PRATOS LIMPOS – II
AS RECAÍDAS DO SNS
Um dos factos mais intrigantes - e que melhor caracteriza a ineficiência da gestão dos fornecedores (e das tesourarias) no âmbito do SNS - é a regularidade (diria mesmo, a fatalidade) com que as estimativas da dívida vencida que servem de base às grandes operações de saneamento financeiro são, de imediato, ultrapassadas (amplamente ultrapassadas, até) no exacto momento em que tais operações são decididas. Como se o anúncio da decisão desencadeasse, de modo absolutamente inesperado, um surto de morbidade a reclamar cuidados hospitalares urgentes, extensos e anormalmente custosos.
Tem sido assim, já lá vão 30 anos. Os fornecedores a refilarem, os administradores hospitalares a queixarem-se, quando as dívidas acumuladas dos hospitais ultrapassam a fasquia dos € 500 milhões (100 milhões de contos, em tempos idos) – e o Governo a fazer-se desentendido. Os dias passam, a dívida inevitavelmente cresce, fornecedores e administradores tornam-se mais vocais, começam a falar das suas desgraças em público – e o Governo a jurar que são exageros, pois está tudo sob controlo. E, entretanto, a barreira dos € 1.0 mil milhões (200 milhões de contos, de antigamente) a aproximar-se… Até que, uma vez transposta tal barreira, quando a ruptura das tesourarias hospitalares está logo ali, ao virar da esquina, vem o Governo anunciar, ufano, que, com enorme sacrifício próprio, lá encontrou € 1.2 mil milhões para pôr a casa finalmente (e, nas entrelinhas, dá a entender que definitivamente) em ordem. Azar: as dívidas reclamadas já excedem largamente aquele montante (€ 1.5 mil milhões talvez não cheguem). Duplo azar: quando a verba se esgota, ficam sempre fornecedores a lamentarem-se que nada receberam. Como é isto possível?
A explicação é bem banal – e nada tem a ver com epidemias súbitas. Em todas as operações de saneamento que têm sido levadas a efeito desde os anos ’90 concorrem, sem excepção, duas circunstâncias:
- Como os fornecimentos ao SNS são passíveis de IVA, e como o Estado que fica a dever a quem lhe fornece é o mesmo Estado que exige o pontual pagamento do IVA liquidado – a solução em que convêm hospitais e seus fornecedores (para que, uns continuem a dispôr dos medicamentos, fármacos e materiais de que necessitam, e os outros não fiquem expostos a insustentáveis pressões de tesouraria) é simples (e óbvia): fornecer sem facturar, para não haver lugar a liquidação do IVA e a eventual incumprimento fiscal. As facturas retidas, essas, surgirão à luz do dia logo que haja a certeza de que vão ser pagas daí a pouco.
- Como alguns fornecimentos são essenciais à normal actividade hospitalar, fornecedores com maior poder negocial conseguem impôr, naqueles períodos em que se verifica algum desafogo financeiro, e à custa dos demais, a facturação antecipada, umas vezes paga no acto, outras garantida pela cativação de parte da verba a tanto custo orçamentada. Por isso, todas estas operações de saneamento financeiro têm sempre o mesmo epílogo: dívidas há muito vencidas que ficam por pagar.
Compreende-se que, ciente deste historial, o Ministro das Finanças queira pôr tudo em pratos limpos antes de libertar os € 500 milhões que destinou para pagamento de dívidas do SNS. Mas não é com auditorias que evita a repetição destes episódios - não é assim que evitará futuras recaídas.
O que tudo isto ilustra bem é que:
- O SNS desconhece, em cada momento, qual o montante total das suas efectivas responsabilidades perante os fornecedores, o que o torna dificilmente governável, no plano financeiro;
- O SNS ignora os prazos de pagamento habitualmente praticados por cada fornecedor, tal como ignora as razões que estão subjacentes a quaisquer disparidades de tratamento, por aqui e por ali;
- Reside no própro SNS a causa da selecção adversa de fornecedores, e da consequente cartelização “de facto”, em benefício daqueles que disponham de maior capacidade financeira e em prejuízo do equilíbrio financeiro do sistema;
- O SNS não dispõe, para efeitos de orçamentação e controlo, de um indicador coincidente (porque em tempo real) da actividade desenvolvida por cada estabelecimento hospitalar – precisamente, a evolução temporal das aquisições;
- Nestas condições, a regular prestação de contas será sempre um exercício levado a efeito com bastante atraso relativamente aos actos de gestão que estejam a ser apreciados.Pague-se, então, o que for possível - que daqui a 2-3 anos teremos voltado ao mesmo.
Março de 2018
António Palhinha MACHADO