POR CEUTA E MAIS ALÉM... (1)
Este texto foi solicitado pelo jornal «O Heraldo», de Pangim, Goa, onde aguarda publicação.
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Leão e Castela nunca viram com bons olhos a independência de Portugal e desde o bafordo do vale do Vez, de tudo têm feito para acabar com essa «rebeldia». Já do mesmo se tinham queixado os romanos relativamente aos lusitanos e tal qual se diga dos soviéticos em relação às colónias portuguesas.
À falta de dimensão local, ibérica, impunha-se o alargamento da área de influência e o inerente ganho de recursos que permitissem suportar a sempre latente necessidade de enfrentamento da agressão castelo-leonesa.
E foi assim e por essa causa que nasceu a «aventura» ultramarina portuguesa iniciada por D. João I em Ceuta no já distante dia 21 de Agosto de 1415 e com epílogo no Largo do Carmo, em Lisboa, no dia 25 de Abril de 1974.
De início, a mistificação foi pelo encapotamento da aquisição de dimensão política pelo alargamento da fé no âmbito da Cruzada do Ocidente; no final, a mistificação foi pelo encobrimento da entrega das remanescentes colónias portuguesas ao Império Soviético pela conquista das falaciosas «mais amplas liberdades».
Mas, entretanto, ocorreram «coisas» interessantes, umas, importantes, outras…
O início da «aventira» fez-se a partir de Tavira (e não de Sagres) onde em 1430 já existia o «Hospital do Espírito Santo» (ainda hoje formalmente existente) cuja principal missão consistiu na assistência a quem andava em campanha no norte de África. Mas a partir do momento em que as navegações se começaram a estender para além do Cabo Bojador, deixou de ser útil transportar os doentes para Tavira e assim foi que começou a instalação de hospitais de proximidade em relação às ocorrências que geravam necessidades de assistência clínica ou mesmo cirúrgica. E foi desse modo que foram instalados 17 hospitais entre Tavira e Baçaim cuja missão principal foi a de prestar assistência aos tripulantes e passageiros na «rota da Índia» mas também dispensando cuidados aos nativos de cada uma das ditas 17 localidades.
Assente pé em Goa e desenvolvido o comércio até então exclusivo de muçulmanos, foi fácil dar a volta até Coromandel onde se deparou a riqueza fantástica do Estreito das Pérolas e sua base logística no extremo norte do Ceilão, a Península de Jafna, ou seja, o Jafanapatão na linguagem típica dos portugueses de então. E o comércio das pérolas mudou de intermediários, no que foi um rude golpe em inúmeros interesses até então por ali estabelecidos. A missão evangelizadora foi entregue a franciscanos e jesuítas no que se revelou um processo de conversões em massa como não se esperava nem se julgava possível. Era um povo dócil que a nada opunha resistência e que os portugueses tomaram por indolência congénita. As querelas – e houve-as várias a ponto de termos sido «obrigados» a depor um Rei e a colocar outro no trono – eram instigadas por povos vindos do centro da ilha mas, a pouco e pouco, fomos nós, os portugueses a adoptar a indolência e quando os holandeses chegaram para nos tirarem o negócio das mãos, fomos evacuados de padiola e muitos morreram na viagem até Goa. Passado o tempo que a História narra, foram os holandeses que não opuseram resistência aos ingleses e estes levaram o gin que tomavam com quinino e não foram apanhados pela indolência. O preço das perolas media-se em doses letais de paludismo. Entretanto, chegáramos ao extremo sul do Ceilão em busca de mais comércio e não tardou muito para nos vermos envolvidos na política local com reinos agredidos a pedirem-nos protecção contra reinos agressores. Eis como o Rei de Candi, D. Filipe Jamasinha Bandara, nos pede protecção, nós lha dispensamos, ele assegura o trono mas morre logo de seguida de causas tidas por naturais. O filho e sucessor natural, D. João de Áustria Cândia, sendo criança, não foi confirmado no trono pelo Conselho do Reino e foi substituído pelo tio, irmão do Rei acabado de morrer. E, para aplanar problemas sucessórios no reino, foi D. Lourenço de Almeida, «o gigante loiro», filho do Vice-Rei D. Francisco de Almeida e que viria a morrer em Diu, que foi encarregado pelo Conselho de Estado de levar o não-Rei para longe. Para Goa onde a vida continuou. Mas essa é outra história…
No Sri Lanka actual, fala-se uma certa forma de português na costa leste, em Trincomalee e em Batticaloa.
Chegara, entretanto, a hora de «passar além da Taprobana», a hora de o comércio florescer entre todas as partes banhadas pelo Mar de Andaman, de o português ter passado a ser a língua franca de toda aquela vastíssima zona e de Filipe de Brito e Nicote, natural de Lisboa, ter sido eleito Rei da zona central da Birmânia, ter governado durante 12 anos com grande proveito para os seus súbditos e ter sido morto à frente das suas tropas em defesa da sua capital contra o tradicional inimigo a norte de cujo temor popular resultara a sua eleição.
Estava Portugal a braços com a Guerra da sua própria Restauração contra os Habsburdos de Espanha quando os holandeses tomaram Malaca e escravizaram os portugueses lá residentes e os deportaram para Batávia (Jakarta) com o intuito de os fazer de capatazes dos sub-escravos locais nas plantações de seringueiras, as árvores da borracha. Mas os escravos portugueses solidarizaram-se com os escravos indonésios e os holandeses não encontraram outra solução que não a de negociarem a alforria dos portugueses. Assim foi que estes reconquistaram a liberdade, ganharam um território próprio que passaram a habitar e a administrar, onde se fala português e que ainda hoje, plenamente integrado na bela malha urbana de Jakarte, continua a ser o «bairro dos portugueses», Tugu. Curiosamente, tanto em Malaca como em Jacarta ainda hoje se falam formas específicas de português enquanto que de holandês pesa a memória.
Entretanto, os comerciantes portugueses haviam navegado pelo Golfo do Sião, subido o rio Praia e feito comércio em Ayutaiah e em Bangkok. Os proveitos bilaterais desse comércio e relações de amizade levaram o Rei do Sião a oferecer ao seu «irmão», o Rei de Portugal, ali representado por Afonso de Albuquerque, um local fronteiro a Bangkok para instalação duma feitoria. As relações entre os dois países têm sido de tal modo exemplares que nesse local ainda hoje se localiza a Embaixada de Portugal junto do Rei da Tailândia.
(continua)
Henrique Salles da Fonseca