REVISITANDO SALAZAR
Fascista ou democrata?
Austero ou avaro?
Calculista ou aventureiro?
Generoso ou egoísta?
Impoluto ou corrupto?
Todas estas alternativas (por esta ou por qualquer outra ordem) me ocorrem quando penso em Salazar. Não tanto por ele mas sobretudo pelo resultado das suas políticas; não tanto por ele mas sobretudo pelo tempo que construiu; não tanto pelo que ele possa ter sido mas sobretudo pelo que a «vox populi» dele diz.
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O meu ilustre primo Luís Soares de Oliveira, Embaixador, defende a tese de que, dentro da moral cristã, o Doutor Salazar perfilhava a via agostiniana e eu espero ansiosamente pelo seu texto «Epifania de Salazar» para conhecer os fundamentos dessa tese. Não é questão menor e creio que poderá esclarecer muitas questões ainda hoje enigmáticas. Aguardemos, pois.
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DAS POLÍTICAS PERENES
Professor de Direito, distinguiu-se pela determinação de construir um Estado que se desse ao respeito depois de sucessivas crises políticas e financeiras ao longo dos finais do regime monárquico e da primeira República. Chamado por Carmona ao exercício efectivo do Poder, não hesitou em ditar as regras que passariam a reger a gestão financeira do Estado. A gestão da tesouraria, sobretudo. E porque homens sérios tinham sido cilindrados pelas arruaças e quezílias de variado calibre, muniu-se de um «escudo invisível» que lhe permitisse «arrumar a casa» sem atropelos.
Assim foi que, para além da chefia do Governo, Salazar assumiu a pasta das Finanças e foi ao MI6 buscar quem lá prestava serviço há 15 anos, o Capitão Agostinho Lourenço que passou a dirigir a Polícia de Vigilância e Segurança do Estado, a PVDE, que mais tarde foi redenominada PIDE.
Eis a génese de duas das políticas mais perenes de Salazar:
- Prioridade absoluta do equilíbrio das finanças públicas sobre todos e quaisquer apelos de desenvolvimento;
- Imposição da tranquilidade na ordem pública pela contenção dos democratas republicanos e neutralização de todas as vias fascizantes de direita (Rolão Preto) ou de esquerda (os comunistas).
CONCLUSÃO – A perenidade destas políticas definiu todo o Consulado Salazarista mas ligou a então chamada «situação» ao imobilismo.
- DO FASCISMO
Salazar nunca disse ser democrata e teve todo o seu Consulado para o demonstrar mas também não era fascista pois governava dentro de um quadro legal de grande estabilidade, do conhecimento público, obrigatório (o desconhecimento da Lei não isenta o infractor do seu cumprimento) e de aplicação universal no espaço nacional. Um Estado de Direito, sem dúvida, mas que era o seu: autocrático e de inspiração cristã. Nada a ver com fascismo que é a governação ao sabor do capricho do ditador[i].
CONCLUSÃO – Salazar era um autocrata que nada tinha a ver com fascismo.
- DA AUSTERIDADE
Anacoreta, apologista da sua própria pobreza pessoal (não lhe eram conhecidos outros rendimentos para além do vencimento público) e sem grande vida de sociedade para além das relações previstas pelo Protocolo de Estado, era sabido que tanto podia estar a descansar (com humor, dizia-se que «o Senhor Presidente do Conselho descansa, não dorme como o vulgar cidadão») às quatro da tarde como estar a trabalhar às quatro da manhã e, de vez em quando, reunia o Conselho de Ministros. No dia seguinte, os jornais noticiavam que «Ontem, reuniu o Conselho de Ministros que tratou de assuntos da sua competência». Mas o normal era a dos ministros irem a despacho com Salazar sempre que disso necessitavam ou sempre que eram chamados. Para além dessa normalidade, havia uma outra rotina com alguém que não era ministro: o Capitão Agostinho Lourenço (Jimmy, nome de código no MI6) era recebido semanalmente para despachar «assuntos da sua competência». Mas deste, os jornais nada diziam. Hermetismo informativo e laconismo que bastava para fingir que «não se passava cavaco ao povo». Salazar era o pivot da governação, a coordenação governativa não saía da sua própria cabeça. Cada ministro geria o seu Ministério com o orçamento possível e, de preferência, que sobrassem verbas. E só muito raramente essas sobras passavam para o exercício seguinte (obras plurianuais).
CONCLUSÃO – Claríssima austeridade na gestão dos dinheiros públicos com entesouramento acumulativo no longo prazo; apologia da sua pobreza pessoal.
- DO CALCULISMO E DA AVENTURA
Ficou célebre a sua frase proferida em 27 de Abril de 1928 aquando da tomada de posse como Ministro das Finanças do Governo da Ditadura (militar): «Sei muito bem o que quero e para onde vou». O andamento da História confirmou o conteúdo desta frase no que se refere à política interna que a partir de 1933 ele controlou através do seu «Serviço de Informações» dirigido por Jimmy, o tal homem do MI6. Mas se deste modo, o controlo da situação interna lhe permitia ser calculista, na cena internacional não podia deixar de recorrer a alguma navegação às escuras. E, aí, não controlando as cartas do baralho, teve que se socorrer de «padrinhos» (os Aliados durante a guerra de 39-45) perante quem demonstrou grande ousadia raiando mesmo o aventureirismo. É disso exemplo o encontro com Franco em Sevilha em 1942.
CONCLUSÃO – Calculista na política interna, ousado-aventureiro na política externa.
- DA GENEROSIDADE E DO EGOISMO
Conta o Professor Adriano Moreira que certa vez chegou mais cedo do que o previsto ao forte de S. João do Estoril onde Salazar veraneava e que vislumbrou o Presidente do Conselho em oração na capela e a dispor a seu jeito as alfaias litúrgicas. O visitante esperou no exterior da capela que Salazar concluísse os seus trâmites de intimidade. Esta, sim, a relação que Salazar presava, com a Divindade; com os humanos era exigente perante os desígnios que ele próprio traçara para a Pátria. A generosidade e o egoísmo só têm cabimento no âmbito das relações sociais pelo que, limitadas estas à actividade inerente às suas funções oficiais, não é possível saber se Salazar era generoso ou egoísta.
CONCLUSÃO – É admissível que Salazar fosse generoso com a Divindade mas era claramente exigente com os humanos (não necessariamente egoísta).
- DA CORRUPÇÃO
É com toda a tranquilidade que refiro a unanimidade entre salazaristas e anti-salazaristas quanto à condição impoluta do Doutor Salazar. É sobretudo desta característica que ressurge o prestígio que muitos portugueses hoje lhe atribuem como Homem de Estado.
CONCLUSÃO – Salazar era impoluto.
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Passo com total desinteresse ao largo da vida doméstica na residência oficial de S. Bento. Não me interessa saber quem lavava a roupa interior de Salazar e creio que a celebérrima D. Maria era politicamente acéfala e só se interessava pelos «arrozinhos» e nabiças que o Senhor Presidente comia.
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O actual prestígio de Salazar – passados que são 50 anos sobre a sua morte – tem muito a ver com a sua condição impoluta quando posta em contraste com as desconfianças que hoje correm por aí… mas também porque muitos dos neo-salazaristas não viveram naquela época nem se preocupam com uma análise menos simplista das suas políticas.
As minhas críticas assentam nomeadamente no que segue:
- Uma anacrónica (absurda no séc. XX) estrutura corporativa que tapava os problemas em vez de os resolver;
- Uma política de entesouramento com prejuízo do desenvolvimento;
- Uma política elitista de educação que nos fez suportar muito para além do seu Consulado elevadas taxas de analfabetismo, de impreparação cívica e profissional;
- Uma política ultramarina avessa ao desenvolvimento intelectual e cívico das populações independentemente do grau de concentração da melanina – o terrível «Estatuto Ultramarino» de 1953 que só foi tardia e parcialmente corrigido em 1961.
E não refiro detalhes nem consequências pois quem me lê não espera nem carece de explicações.
De tudo, estou em admitir que…
- Se Salazar tivesse saído do exercício do poder lá por 1947/8, o país estaria hoje cheio de monumentos em sua memória;
- Está na hora de, sem mais complexos nem medo de fantasmas, se lhe prestar alguma homenagem na sua terra natal, Santa Comba Dão.
Setembro de 2021
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Perdi a referência em que Dino Grandi terá dito a um jornalista algo como: «Fascisno é a prodigiosa capacidade de improviso do Duce».