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A bem da Nação

PÁGINAS DESCONHECIDAS DA HISTÓRIA PORTUGUESA - 3

 

 

Uma guerra ainda viva

 

Logo após o conflito, nos anos 20, os militares e a História ainda se dedicaram a tentar perceber as razões para o desastre na guerra do Norte de Moçambique. Outros fizeram-no em tom de ajuste de contas. Foi o caso do general Gomes da Costa, que em 1918 comandou a última expedição a Moçambique e teve a oportunidade de arrolar todas as omissões e de compilar uma síntese de todos os erros cometidos. Escreveu o militar que encabeçaria o golpe de 28 de Maio de 1926 sobre o estado de impreparação das missões enviadas para Moçambique: “Não se conhecem nem os recursos militares das colónias, nem os seus recursos económicos, nem a sua topografia; nem há cálculos feitos para a quantidade de víveres necessários para um dado número de homens; nem estudo da ração mais própria; nem contratos ou combinações para os fornecimentos a fazer com regularidade; nem fixação das formas de acondicionamento; nem estudo dos nossos navios para se conhecer o que cada um pode transportar em homens, animais e carga; numa palavra, nada há feito, nada se sabe, para nada serve". As campanhas em Moçambique desenrolaram-se "sem objectivo, sem plano, sem nexo, até à derrota".

 

Em 1926, uma Ordem do Exército que serviria de avaliação ao relatório do comandante da terceira expedição, o general Ferreira Gil, acentuava as responsabilidades dos políticos e desculpava os militares pelas perdas materiais e humanas e pelas derrotas. “O estudo deste período da campanha na África Oriental mais uma vez demonstra que as estações superiores não puderam ou não souberam convenientemente preparar, nem superiormente orientar a nossa intervenção militar nesse teatro de operações. Em tudo se revela uma grande desorganização, a mais completa ausência de previsão e de uma conveniente preparação, e a carência de recursos em dinheiro e em material indispensável nas campanhas coloniais, factores estes acrescidos com a falta de um plano de guerra previamente estabelecido, onde tivessem sido fixados os objectivos políticos e militares da nossa acção, como beligerantes, nesse teatro de operações. E, como se tudo isso não bastasse, foi ainda por vezes agravado com a intervenção, nem sempre oportuna, de poderes superiores aos Comandos das expedições na direcção das operações, e com o fraco apoio que, também por vezes, foi dado a estes Comandos pelo Governo central”.

 

Alguns dos soldados e oficiais que resistiram às agruras das campanhas africanas elevaram o tom das críticas, publicando as suas memórias nos anos finais da Primeira República. Na maior parte dos casos são relatos vívidos, pungentes, mais destinados a celebrar o milagre da sobrevivência do que em analisar as causas da incompetência do comando. São livros que nos falam dos hábitos dos indígenas, que relatam o sofrimento das grandes caminhadas, que descrevem os horrores da fome e da sede, que situam as bases ou os campos de batalha, que narram detalhes do quotidiano dos bivaques ou dos acampamentos dos indígenas. Há nesses relatos vontade de denunciar, mas é mais fácil encontrar palavras contra os hábitos dos negros ou contra os monhés (indianos) do que contra os oficiais ou contra os políticos.

 

Ainda que o volume de obras memorialísticas da guerra em Moçambique seja muito inferior às que se escreveram a partir da experiência na Flandres, as suas narrativas são cruciais para se perceber o que aconteceu aos cerca de 20 mil soldados que o Governo da República enviou para travar os alemães (em Angola, onde os conflitos duraram apenas entre 19 de Outubro e 18 de Dezembro de 1914, o número de praças europeias ascendeu a 13 mil). Américo Pires de Lima, um médico do Porto que se viria a destacar como professor universitário e como criador do Jardim Botânico que ainda hoje existe na Rua do Campo Alegre, deixou-nos uma ideia brutal do efeito que as doenças tropicais provocaram nas expedições baseadas em Palma e em Mocímboa da Praia, entre 1916 e 1917. Carlos Selvagem e António de Cértima relataram com detalhes a marcha pela actual Tanzânia que culminou com a conquista e abandono do forte alemão de Nevala. Cardoso Mirão, Ernesto Moreira dos Santos e José Teixeira Jacinto guardaram em texto a inenarrável odisseia da Coluna do Lago, uma viagem desnecessária de 900 km pelo interior da selva que acabou com as derrotas de Negomano e de Serra Mecula, em Novembro de 1917.

 

 

A maior parte dessas memórias foi publicada na década que se seguiu à guerra e, com excepção do livro Epopeia Maldita de António de Cértima, ainda hoje um objecto de culto para os bibliófilos, caiu depressa no esquecimento. Cardoso Mirão decidiu imprimir o seu Kináni (palavra maconde que significa “quem vem lá” ou “quem vive”) já na vigência do Estado Novo e, como seria de esperar, a obra foi censurada por instilar o “derrotismo” no país e por conter relatos considerados “desprestigiantes para o Exército Português”. O livro, emocionante, misto de tragédia e de aventura, seria publicado em 2001. A memória de Teixeira Jacinto permaneceu 70 anos guardada num invólucro de papel grosso, atado com fio do Norte, até que há três anos o seu neto Armando Jacinto, um coronel na reserva, a descobriu num baú – seria revelada em primeira mão pelo PÚBLICO em Outubro de 2011 e entretanto publicada pela Câmara Municipal de Espinho.

 

Com o Estado Novo, o processo de apagamento da memória avançou. As derrotas da Primeira Guerra em África seriam anotadas como um acidente de percurso, causado pela República jacobina, impreparada e carente de sentido patriótico. Os valores do nacionalismo ou a glória do Império coexistiam mal com as derrotas de Namoto ou Negomano. Os mitos africanistas de Mouzinho de Albuquerque não se podiam associar à tragédia de Nanguar ou da Serra Mecula. Craveiro Lopes, Presidente da República entre 1951 e 1958, foi ainda capaz de visitar alguns dos lugares do conflito em 1956, mandando recolher os restos mortais dos soldados dispersos por vários campos de batalha e transladando-os para Portugal ou para um ossário construído de propósito em Mocímboa da Praia – hoje ao abandono. Mas esse seu gesto fez-se mais por um desígnio pessoal do que pelo imperativo de moral pública. Craveiro Lopes fora um alferes que, aos 23 anos, fizera parte da Coluna de Massassi e participara na conquista de Nevala, em Outubro/Novembro de 1916. A sua bravura na defesa do fortim conquistado aos alemães pelo curto prazo de uma semana tinha-lhe merecido uma Cruz de Guerra. Era natural que um militar que vivera as agruras da guerra na selva africana se preocupasse em homenagear os que nela pereceram.

 

Muitas das localidades que serviram de bases aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde. Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos pelas incursões alemãs

 

A guerra colonial regressaria a muitos dos lugares por onde andaram os soldados portugueses de há cem anos. Francisco Dinis esteve em Negomano até 1974 mas não se recorda de ter ouvido falar da batalha que lá se travara 57 anos antes. Muitas das localidades que serviram de bases aos soldados das quatro expedições entre 1914 e 1918 seriam usadas pelas tropas coloniais que combateram a Frelimo quatro décadas mais tarde. Muitos dos eixos de penetração da guerrilha foram muito antes abertos pelas incursões alemãs.

Entre estas duas gerações há, por isso, memórias em comum. Em Mecula, um lugar remoto do Niassa, onde Agostinho Mesquita sofreu um atentado com uma mina que o tornou deficiente, morreu o tenente Viriato de Lacerda em Dezembro de 1917 vítima dos ataques alemães.

 

René Pélissier considera que o facto de a guerra de libertação da Frelimo se ter iniciado no território dos macondes, onde se deram as mais duras batalhas da Grande Guerra e onde a população civil sofreu as agruras da escravidão ou da pilhagem, não é por acaso. “Não se deve esquecer que apenas 47 anos separam a ‘submissão’ de 1917 do início da guerrilha da Frelimo”, escreve o historiador francês. A verdade é que as marchas forçadas entre a selva no Niassa ou no planalto dos macondes, as razias dos bens das populações, a violência sobre as mulheres ou a escravidão da Grande Guerra dão corpo a uma linha de acontecimentos que esteve longe de se concluir quando os alemães depõem as armas, a 11 de Novembro de 1918. Por muito que em Portugal essa guerra distante tenha sido estranhamente engavetada na História, os seus efeitos perduraram no tempo. E, como o PÚBLICO pôde constatar, ainda hoje resistem na memória dos seus habitantes.

 

Notícia alterada a 29/7: Craveiro Lopes recebeu a Cruz de Guerra e não a Cruz de Ferro

 

 

 Berta Brás

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