RATZINGER E FÁTIMA
Do terceiro «segredo» de Fátima…
- Não é revelado nenhum grande mistério; o véu do futuro não é rasgado.
Da visão…
- Serão talvez apenas projecções do mundo interior de crianças, crescidas num ambiente de profunda piedade, mas simultaneamente assustadas pelas tempestades que ameaçavam o seu tempo.
Das revelações…
- A doutrina da Igreja distingue «revelação pública» e «revelações privadas»;
- A «revelação pública» (…) é o Antigo e o Novo Testamento;
- A «revelação privada» aplica-se a todas as visões e revelações verificadas depois da conclusão do Novo Testamento. O seu papel não é (...) “completar” a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente numa determinada época da história.
Das autoridades (credibilidades)…
- A autoridade das revelações privadas é essencialmente diversa da única revelação pública [onde] é o próprio Deus que nos fala;
- A revelação privada (…) manifesta-se credível porque faz apelo à única revelação pública;
- Às revelações [privadas] aprovadas não é devida uma adesão de fé católica; estas revelações requerem, antes, uma adesão de fé humana ditada pelas regras da prudência, que no-las apresentam como prováveis e religiosamente credíveis;
- É uma ajuda que é oferecida, mas não é obrigatório fazer uso dela;
- O critério para medir a verdade e o valor duma revelação privada é a sua orientação para o próprio Cristo; quando se afasta d'Ele, quando se torna autónoma ou até se faz passar por outro desígnio de salvação, melhor e mais importante que o Evangelho, então ela certamente não provém do Espírito Santo;
- Frequentemente, as revelações privadas provêm da piedade popular e nela se reflectem.
Das profecias…
- No sentido da Bíblia, [a profecia] não significa predizer o futuro, mas aplicar a vontade de Deus ao tempo presente e consequentemente mostrar o recto caminho do futuro;
- A predição do futuro tem uma importância secundária;
- Nas revelações [profecias] de Fátima, trata-se disto mesmo: ajudar-nos a compreender os sinais do tempo e a encontrar na fé a justa resposta para os mesmos.
Das visões…
- Não eram captadas por todos os presentes mas apenas pelos «videntes»;
- Trata-se (…) da percepção interior que, para o vidente, tem uma força de presença tal que equivale à manifestação externa sensível;
- Este «ver interiormente» não significa que se trata de fantasia, que seria apenas uma expressão da imaginação subjectiva. Significa, antes, que a alma recebe o toque suave de algo real mas que está para além do sensível, tornando-a capaz de ver o não-sensível, o não-visível aos sentidos: uma visão através dos «sentidos internos»;
- Os destinatários preferidos de tais aparições [são] as crianças: a sua alma ainda está pouco alterada e quase intacta a sua capacidade interior de percepção;
- Se na visão exterior já interfere o elemento subjectivo, isto é, não vemos o objecto puro mas este chega-nos através do filtro dos nossos sentidos que têm de operar um processo de tradução, na visão interior isso é ainda mais claro, sobretudo quando se trata de realidades que por si mesmas ultrapassam o nosso horizonte;
- O vidente (…) vê segundo as próprias capacidades concretas, com as modalidades de representação e conhecimento que lhe são acessíveis. (…) Tais visões não são em caso algum a «fotografia» pura e simples do Além, mas trazem consigo também as possibilidades e limitações do sujeito que as apreende;
- As imagens delineadas [pelos pastorinhos] são (…) fruto duma percepção real de origem superior e íntima; nem se hão-de imaginar como se por um instante se tivesse erguido a ponta do véu do Além, aparecendo o Céu na sua essencialidade pura, como esperamos vê-lo na união definitiva com Deus. (…) As imagens são uma síntese entre o impulso vindo do Alto e as possibilidades disponíveis para o efeito por parte do sujeito que as recebe, isto é, das crianças.
Interpretando o «segredo» de Fátima…
- Os pastorinhos experimentaram uma visão do inferno. Viram a queda das «almas dos pobres pecadores». Em seguida, foi-lhes dito o motivo pelo qual tiveram de passar por esse instante: para «salvá-las», para mostrar um caminho de salvação.
- O futuro não está de forma alguma determinado imutavelmente e a imagem vista pelos pastorinhos não é, absolutamente, um filme antecipado do futuro, do qual já nada se poderia mudar;
- O seu sentido é mobilizar as forças da mudança em bem. Por isso, há que considerar completamente extraviadas aquelas explicações fatalistas do «segredo» que dizem, por exemplo, que o autor do atentado de 13 de Maio de 1981 teria sido, em última análise, um instrumento do plano divino predisposto pela Providência e, por conseguinte, não poderia ter agido livremente, ou outras ideias semelhantes que por aí andam. A visão fala sobretudo de perigos e do caminho para se salvar deles;
- O caminho da Igreja é descrito como uma Via Sacra, como um caminho num tempo de violência, destruições e perseguições;
- Na visão, podemos reconhecer o século vinte como o dos mártires, como o dos sofrimentos e perseguições à Igreja, como o das guerras mundiais e de muitas guerras locais que ocuparam toda a segunda metade do mesmo, tendo feito experimentar novas formas de crueldade;
- Uma frase da carta que a Irmã Lúcia escreveu ao Santo Padre no dia 12 de Maio de 1982: «A terceira parte do “segredo” refere-se às palavras de Nossa Senhora: “Se não, [a Rússia] espalhará os seus erros pelo mundo promovendo guerras e perseguições à Igreja. Os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas”»;
- Não existe um destino imutável, [dado] que a fé e a oração são forças que podem influir na história e que, em última análise, a oração é mais forte que as balas, a fé mais poderosa que os exércitos;
- A conclusão do «segredo» lembra imagens, que Lúcia pode ter visto em livros de piedade e cujo conteúdo deriva de antigas intuições de fé;
- A visão da terceira parte do «segredo», tão angustiante ao início, termina numa imagem de esperança: nenhum sofrimento é vão e, precisamente uma Igreja sofredora, uma Igreja dos mártires, torna-se sinal indicador para o homem na sua busca de Deus. Não se trata apenas de ver os que sofrem acolhidos na mão amorosa de Deus como Lázaro, que encontrou a grande consolação e misteriosamente representa Cristo, que por nós Se quis fazer o pobre Lázaro; mas há algo mais: do sofrimento das testemunhas deriva uma força de purificação e renovamento, porque é a actualização do próprio sofrimento de Cristo e transmite ao tempo presente a sua eficácia salvífica;
- PERGUNTA: O que significa o «segredo» de Fátima?
– RESPOSTA: Os acontecimentos a que faz referência a terceira parte do “segredo” de Fátima parece pertencerem já ao passado»; quem estava à espera de impressionantes revelações apocalípticas sobre o fim do mundo ou sobre o futuro desenrolar da história, deve ficar desiludido; o que permanece é a exortação à oração como caminho para a «salvação das almas» e, no mesmo sentido, o apelo à penitência e à conversão; desde que Deus passou a ter um coração humano e deste modo orientou a liberdade do homem para o bem, para Deus, a liberdade para o mal deixou de ter a última palavra.
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Eis o que Joseph Card. Ratzinger, então Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, afirmava em 2000 (documento não datado) no seu Comentário Teológico especial e que pode ser lido integralmente em
e que eu aqui resumi por transcrições sucessivas numa selecção que, espero bem, não lhe tenha deturpado o sentido.
Parece-me que o então futuro Papa Bento XVI tratava Fátima com algum racionalismo académico, especialmente erudito, afastando-se do fervor típico da fé popular que tem aquele santuário como «oráculo mariano».
Mas isto é apenas o que me parece…
Novembro de 2018
Henrique Salles da Fonseca
(2015, à porta do Seminário de Rachol, Goa)