POR ESSA PICADA ALÉM… - 6
Saídos do Molocué, o nosso destino era o Hotel do Chuabo na avenida marginal de Quelimane. Cerca de 300 quilómetros, nada que assustasse carro valente e gente pertinaz. Tudo dependeria da qualidade das estradas já que sabíamos de antemão que alcatrão seria coisa que não encontraríamos. Mas como sabíamos também que uma parte significativa do algodão chegava ao porto de Quelimane por caminho de ferro, admitimos duas hipóteses: ou as estradas eram irrelevantes para a economia do algodão e estariam ao abandono ou o comboio não ia àquela zona da Zambézia e as estradas estariam esburacadas por causa do excesso de camiões. Ah! Gente incrédula nas virtudes dos governantes! As estradas estavam perfeitamente utilizáveis e fizemos um passeio transzambeziano de cariz turístico, nada a ver com stressantes guias de marcha militares.
Lembro-me – apesar do empilhamento dos calendários já gastos – que parámos numa cantina para o almoço em vez de comermos em andamento até porque eu sempre gostei de ter o nosso «herói» bem atestado e ali havia uma bomba de gasolina. Lembro-me que o «herói» almoçou gasolina mas do nosso almoço já não me lembro. O mais certo é ter sido o famoso «frango à cafreal» mas os meus companheiros de viagem que confirmem ou corrijam. O Xicuembo não é aqui chamado a depor, ele não almoçou.
Pelo que eu não esperava era pela continuação dos cajueiros. Não tenho dúvidas de que aquela gente não dependia apenas do trabalho nas plantações de algodão, tinha também de seu. E essa condição de proprietário dá uma dignidade à pessoa que se topa à distância. E lá pensei eu novamente que no futuro – fosse ele quando fosse, tinha então acabado a Guerra do Vietname e tudo indicava que os próximos alvos mundiais a abater seríamos nós – os comunistas teriam problemas por ali. E, passada a tal dezena de anos que já referi à saída de Nampula, repetiram-se aqui os ditos problemas com a RENAMO a «passar a perna» à FRELIMO.
E à medida que fomos descendo, fui-me lembrando dos «prazos» e das concessões às companhias majestáticas que por ali tinham existido, lembrei-me dos jesuítas que ali fizeram guerra aos «donos» dessas majestades todas à semelhança do que o Padre António Vieira fizera no Nordeste brasileiro contra os «coronéis». E lembrei-me do Padre (Diogo?) Furtado de Mendonça, jesuíta ele também, que no séc. XVIII (?) fez um dicionário sena-português e fixou a gramática dessa língua local, lembrei-me da guerra que os ingleses do açúcar («Sena Sugar» e que tais) fizeram a essa política de dignificação das gentes locais conseguindo que a Companhia de Jesus fosse então expulsa de Moçambique. Mais me lembrei de que foram os franciscanos que, combinados com as populações, esconderam os jesuítas renitentes na saída até que, ameaçados de serem também eles expulsos, se renderam à evidência de que havia negócios diplomáticos mais poderosos do que os «cordelinhos» que eles conseguiam mexer. Um dos últimos jesuítas a ser posto no cais de embarque terá sido precisamente o P. Furtado de Mendonça que embarcou num navio francês com destino ao Egipto para daí passar a pé ao Mediterrâneo e daí a Lisboa. Mas ao largo da Somália o Padre caiu à cana com o paludismo que trazia, ninguém lhe conseguiu valer e morreu. Diz quem estudou o assunto (a própria Companhia de Jesus) que do diário de bordo desse navio consta que o mar estava encapelado, que a cerimónia de entrega do corpo defunto ao mar se fez na presença de inúmeros passageiros e que no momento em que o corpo entro nas águas, o mar se acalmou de modo inexplicável. Sim, de tudo isso me fui lembrando à medida que íamos descendo a Zambézia…
Passámos ao largo de Mocuba, de Nicoadala apenas vimos as placas indicativas de direcção nos entroncamentos com a nossa estrada e entrámos na região baixa, a dos palmares. Esta, uma zona de serenidade como quem por ali anda a ouvir os côcos a crescer. Não sei quando é a faina da apanha dos côcos mas, havendo-a, não era naquela época.
E assim foi que numa penada passámos da economia do algodão para a do açúcar e finalmente para a da copra; as duas primeiras com os povos a fazerem pé de meia com o caju e na terceira com as pedras semipreciosas do aluvião que a todos por ali viu nascer.
Foi, pois, com toda a serenidade que entrámos em Quelimane e nos encaminhámos ao Hotel.
Continuemos… amanhã há mais.
Julho de 2019
Henrique Salles da Fonseca