OUTRAS DIMENSÕES
Hoje, trato de duas ocorrências noutras dimensões que não nas tradicionais dos três eixos cartesianos mais a do tempo. E ambas na mesma família.
São eles irmãos, filhos, sobrinhos, netos, mulheres e maridos de quem eu gosto e tenho por amigos. Gente de fé, não beata.
A primeira história é rápida.
Um desses a que rotulo de marido (da mulher dele, está claro), quando criança, andava a certa altura muito murcho, com febres e febrinhas que não atavam nem desatavam com os antipiréticos habituais. Chamado o médico, foi o petiz auscultado demoradamente até que se concluiu que talvez fosse bom passar aos antibióticos, medicação então relativamente moderna. Mas a «coisa» não apresentava modos de cedência e chegaram mesmo a fazer-lhe umas chapas ao tórax. O diagnóstico concluiu por uma primo-infecção, esse vestíbulo da tuberculose. E o nosso «homem», cada vez mais tolhido pelas febres, tosses e tossicas… com a família a entrar em desespero. Ah! Os bifes de cavalo eram muito bons para dar forças a quem elas faltavam e o óleo de fígado de bacalhau tonificava o corpo esmorecido. Ah! Os antibióticos conjugados com os sinapismos também eram muito bons. Os quê? Os sinapismos! E o que era isso? Eram cataplasmas de mostarda que se aplicavam como revulsivo que ao irritar a pele se dizia que descongestionavam os órgãos e tecidos profundos subjacentes e, assim, contrariavam os processos inflamatórios.
E nada…
Foi já em desespero que o próprio médico assumiu que o cenário era francamente mau e que a sua ciência não lhe permitia mais fazer. Que fossem a Fátima orar.
E foram!
Rezaram com verdadeira fé pedindo que se salvasse o rapazito. Por lá ficaram um dia inteiro entre preces e lágrimas mas pela tardinha tiveram que regressar a Lisboa.
E nos dias seguintes o António deixou de tossir, a febre desapareceu e há dias fez 74 anos na companhia da mulher com quem é casado há uma porrada de anos e rodeado de filhos, noras e netos.
Haja saúde e continuemos…
A segunda história tem um final diferente.
O novelo de lã era cinzento, dizia miau e tinha patas brancas. E foi o enlevo da criançada. Fez-se um gatarrão mas não era muito de se deixar ficar calmamente em casa. Saltava da varanda do primeiro andar para cima de um telheiro e daí para o jardim. Desaparecia durante uns dias e voltava sempre arranhado e com fome. É claro que andara às gatas em bulha com os outros gatos das redondezas e que nem sequer tivera tempo de procurar comida. Quando voltava, deitava-se sobre o tapete do lado de fora da porta da casa dos donos, da sua casa, até que alguém o visse e lhe desse entrada. Recomposto, era só esperar uma semana e lá ia o «Tareco» às gatas suas amigas.
Até que um dia o dono adoeceu e se sentou com uma manta sobre os joelhos. E o «Tareco» passou a ficar em casa mais do que até então era habitual deitando-se no chão sobre a ponta da manta que por ali sobrava. Mas se ficava mais tempo em casa, as passeatas eram insubstituíveis e lá ia ele… Só que voltava com mais frequência, claramente para visitar o dono que ele sabia estar doente.
Até que um dia chegou junto do sofá vazio do dono. Logo percebeu que já não havia dono a quem pudesse fazer companhia, deu um grito de desespero, saltou e desapareceu janela fora como sempre fizera.
Passados dois dias, quem abriu a porta viu o «Tareco» deitado sobre o tapete do lado de fora da porta. Sim, tinha ido fazer companhia ao dono naquela outra dimensão.
Março de 2018
Henrique Salles da Fonseca