SEQUESTRO VIOLENTO...
... DE UM NAVIO FRANCÊS EM LISBOA (1561)
Na Biblioteca Nacional de Paris encontra-se um curioso manuscrito, quinhentista, em que é relatado um grave incidente de navegação mercante, ocorrido em Maio de 1561, nas águas do Tejo, assunto em que, não obstante a sua flagrante acuidade, são omissos os nossos cronistas e até o insigne e fecundo Santarém [1], na sua vasta colectânea do Quadro Elementar.
Conquanto a França e Portugal reciprocamente se houvessem prodigalizado, no decurso dos séculos XV e XVI, atitudes de fiéis e leais amigos, tais manifestações de perfeito e mútuo entendimento internacional não os impediam que notoriamente se digladiassem e se exterminassem nos mares, cuja supremacia ambos disputavam: frequentes e astuciosas surtidas da pirataria francesa, em assanhadas e implacáveis tomadias das nossas abarrotadas caravelas; e os nossos navegantes, em assomos de exacerbada fúria de represálias, sistematicamente exercidas nas embarcações francesas que ousassem abeirar-se das costas da Mina e do Brasil e até, por vezes, do litoral português.
Singular aliança era aquela, em que se alardeavam de ambos os lados óptimas intenções, como se fosse viável e possível conciliar interesses antagónicos das duas nacionalidades, porfiadamente ciosas de larga expansão mercantil e colonizadora.
Em 1555, mercê do solícito incitamento do prestigioso calvinista e almirante Coligny, partia o irrequieto e arrojado Villegagnon para a costa brasileira, na qual se apressou em tomar e fortificar uma ilha na baía de Guanabara.
Decorridos quase cinco anos sobre aquele memorável e violento esbulho (com o beneplácito do rei Henrique II) e dos consequentes episódios de agressão, provocadora à nossa soberania no território brasileiro, D. Mendo de Sá [2] decidira investir, com heróico denodo, o celebrado reduto francês, o que conseguia, em 21 de Fevereiro de 1560, derrubando-se a fortaleza corsária e posta a ferros a sua intrusa guarnição!
A França, assombrada com o feito, simulara indiferença, não reconhecendo, na reocupação portuguesa da sua cobiçada posição estratégica, motivo bastante de casus belli, para sustar a sua decantada amizade a Portugal... Pelo contrário, entendeu que a devia robustecer e afervorar, porque, naquele mesmo ano da sua derrota no Brasil, enviava a Lisboa, onde arribou em 10 de Agosto de 1560, uma brilhante esquadra, chefiada pelo seu mais alto e categorizado almirante, Francisco de Lorena, Grão Prior de França e duque de Guise, irmão dos poderosos cardiais de Lorena e de Guise.
François de Lorraine, Ier Duc de Guise
E os franceses e portugueses, esquecidos então dos mútuos agravos, rejubilaram perante aquela ostensiva manifestação de inequívoco bom entendimento.
No meado de Maio de 1561 soube-se em Lisboa que, já perto do cabo de S. Vicente, haviam sido apresadas pelos franceses duas caravelas portuguesas, vindas da Madeira, donde traziam, sobretudo, açúcar, carga tomada por aqueles corsários.
Explodiram logo as imprecações em Lisboa, os propósitos de revoltada, de implacável represália sobre os navios franceses. Estes, receiosos da revindita, alegavam que as duas caravelas portuguesas haviam sido saqueadas, não por franceses mas só pelos piratas britânicos: (... .la Royne - refere o aludido manuscrito - entra en sy grande colere que exclamant contre les françois, comme s'ils eussent faict ces pilleries...). Fossem ou não, desta vez, justas as acusações, o que é certo é que foram os franceses alvo da enérgica represália.
Em 21 de Maio de 1561, pelas 8 horas da manhã, surgia e fundeava na baía de Cascais um navio mercante francês, sob o comando do capitão Bastian de Lyard, que vinha de Sevilha, carregado de mercadorias do Peru, algumas das quais, 27 fardos, pretendia desembarcar e negociar em Lisboa.
Foram dadas ordens imediatas para o sequestro do navio francês em Cascais, em cuja baía fundeava, pouco depois, pela 4 horas da tarde, uma nau portuguesa, artilhada («une zabre equipée en guerre, relata o referido documento), comandada pelo capitão Diego Nunes, que logo deteve e embargou o navio francês, a sua tripulação e mercadorias, porque declarara ter instruções, precisas e categóricas, da Regente D. Catarina para apresar todas as embarcações francesas que entrassem na barra, fazendo-as conduzir para a Ribeira das Naus.
No dia imediato, 22 de Maio, ainda no porto de Cascais, pelas 10 horas da manhã, mandara o capitão Nunes arrear o velame do navio sequestrado, sendo rebocado para o ancoradouro do Terreiro do Paço da Ribeira.
O arrogante capitão francês recalcitrou, enfurecido de raiva, sendo então espancado “à coups de baston”.
Depois, havendo já ancorado o apresado navio, “vis à vis du Palais du Roy”, ocorreu um lamentável e sangrento incidente: a tripulação francesa, amotinada, em alarido, vociferava doestos contra o capitão português, manifestação energicamente dominada com uns tiros de canhão.
Para cúmulo de fatalidade, ou de nervosismo na rápida manobra, um tiro foi estilhaçar o mastro grande do navio apresado, e outro fora atingir a coxa direita e a perna esquerda do desventurado capitão Lyard, que morria instantes depois.
A Rainha D. Catarina, contristada pelo trágico incidente, ordenou que se procedesse à respectiva devassa sobre as causas da ocorrência e, depois, condoída da precária sorte em que ficaria a viúva do falecido Lyard, com seis órfãos, pequenos, mandou entregar-lhe avultada quantia em cruzados.
Um exemplo apenas daquela tão exaltada, mas assomadiça amisade franco-portuguesa do século XVI, dessa esplendorosa época do nosso celebrado poderio ultramarino.
Lisboa, Março de 1937
C. da CUNHA COUTINHO
in Boletim Cultural e Estatístico da Câmara Municipal de Lisboa
[1]- Manuel Francisco de Barros e Sousa de Mesquita de Macedo Leitão e Carvalhosa, Visconde de Santarém, historiador, diplomata, político. Ver, p. ex., em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Manuel_Francisco_de_Barros_e_Sousa_de_Mesquita_de_Macedo_Leit%C3%A3o_e_Carvalhosa
[2] - 3° Governador do Brasil