POR TORDESILHAS ALÉM… - 6
Desde os meus tempos de recruta em Abril de 1970 que não andava tanto a pé como neste dia de visita a Cartagena de las Índias e, acabado o circuito do op on-op off, deixaram-nos propositadamente longe do ponto de embarque para que atravessássemos um parque com flores e animais. Bonito, sem dúvida, mas eu já só ambicionava uma chaise longue ou coisa equivalente. Fui direito à varanda do nosso camarote, sentei-me confortavelmente e por ali fiquei a pensar na fatalidade da jovem cornúpeta até serem horas de nos arranjar mos para o jantar.
E o que me disse a bezerra antes de se finar?
Disse-me ela que espanhóis e portugueses tivemos posições muito diferentes de estar no mundo. Nós, portugueses, tivemos grandes Senhores à frente da epopeia dos descobrimentos, muitos deles, segundo consta, de tradição templária; dos conquistadores espanhóis se diz que eram gente a contas com a Justiça que pelo degredo da conquista de novas terras para a Coroa, obtinham o perdão real. Daqui resultaram atitudes diferentes no contacto com os povos indígenas de tal modo que nós, portugueses, fomos os primeiros a ir e os últimos a voltar; os espanhóis, não. Nós, portugueses, não fomos nenhuns «santinhos» mas sempre houve a preocupação de seguir uma conduta a que hoje chamamos Estado de Direito; os espanhóis parece que primaram pela chacina. Nós, portugueses, suportámos a Inquisição por pressão espanhola; os espanhóis inventaram-na. Finalmente, a bezerra lembrou-me que nós, portugueses, fizemos muito mais mulatos do que os espanhóis e que esse poderá ter sido o segredo de alcova que fez perdurar o nosso Império. E tudo isto, afinal, sem termos sido nenhuns «santinhos». Foi também nesta altura que me lembrei daquele angolano preto, mecânico de aviões na delegação das OGMA em Luanda que a certa altura emigrou para o Congo ex-belga onde ia ganhar muito melhor vencimento mas que, passado um ano, regressou a Angola e às funções anteriores. Perguntado por que regressara, respondeu: - Eles lá pagavam bem mas tratavam-me como preto; aqui, Vocês pagam mal mas tratam-me como pessoa.
E o navio apitou três vezes e acordou-me desta modorra de final de dia culturalmente rico mas fisicamente muito cansativo. Deixámo-nos ficar na varanda a ver o barco dos Pilotos da barra ao nosso lado, vimos os prédios altíssimos até junto do farol no extremo da restinga que separa o mar da baía interior e… aí está o balancé novamente. Contudo, uma mudança de rumo e o mar deixou de vir de lado e passou a vir de frente. O balancé foi substituído por uma sucessão sucessiva de «sobe e desces» suaves de que eu gosto mas no que não sou acompanhado por muita gente. Uma nota final neste tema: a minha mulher e eu não sabemos o que é enjoar.
Arranjámo-nos e fomos jantar. À porta do restaurante no deck 4 já estavam os nossos amigos e companheiros de viagens longas e de médio curso (Turquia, périplo marítimo da Austrália, Índia, Sri Lanka, Vietname, Camboja) e voltámos às subtilezas gustativas. A bordo come-se demais pelo que, frequentemente, saltamos um prato. Neste cruzeiro fixámo-nos num vinho tinto tempranillo da Rioja «Marquez de ???» em que uma garrafa era mais do que suficiente para nós os quatro e sobrava sempre uma pinga para quem nos servia. De seguida, espectáculo de variedades no teatro (assistimos a uma recriação formidável dos Abba) e, depois, recolha a quartéis. A vida a bordo continua pelos bares e discoteca até quase ao raiar do dia mas esse não é o nosso estilo.
E, de onda em onda, lá vamos rumo à Jamaica, a terra da madeira e da água, da abundância.
Amanhã há mais se Neptuno quiser.
(continua)
Março de 2020
Henrique Salles da Fonseca