OS DISCURSOS QUE REGISTEI - 1
Parte 4
ELOGIO FÚNEBRE DE D. MANUEL TRINDADE SALGUEIRO
POR
D. MANUEL DE ALMEIDA TRINDADE
3) O BISPO
Coimbra estimava Trindade Salgueiro como alguma coisa de muito seu. Não era apenas o meio eclesiástico que o considerava uma glória da Igreja; era também o ambiente universitário – alunos e professores – entre os quais ele criara prestígio e simpatia e até a própria Cidade, sempre orgulhosa dos valores que nela florescem e se afirmam.
Todos receavam que cedo ou tarde lho viessem «roubar». Anos antes, a Cidade vira partir com mágoa para Lisboa, a ocupar o lugar de Arcebispo de Mitilene, outro Professor da Faculdade de Letras, que, em período em que não era fácil aos católicos e muito menos aos sacerdotes o acesso ao ensino universitário, conquistara pelo seu talento uma posição de relevo dentro da velha Universidade. Esta, que lamentara a sua ausência sentia-se agora honrada ao ver o seu antigo Mestre ascender a outra cátedra – a cátedra episcopal do Patriarcado de Lisboa e receber das mãos de Pio XI o barrete cardinalício.
Os olhos punham-se agora em Trindade Salgueiro.
O Bispo Conde, Coelho da Silva, quase espreitava as saídas do seu eminente colaborador, recoso, ele mais do que ninguém, de nova sangria no corpo depauperado de uma Diocese onde não abundavam os valores do quilate dele.
Todos os dias de manhã, após a aula no Seminário, Trindade Salgueiro passava pelo gabinete de trabalho do velho Prelado, que disso fazia questão. Pelas suas múltiplas relações, pela aceitação de que gozava em todos os meios, pela clarividência dos seus juízos, pela sensibilidade e zelo por tudo quanto constituísse serviço e prestígio da Igreja, Trindade Salgueiro, embora não desempenhasse propriamente cargos de governo na Diocese, revelava-se um instrumento precioso para esse efeito. Era uma espécie de jornal diário, ampla e prudentemente informado, que o Bispo utilizava para o desempenho do seu múnus.
Mas, se ele prestava um auxílio, não deixava, em compensação, de enriquecer o seu espírito neste diálogo quotidiano em que, com a espontaneidade que lhe era característica, o Prelado de Coimbra vazava a sua própria alma. E deste modo, a Providência o ia preparando para aquilo que desde há muito se esperava. No dia 26 de Novembro de 1940, a notícia da sua nomeação para Auxiliar do Patriarca de Lisboa e Bispo da Acção Católica, correu o País de lés a lés.
Coimbra não ficou contente. O júbilo pela honra de que era objecto um filho seu foi superado pela tristeza de perdê-lo. Alguém, em gesto de sentida e sincera amizade, teve ainda a veleidade de procurar assinaturas que, apresentadas a quem de direito, pudessem sustar a saída. Era desconhecer o modo de proceder da Santa Sé nesta matéria. O gesto ficava, porém, como o testemunho de amizade e de admiração de uma Diocese que via partir o Sacerdote mais prestigioso e mais qualificado.
Desde o dia 24 de Fevereiro de 1941, em que, na Catedral de Lisboa, Sua Eminência o Cardeal Patriarca o ungiu como seu Auxiliar com a Ordem do Episcopado, até 20 de Maio de 1955, em que a Santa Sé o foi buscar para governar esta gloriosa Arquidiocese de Évora, a vida de D. Manuel Trindade Salgueiro foi uma doação à Igreja – a continuação, agora em plano mais alto, da doação que vinha fazendo de si desde o dia da ordenação sacerdotal.
Ser Bispo não é posição cómoda nem fácil. Um homem inteligente só a aceitará como um serviço. A Igreja não a impõe a ninguém, mas propõe-na de tal maneira que um cristão, que tem consciência da sua responsabilidade e não quer cometer o pecado da cobardia, não encontra, por fim, outro caminho senão aceitar. Sabe que desde esse dia fez o sacrifício do que lhe restava ainda da sua liberdade e começa a fazer a aprendizagem (se é que a não havia feito antes) da única ciência que se não aprende dos livros: a ciência do sofrimento. É do Evangelho: quando pela boca da mãe, Tiago e João pediram ao Senhor um lugar junto d’Ele, no exame a que Jesus os sujeitou fez-lhes apenas uma pergunta: Sois capazes de sofrer? – Pela vida fora, com certeza, se lembraram algumas vezes da pressa e da ingenuidade com que haviam respondido: «Somos». A distância, porém, que vai da afirmação teórica à prática diária, só a experiência – uma dolorosa experiência – é capaz de medir.
É certo que o Bispo não tem o monopólio nem o exclusivo da cruz. Muitas outras vidas a experimentam também. Porém, a peculiaridade do Bispo é fazer das dores dos outros, dores suas; de carregar conjuntamente com as suas penas e pecados as penas e os pecados dos outros. Só depois de ser Bispo é que compreendi o sentido, para mim antes enigmático, da invocação com que todos os dias nos preparamos para a Missa: Senhor, liberta-me dos meus pecados próprios e perdoa ao teu servo os pecados alheios.
Que o homem tenha obrigação de pedir perdão pelas suas faltas pessoais, compreende-se; mas que deva sentir-se responsável pelos pecados dos outros, esse é o mistério da vida do Sacerdote. Esse é o mistério também – e por excelência – da paixão redentora de Jesus. Ser Bispo é entrar no mistério desta solidariedade que em Cristo, o único inocente, encontra a sua fonte e a sua mais elevada realização.
Disse há pouco que não é fácil a posição do Bispo. Muito menos é fácil a do Bispo da Acção Católica.
A Acção Católica é hoje um grande movimento da Igreja em Portugal. Alguém que tinha especial competência para o afirmar, disse um dia que nunca os católicos portugueses tinham tido organização que se lhe pudesse comparar em orgânica, em disciplina e em número de associados.
Mesmo os que ficam de fora e por qualquer circunstância não aderem ou não correspondem ao apelo do Papa ou dos Bispos, ou trabalham noutros movimentos de apostolado, também eles abençoados pela Igreja, são atingidos pelo clima que a Acção Católica fez nascer.
Manuel Trindade Salgueiro deu-se ao movimento de todo o coração. Durante 14 anos, ele foi o centro polarizador de uma actividade de múltiplos aspectos que atingiu e continua a atingir a Nação inteira e que o Decreto sobre o Apostolado dos Leigos, aprovado na última Sessão Conciliar, acaba de sancionar com a sua autoridade de supremo órgão do Magistério.
A toda a parte D. Manuel Trindade Salgueiro levou a sua palavra vibrante e eloquente. Seguiu de perto a organização, presidiu a congressos, a reuniões nacionais de assistência eclesiástica, a encontros de adultos ou de jovens de ambos os sexos, escreveu sem se cansar em jornais e revistas, procurando orientar, esclarecer, animar ou mesmo acordar os que dormiam ou se deixavam adormecer; redigiu relatórios minuciosos para apresentar na Conferência dos Bispos, organizou quadros de assistentes gerais e nacionais e para isso pediu, quase mendigou, a cedência de sacerdotes a Bispos deles carecidos para os serviços diocesanos. Aguentou embates, sofreu contradições… Sinto que o elenco não fica completo. Mas devo acrescentar ainda uma palavra: fez tudo isto com todo o seu ser - a inteligência, a vontade, os nervos e o coração! O coração! Este é que havia de acabar por ser a vítima de uma actividade que era vivida com a alma toda; mas a alma encontrava reflexos no débil instrumento que a servia.
Em Março de 1955 D. Manuel Mendes da Conceição Santos, o santo e apostólico Arcebispo de Évora, entregava a sua bela alma a Deus. Dois meses depois era nomeado para lhe suceder o já então Arcebispo de Mitilene, D. Manuel Trindade Salgueiro.
Novo caminho se abria agora diante dos seus passos. Não era já o trabalho especializado da orientação superior do movimento da Acção Católica; era o governo de uma Arquidiocese de gloriosas tradições culturais e apostólicas mas, ao mesmo tempo, a mais vasta e a mais dispersa das Dioceses de Portugal.
Pesava-lhe agora sobre os ombros, nas suas múltiplas facetas, o serviço de uma Igreja.
E o novo Arcebispo de Évora serviu. Serviu com o estilo que lhe era próprio, o que era o resultado da vida que vivera em Coimbra e depois continuara em Lisboa.
A vasta arquidiocese foi percorrida de lés a lés em Missões, que procuraram acordar a fé adormecida. Sempre que podia – e às vezes mesmo sem poder – lá estava a animar com a sua presença as actividades missionárias, o Senhor Arcebispo. Designadamente neste trabalho muito o ajudou o seu zeloso Auxiliar, há pouco nomeado pela Santa Sé Bispo Coadjutor do Timor português.
As Missões, porém, seriam fogo de palha, lampejo passageiro levantado por uma lufada de vento se, para garantir a continuidade da acção religiosa, não criassem os quadros necessários.
O antigo Presidente da Junta Central manteve em Évora a fé que tinha na Acção Católica, quando seu primeiro responsável em Lisboa. Multiplicaram-se por isso os cursos arquidiocesanos e regionais para os vários ramos, realizaram-se reuniões de assistentes e outras iniciativas destinadas a vitalizar a instituição.
Quando surgiu o inspirado movimento dos Cursos de Cristandade, que tamanha projecção está tomando nesta Arquidiocese e no País inteiro, D. Manuel Trindade Salgueiro acompanhou-o com solicitude, compreensão e entusiasmo.
O Senhor Arcebispo de Évora estava, porém, convencido – como o estão, sem dúvida, todos os seus Colegas no Episcopado – de que todo o seu trabalho seria limitado e praticamente inútil se não tivesse a trabalhar com ele, numa colaboração generosa, alegre e desinteressada, o clero da sua Arquidiocese.
É aqui que está o segredo do sucesso ou do insucesso da acção de um Bispo. Sem o Bispo, o clero assemelha-se a uma amálgama de órgãos dispersos, uma espécie de membros sem tronco nem cabeça. Mas Bispo, sem padres – sem padres que façam da sua vida um serviço alegre e generoso – é como um tronco sem membros. Ainda então a vida pode continuar a existir nos seus elementos essenciais (é possível a vida de um homem sem braço nem pernas), mas a irradiação será limitada e a actividade diminuta.
Daí o carinho com que os Bispos procuram ter unidos a si os seus padres e a dor que sentem quando porventura algum ser transvia ou por qualquer razão (somos todos tão frágeis!) não corresponde ao que a Igreja dele espera. O coração do Bispo sente-se dilacerado entre as necessidades do bem-comum que exigem firmeza na guarda da disciplina e a natural inclinação para compreender, perdoar e esquecer.
Sinto que ao dizer estas palavras, mais do que a própria experiência, que é curta, estou a reproduzir a experiência do Senhor Arcebispo de Évora, o qual em conversa íntima, muitas vezes repetida, não ocultava a amizade, o carinho e mesmo a veneração que tinha pelos seus Padres.
Esse mesmo carinho e solicitude estendia ele aos candidatos ao Sacerdócio, que nos Seminários Arquidiocesanos de Vila Viçosa e Évora se preparam para a grande e delicada missão que os espera.
Aos Seminários dedicou D. Manuel Trindade Salgueiro o melhor da sua atenção. Para eles mendigou o pão de que eles estão carecidos para poderem sustentar os seus alunos. Ao seu aperfeiçoamento e actualização não poupou sacrifícios e caminhadas. A morte veio colhê-lo, quando ainda há pouco havia iniciado uma ampla remodelação num dos edifícios que nesta cidade se destinam à formação dos candidatos ao sacerdócio.
Ao lado de D. Manuel da Conceição Santos, D. Manuel Trindade Salgueiro é credor da gratidão da Cidade e da Arquidiocese de Évora.
Devo pôr ponto final às pinceladas deste perfil.
Se quisesse compendiar tudo quanto disse e das palavras proferidas reter uma que fosse definitiva, diria que toda a vida de D. Manuel Trindade Salgueiro se resume em servir.
Serviu a Igreja com fé e devoção. Por ela esgotou os nervos e arrasou o coração. As palavras de comedimento e os conselhos de prudência que lhe vinham daqui e dalém não encontravam eco na sua alma apaixonada. Ele julgava um roubo ou uma cobardia furtar-se ao trabalho.
Disse que serviu a Igreja mas serviu a Pátria também.
As alegrias da Pátria foram alegrias suas; as tristezas e dores da Pátria ajudaram a rasgar-lhe as fibras do coração.
Não foi um político no sentido vulgar do termo. Não era essa a sua missão como sacerdote e como Bispo. Mas nem por isso a sua actividade de pastor deixou de ser benéfica para a pacificação e engrandecimento de Portugal.
Em livro recente – L’Oraison, problème politique – um célebre autor francês, perito do Concílio, procurou com muita lucidez demonstrar que a oração, isto é, a vida espiritual e religiosa, constitui elemento essencial do homem e consequentemente da comunidade política. Uma cidade sem igrejas é tão desumana como uma cidade sem instrumentos de trabalho.
O grande mérito de D. Manuel Trindade Salgueiro consistiu em, ao longo da vida, como escritor, mestre, sacerdote e Bispo, ter procurado acordar os homens para esta vida do espírito, sem a qual todo o trabalho da civilização corre o risco de ser um regresso à barbárie.
Como Agostinho de Hipona – ao qual em tantos traços se assemelhou – o seu esforço foi o de ajudar a construir na terra a Cidade de Deus.
Manuel Trindade Salgueiro foi um modelo de homem, de intelectual, de sacerdote e de Bispo.
Homem dotado de qualidades invulgares de carácter, de inteligência e de sensibilidade, acordava facilmente nos homens com os quais contactava, mesmo que não comungassem do fervor da sua fé religiosa, a sintonia do coração.
Nítida vocação de intelectual, foi um contemplativo da verdade, que ele procurou repartir com os outros, no magistério da palavra e da pena, no seminário, na cátedra universitária, no púlpito da sua catedral.
Sacerdote e Bispo, dominava-o a paixão de levar os homens a Deus. Em papel que traz a sua inspiração escreveu ele esta palavra de S. Francisco de Sales: Senhor, que eu aproxime de Vós todos aqueles que se aproximam de mim.
Um homem de tal robustez espiritual, a morte não o vence. As suas virtudes e o seu talento falam dele para além da morte.
Defunctus aduc loquitur.
O morto ainda fala!
Évora, 15 de Novembro de 1965
D. Manuel de Almeida Trindade
Bispo de Aveiro
FIM