OS DISCURSOS QUE REGISTEI - 1
Parte 2
ELOGIO FÚNEBRE DE D. MANUEL TRINDADE SALGUEIRO
POR
D. MANUEL DE ALMEIDA TRINDADE
1) O HOMEM
Manuel Trindade Salgueiro foi um homem de Ílhavo. Dizer que foi um homem de Ílhavo é dizer que foi um homem que trazia o mar no coração e nas veias. Se se encostasse o ouvido ao seu peito, talvez se ouvisse dentro dele, como acontece aos búzios, o murmúrio das ondas.
Os homens de Ílhavo têm a vocação do Oceano. A sua terra é o mar. Ali vivem, ali trabalham e ali morrem também. Mais do que o lavrador, o seu destino está pendente do incerto e do imprevisto. Quando saem para o mar, acompanha-os sempre a dúvida do regresso. Talvez esteja aí a razão por que são tão profundamente religiosos. O Senhor dos Navegantes podia ali ser invocado antes mesmo de Ílhavo ser terra cristã. Junto dos altares da igreja paroquial há sempre luzes acesas em sinal de prece pelos que andam no mar, e as paredes da igreja e das capelas cobrir-se-iam facilmente de ex-votos de promessas feitas por homens em perigo, ou pelas mulheres e filhas deles que ficaram em terra à espera de eles voltarem.
Nem sempre as preces são atendidas. Há lâmpadas que parecem arder inutilmente. Há orações que se assemelham às pérolas perdidas no fundo dos Oceanos e parece não servirem a ninguém. Esse é um mistério cuja solução se encontra escondida no coração de Deus. As almas simples aceitam-no com resignação. A fé dá-lhes a resposta antecipada daquilo que não conseguem por ora compreender.
Manuel Trindade Salgueiro era filho de um homem do mar – de um homem que perdeu a vida no mar. Nos cemitérios das outras terras, pelas lápides sepulcrais pode refazer-se a história das gerações. Os filhos podem ajoelhar-se junto das jazidas dos pais: o pó das sepulturas é feito da carne dos seus maiores. Em terra de pescadores, porém o cemitério dos homens é, muitas vezes, o mar.
Um homem do mar, que perdeu o pai no mar, sente no marulhar das ondas o que os outros descobrem na brancura das campas ou na silhueta esguia e recolhida dos ciprestes. Talvez esteja nisso a razão por que D. Manuel Trindade Salgueiro gostava tanto do mar. Quando voltava a Ílhavo o seu passeio predilecto era até junto do amurada da Barra, em frente do Oceano, por onde todos os dias entram e saem os barcos que andam na faina da pesca.
O homem de Ílhavo tem um modo de ser especial. Senhor absoluto e plenamente à vontade dentro do barco, sente-se estranho em terra. A terra é o domínio da mulher. É ela que governa o dinheiro, que matricula os filhos na escola, que trata do baptizado ou dos papéis do casamento. Em terra o homem sente um complexo de inferioridade, ou, quem sabe, de superioridade, como se valessem pouco as coisas da terra, comparadas com aquelas, mais importantes, que ele vive em cima das ondas.
Tenho pensado no que teria sido aquela criança, órfã de pai desde os mais tenros anos, se, em vez do pai, lhe tivesse faltado a mãe. Em Ílhavo esta circunstância reveste um significado especial.
Conheci a Mãe de D. Manuel Trindade Salgueiro. Nessa altura já tinham passado as agruras e os apertos de uma vida pobre, que, para se manter com dignidade, teve de suportar sacrifícios e humilhações.
Quem nasceu de uma família rica ou mesmo remediada não é capaz de imaginar quanto é pesada a vida dos que nasceram privados de tudo. Um padre contemporâneo em Coimbra de D. Manuel Trindade Salgueiro, o Dr. Luís Lopes de Melo, que tão profunda influência havia de exercer na mocidade académica coimbrã, dizia em certa ocasião aos vicentinos: «Eu dou graças a Deus por ter nascido e crescido no meio do povo e nessa escola de pobreza e de trabalho. Devo à memória daqueles que me geraram esta palavra de gratidão. Vi-os sofrer, vi-os chorar, vi-os passar toda a espécie de privações para que o seu filho fosse crescendo numa posição social que eles não tinham».
Trindade Salgueiro podia fazer suas as palavras de Lopes de Melo – apenas com uma diferença: é que os sacrifícios que, no caso deste, eram partilhados pelo pai e pela mãe, no caso de Trindade Salgueiro recaíam apenas sobre os ombros débeis da Mãe.
Foram esses sacrifícios e essas angústias vividas pela Mãe e presenciadas pelo filho – e de que ele sabia ser o objecto e o motivo – que soldaram as duas vidas para sempre. A quantos filhos, que não estimam suficientemente os pais, teria sido útil uma experiência assim! É uma das facetas mais belas da personalidade deste homem, que foi um gigante do espírito, a ternura e o carinho que ele teve pela Mãe. Também a pobreza tem neste mundo as suas compensações.
Os homens, que encontram na vida uma mulher que lhes cativa o coração e com o qual constituíram um lar, podem continuar a amar a própria mãe e guardar para ela um cantinho no coração, onde se refugiam nas horas em que têm saudades de quando eram pequenos. Mas o amor da mãe tem ressonâncias inéditas no coração de um padre, que por vocação renunciou ao amor humano, para se dar todo ao amor de Deus e do próximo. Santo Agostinho (que foi também um órfão de pai – aliás duplamente órfão, pois Patrício era pagão) e, mais perto de nós, S. João Bosco ou o Cardeal Mindszenty poderiam ajudar-nos a descobrir este mistério de amor sublimado que é o amor do padre pela sua mãe.
Mas este Bispo, que cultivou com ternura comovente o amor da Mãe, não se deixou enredar no exclusivismo esterilizante em que se deixam cair tantos homens mesmo quando o objecto do seu amor é a pessoa da própria mãe.
Manuel Trindade Salgueiro foi um homem que cultivou a amizade para além do âmbito das paredes domésticas. Ele suscitava-a pela sua simples presença, pela solicitude e pela bondade do coração. Não foi um homem feito para viver sozinho. Por muito religiosa que fosse a sua alma, ele não recebeu a vocação do monge. O monge é um separado do mundo, alguém que vive, já no tempo, a condição da eternidade. Não consigo imaginar um monge a ler interessadamente um jornal diário e a procurar nele a notícia de um luto para levar à família uma palavra de consolação, ou então as vicissitudes de uma discussão ou de um acontecimento. Trindade Salgueiro foi um homem imerso no tempo; melhor diria, um homem debruçado sobre o tempo, ávido de fazer descobrir aos homens, que ele foi encontrando pelo caminho, as certezas donde contemplava e amava os seus irmãos.
A sua amizade não consentia acepção de pessoas. Este aristocrata do espírito era capaz de se fazer estimar tanto de altos magistrados, de professores da Universidade ou de pessoas de estirpe, como de gente humilde – os vizinhos do prédio em que morou, os antigos companheiros da escola primária, do liceu ou do Seminário.
A ele recorriam muitos em suas aflições. As relações, que se lhe foram deparando ao longo da vida, jamais as aproveitou para benefício próprio. A ambição foi vírus que nunca circulou nas suas veias. Foi doutor, professor universitário, académico, bispo sem nunca o ter desejado nem porventura suspeitado. Tudo isto lhe aconteceu, por desígnios de Deus ou justa estima dos homens, mas nunca porque o quisesse, ou tivesse dado um passo para isso. Mais do que a honra, que o vulgo aprecia e em que facilmente se fixa, ele via a responsabilidade e o serviço.
Procurei desenhar o perfil do homem.
Se agora quisesse encontrar uma palavra para definir esta fisionomia tão pouco vulgar nos traços físicos como nas características morais, teria de recorrer a um vocábulo estrangeiro, por não ser fácil encontrar outro que evoque de igual modo todas as facetas deste homem excepcional. Chamar-lhe-ia um gentleman.
Foi-o na apresentação exterior, sempre impecável, cuidada mas sem afectação, nobre mas com simplicidade. Foi-o também no trato afável, simples, cordial; no dom de simpatia com que sabia sintonizar-se com quem o procurava, mesmo que não estivesse de acordo com as suas ideias ou os seus sentimentos.
Se a palavra não se prestasse a um significado profano, que está longe da minha intenção como estaria longe da realidade, seria caso de empregar aqui o termo «elegância». Elegância é sinónimo de ordem, de harmonia, de compostura.
Não creio que esta harmonia e elegância exterior fosse possível sem um governo interior, fruto de uma sensibilidade apurada, que lhe veio da herança materna, de uma inteligência luminosa e de uma educação doméstica que se foi aprimorando ao longo da sua vida, em múltiplos contactos, desde os bancos do liceu e do seminário à cátedra universitária e à missão episcopal.
Os requintes de educação que alguns homens têm a felicidade de encontrar, desde o início, no berço e na tradição familiar – e outros aí poderiam encontrar mas não encontram – adquiriu-os D. Manuel Trindade Salgueiro, em larga escala, por intuição e esforço próprio. Nisso está o seu mérito. Poder-se-ia dizer dele que foi um nobre de espírito, trazendo embora nas veias o sangue de um pescador.
(continua)