PERU – 8
AREQUIPA
Certa vez, em Lisboa, ao entrar na pastelaria em que habitualmente tomo o meu segundo pequeno almoço, vi um carro mal-estacionado a ser rebocado pela Polícia Municipal. Poucos minutos depois, ao sair da dita pastelaria, vi um outro carro a estacionar no tal lugar de que o anterior tinha sido rebocado. Porquê? Porque os sítios não transmitem a sua própria história, é necessário conhecê-la. E é a isso que me dedico com alguma militância: conhecer a história dos sítios, das pedras que pisamos.
Aqui, onde piso, quem é que já aqui pôs o pé e com que sentido o fez?
Eis o que pensei quando pisei as primeiras pedras que me foram apresentadas à entrada da «Plaza de Armas» de Arequipa.
À saída de Lima com destino a Arequipa, o vôo foi cancelado para nos lembrarmos de que estávamos em «terra de fronteira» da nossa organização civilizacional em que os direitos do consumidor são (mais ou menos) sagrados. Ali, pelos vistos, os direitos do consumidor são discutíveis se não mesmo discutidos. Mas lá seguimos no vôo seguinte. À janela, vi o que nos passava por baixo, a imponência do deserto de Atacama. Não tão bonito como o Sahara (inexcedível em matizes coloridos, sombras e luminescências) mas belo como só um deserto sabe ser. Uma particularidade: alguns lagos que não dá para adivinhar se são naturais ou artificias mas sem um mínimo de vegetação envolvente, paisagem completamente careca. Mistério que ficou por esclarecer até ao final da viagem. A aproximação da pista do aeroporto de Arequipa é quase tão «lunar» como a homóloga de El Calafate, na Patagónia argentina, no outro extremo (o do Sul) do deserto de Atacama. Terrível mas belo, «quand même».
E, pelo sopé de um vulcão, entrámos na cidade…
Perante a imponência da «Plaza de Armas» com a catedral mais do que magnífica e os seus «portales» (arcadas laterais), tudo o resto se dilui mas não se pode ir a Arequipa sem se visitar o «Convento de Santa Catalina» que, só por si, “fala” muito sobre a vida que por ali se viveu.
As filhas «más» (não casáveis) das «boas» (ricas) famílias ou as viúvas ricas sem descendência directa, pagavam para se poderem recolher ao convento onde passavam a ter uma vida austera mas em que se podiam fazer acompanhar de serviçais que lhes prestassem a assistência próxima. Assim, era fundamental fazerem-se anteceder de um vultoso dote que revertia ab initio (e sem putativa devolução no caso de desistência do ingresso) para o património do convento.
Chegaram a viver no convento mais de 400 pessoas entre religiosas e serviçais mas actualmente já só ali vivem menos de 100 freiras. E, segundo consta, não há serviçais para ninguém.
Que as Senhoras e meninas ricas para tivessem que ir com mais ou menos convicção religiosa, vá que não vá…, mas as serviçais, essas, é que eu lamento. Já era mau ter que servir em regime de quase escravatura mas, para além disso, serem «enterradas vivas», deveria ser de loucura.
Hoje, felizmente, temos a Segurança Social e amanhã vamos até ao Vale de Colca.
Outubro de 2017
Henrique Salles da Fonseca