POR TORDESILHAS ALÉM… - 4
Dia de embarque no «Monarch» até às 6 da tarde para zarparmos pelas 7.
Do nosso programa de viagem fazia parte meio dia de descanso antes de embarcarmos para que a vida a bordo decorresse com total adaptação ao fuso horário de menos 5 horas que em Lisboa. A visita ao Canal e a Portobello era programa de dia inteiro, não podia ser encaixado depois da adaptação horária. Há quem se adapte aos fusos a dormir e há quem apenas se sente a «passar pelas brasas» e «a pensar na morte da bezerra». Habitualmente, opto por esta segunda modalidade.
Reduzida a força do ar condicionado para não parecer que estávamos no Alaska ou na Terra do Fogo[i], dediquei-me a pensar onde comprar um chapéu panamá para substituir os que tenho e já estão a precisar de reforma. No hotel não havia uma loja que vendesse chapéus para carecas nem pilosos e no resto da cidade não nos demos ao trabalho de procurar. Até porque o chapéu panamá é feito no Equador e não no Panamá. Como assim? Pois é assim mesmo! O dito chapéu é feito de uma palha que cresce no Equador e é tecida em trama fechada. O nome do chapéu na origem é El Fino e, naturalmente, não invoca o país estrangeiro. O nome internacional do chapéu resulta de o Presidente americano Theodore Roosevelt ter usado um desses chapéus quando em 1906 visitou as obras do Canal do Panamá e, daí, a associação de ideias.
Muito esquece quem não sabe.
Passado suficientemente pelas brasas, transferi-me para o tema da fatalidade da bezerra que, na altura, foi a questão de na América Latina os castelhanófonos não se tutuiarem à maneira espanhola e se vocêzarem. Pois é, não se tratam por «tu» mas sim por «Você». E fiquei a pensar até que me dissessem serem horas de me arranjar para irmos embora do hotel e embarcarmos. E, então, conclui que…
… o Rei de Espanha trata por «tu» todos os seus súbditos e estes – apesar de Filipe II ter decretado que todo o espanhol é nobre com direito a «Dom» e «Dona» - sentem-se em igualdade na submissão e tutuiam-se mutuamente. Trata-se da assunção duma condição que gera solidariedade ao estilo castrense de «todos somos carne para o canhão real» ou, pior, uma servus coniunctionis[ii]. Então, donde vem a famosa jovialidade e euforia típicas dos espanhóis? Nuns casos, digo eu, virá da condição genética, noutros casos da ignorância e noutros ainda do «apesar de…».
Na América Latina de expressão castelhana, aos conquistadores seguiram-se os bolivarianos e, daí, uma solidariedade libertária, republicana, de cidadãos e não mais de súbditos. Talvez que alguma influência da trilogia revolucionária da «liberdade, igualdade, fraternidade» que, treslida, gerou a liberdade de, em igualdade, explorarem as oportunidades. Ou seja, o império da corrupção, do desmando e da brutalidade. Mas as aparências são para manter e todos são Señores, todos se tratam por Usted.
Triste sorte a de quem por ali nasce sério.
- Henrique! Acorde que são horas de nos arranjarmos e irmos para o barco!
Embarcámos pelas 4,30 da tarde, instalámo-nos e zarpámos pelas 7 rumo a Cartagena de las Índias, Colômbia, onde aportaríamos pela manhãzinha seguinte.
Noite com algum balancé mas nada de preocupante. O «Movarch» tem praticamente 74 mil toneladas, não é propriamente um cacilheiro.
(continua)
Março de 2020
Henrique Salles da Fonseca
[i] - Onde tivemos que fechar o aquecimento e abrir um pouco a janela sobranceira ao Canal Beagle
[ii] - Solidariedade servil
