REPETINDO A HISTÓRIA
Corria o ano de 1222 quando o Irmão António, franciscano, foi colocado no Eremitério de Montepaolo (próximo de Forli, Itália) e passou a celebrar Missa para os irmãos leigos ali residentes.
Certo dia de 1223, reuniram-se em Forli inúmeros frades franciscanos e dominicanos para receberem a ordenação sendo que António estava presente apenas como acompanhante do seu provincial. A certo momento, concluiu-se que ninguém fora indigitado para fazer a Homilia e o provincial franciscano convidou o superior dominicano ali presente para indigitar algum dos seus para fazer a prática. Mas todos declinaram dizendo que não estavam preparados. Na emergência, coube a indigitação a António a quem todos julgavam apenas capaz de ler o Missal e o Breviário. Foi-lhe assim ordenado que dissesse o que o Espírito de Deus pusesse na sua boca.
António começou por falar lenta e timidamente mas depressa se entusiasmou e passou a explicar os mais recônditos significados das Santas Escrituras com tal erudição, profundidade e de tão sublime doutrina que todos os presentes se encheram de espanto. Aquele, o momento em que começou a carreira pública de António.
Informado da ocorrência, S. Francisco dirigiu-lhe a seguinte carta:
Ao Irmão António, meu Bispo (i.e. Professor de Ciências Sagradas), o Irmão Francisco envia as suas saudações. Será do meu agrado que vós ensinais Teologia à nossa irmandade considerando, contudo, que o espírito de oração e devoção não se extinga. Adeus. (1224)
Seguiu-se o ensino em Bolonha, Montpellier e Toulouse… até que hoje o reconhecemos como Santo António.
* * *
Correndo o ano de 2018, o Papa Francisco nomeou o Padre José Tolentino Mendonça para dirigir os exercícios espirituais durante uma semana por altura da Quaresma em que se retirariam ele próprio, o Papa, com toda a Cúria Romana.
E reuniram.
Concluídos os trabalhos, escreveu o Papa a seguinte carta:
Reverendo José Tolentino Mendonça,
Na conclusão dos Exercícios Espirituais, que assinalaram o início da Quaresma, desejo exprimir-lhe, querido irmão, o meu reconhecimento pelo generoso serviço que me prestou, a mim e aos meus colaboradores da Cúria Romana. Recorrendo à sabedoria do Evangelho, bem como à sua preparação teológica, à inspiração poética e à sua experiência pastoral e pessoal, conduziu-nos a reflectir sobre um dos desafios mais urgentes para a Igreja de hoje: recolocar-se a sede de Jesus no centro do coração pulsante do cristianismo. Apreciámos muito particularmente as suas sugestivas referências à sede da humanidade, que é semelhante àquela da qual Jesus falou na cruz.
Viemos para estes Exercícios com o vivo desejo de compreender o que Deus quer dizer a cada um de nós, neste tempo de Graça. Sentíamos a necessidade de nos alimentarmos da Palavra de Deus para conformar sempre mais a nossa vida à Sua vontade. E o Senhor mais uma vez surpreendeu-nos. Redescobrimos que Deus não é apenas uma invisibilidade mas que, em Jesus, Deus tornou-se próximo de nós: é a nós que cabe agora abrirmo-nos a esta proximidade. Experimentámos, além disso, que os braços de Deus permanecem abertos, que a sua paciência espera por nós sempre para nos curar com o Seu perdão e nos alimentar com a Sua bondade e a Sua graça.
Este caminho espiritual foi favorecido por si, que nos ajudou a sentirmo-nos procurados pela sede de Jesus, que não é uma sede de água mas é maior: é sede de alcançar as nossas sedes, de entrar em contacto com as nossas feridas. As profundas meditações, partindo do dado exegético, abriram-nos ao mundo contemporâneo através das referências literárias, poéticas e ligadas a acontecimentos da actualidade. Por isso, estes dias de recolhimento e de oração encorajaram-nos a ver a necessidade de sermos testemunhas credíveis do amor que Deus tem por cada criatura, apoiando com a nossa missão a sede de quantos – especialmente os pobres – nos pede: «Dá-me de beber».
Renovando os mais sinceros agradecimentos, também em nome de quantos beneficiaram das suas belas meditações, peço-lhe que reze por mim e, enquanto o confio a si e ao seu ministério à materna protecção da Vigem Maria, de coração lhe concedo a Bênção Apostólica.
Do Vaticano, 23 de Fevereiro de 2018,
Franciscus
In «Elogio da Sede», José Tolentino Mendonça, ed. QUETZAL, 1ª edição, Maio de 2018, pág. 11 e seg.
Seguiu-se a nomeação do Padre Tolentino como Director da Biblioteca Vaticana (onde se encontram os Arquivos Secretos) e a elevação a titular da Arquidiocese de Suava.
Até porque…
A cultura documenta o que somos [e] espelha e potencia as grandes buscas interiores, o contacto com as grandes perguntas, a vizinhança das razões maiores que funcionam como patamares do caminho a que a nossa humanidade vai chegando, a proximidade daquele vastíssimo e inconsútil silêncio que, porventura ainda melhor do que a palavra, exprime em nós o mistério do Ser.
José Tolentino Mendonça, Arcebispo de Suava
In entrevista à Agência Ecclesia citada pelo Expresso em 26 de Junho de 2018
A História repete-se ou assim quase parece.
28 de Junho de 2018
Henrique Salles da Fonseca