os índices de desenvolvimento do Brasil, países asiáticos e outros, incluindo a África do Sul e a Rússia, as ilhas do nordeste do Atlântico tropical ficarão atrasadas, como Portugal já ficou, ao encostar-se à Europa dos seus sonhos e pesadelos, ou melhor da moda, que passa como o vento.

 

Cabo Verde foi, na história, a sede da primeira diocese africana dos trópicos criada por bula papal em 31 de Janeiro de 1533. Nessa altura, a Grande Guiné era a colónia de povoamento de Cabo Verde, como veremos mais adiante e os Rios da Guiné ou Guiné de Cabo Verde eram administrados por um governador residente em Santiago. Depois da independência, depois de Cabo Verde ter sido arrastado politicamente para o mito da África, pelas lestadas da “revolução” africana e do marxismo-leninismo e por pura e desnecessária preocupação com a moda, a diocese de Cabo Verde, hoje as duas dioceses de Cabo Verde, ficaram a fazer parte duma conferência episcopal de língua francesa, sedeada na capital dum país muçulmano do continente vizinho, onde reside também o Núncio Apostólico. Essa conferência episcopal até podia utilizar a língua crioula com antiquíssimas tradições de catequização desde a África até à Ásia. Já era utilizada na catequese dos escravos, pelo menos desde a segunda metade do século XVII (Daniel A. Pereira, 2014, Um Olhar sobre Cabo Verde, História para Jovens, Brasília, Thesaurus, 294 p.), foi utilizada na Ásia por são Francisco Xavier, antes do século XVII. É comum a todos os países que integra, mas a conferência episcopal utiliza a língua dum país europeu. Falta em Cabo Verde uma terceira diocese, uma diocese com sede, que tudo indica que será na Ribeira Brava de São Nicolau, onde já funcionou uma catedral de 1866 a 1940, com um seminário, no qual se formaram os Claridosos Baltazar Lopes da Silva, José Lopes e António Aurélio Gonçalves, entre muitos outros (Frederico Cerrone, 1983, História da Igreja de Cabo Verde, Apontamentos, 450 anos da Igreja em Cabo Verde, Praia, 78p.).

 

Cabo Verde precisa de aeroportos internacionais para o seu desenvolvimento económico, por imperativos da sua posição geográfica e da sua nação espalhada pelo mundo, que não pode alienar. Foi bater à porta do banco regional, Banco Africano de Desenvolvimento (BAfD), o qual financiou um aeroporto regional na Praia. À data da sua inauguração, a capacidade do Aeroporto da Praia estava praticamente esgotada e o tráfego aéreo continuava a crescer. A capacidade do aeroporto da Praia, cidade capital, não chega para dar vazão aos passageiros de dois voos de longo curso, que chegassem à mesma hora logo de manhã ou ao crepúsculo, um da América e o outro da Europa.   Fechando os olhos às realidades e com falta de recursos financeiros, o BAfD tem-se demorado em decidir se vai ou não financiar um novo terminal de passageiros com capacidade pelo menos dupla da do terminal existente no aeroporto, que financiou há poucos anos. Financiamentos repetitivos e duplicados antes do fim da vida de serviço das infraestruturas é capital que fica a faltar para o desenvolvimento do país.

 

Assim, além de fazerem sonhar, em vez de trabalhar, os novos mitos têm custado dinheiro do contribuinte caboverdeano, que ficou a faltar para o desenvolvimento. Oxalá, os dirigentes da nomenclatura caboverdeana reconsiderem o mito africano e se ponham a planejar eficientemente e a trabalhar denodadamente para fazer do Arquipélago um rebocador do desenvolvimento das Áfricas, como tem acontecido na longa história caboverdeana de cinco séculos e meio e como fazem já, hoje em dia, certas ilhas e arquipélagos do Oceano Índico, como a República da Maurícia. 

 

O general Pedro Verona Pires já há quinze anos se referiu a “esse mito que é a África”, quando foi entrevistado, em Fevereiro de 2000, por Gabriel Fernandes (2002, A diluição da África, uma interpretação da saga identitária cabo-verdiana no panorama político (pós)colonial, Florianópolis, Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 253 p.).

 

O Professor José Medeiros Ferreira, no seu prefácio ao livro de António Correia e Silva (2014, Dilemas do Poder na História de Cabo Verde, Lisboa, Rosa de Porcelana editora, 206 p.) escreveu acertadamente que Cabo Verde “não se pode dar ao luxo de errar nas escolhas e perder recursos”.

 

 Jose Carlos Horta.jpg

José Carlos Mucangana

 

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