OS DISCURSOS QUE REGISTEI - 1
ELOGIO FÚNEBRE DE D. MANUEL TRINDADE SALGUEIRO
POR
D. MANUEL DE ALMEIDA TRINDADE
(Presidiu o Cardeal Patriarca às exéquias solenes realizadas na Catedral de Évora)
Parte 1
Eminentíssimo e Rev.mo Senhor Cardeal Patriarca
Ex.mo Representante de Sua Ex.ª o Chefe do Estado e Governo
Ex.mos e Rev.mos Senhores Arcebispos e Bispos
Senhor Ministro e Senhores Secretários de Estado
Il.mos e Rev.mos Senhores Capitulares da Basílica Metropolitana
Ex.mas Autoridades
Rev.mos Senhores
Cristãos
Senhoras e Senhores
Defunctus adhuc loquitur.
O defunto ainda fala.
Estou a vê-lo. Alto, franzino, quase transparente. Tenho nos ouvidos o timbre da sua voz, a que o gesto nervoso e amplo mais vivacidade emprestava. Parece-me sentir ainda a cadência dos seus passos, que o faziam adivinhar ao longe. A frase de Pascal, que ele tantas vezes citou na vida: l’homme c’est un roseau…o homem é uma cana, mas uma cana que pensa, quase se lhe poderia aplicar à letra. A encimar aquele corpo débil, que uma aragem faria vergar, havia uma cabeça – uma bela e inconfundível cabeça. Ela era o espelho da sua personalidade: testa ampla, emoldurada por madeixas de cabelos, que o tempo embranquecera; olhos fundos, que tanto eram capazes de um olhar de enternecimento e doçura, como de um brilho de indignação ou da mística fixidez de alguém que contempla o Absoluto. Face cavada de sulcos profundos, cuja mobilidade permitia o gesto do rosto, a completar aquele com que todo o seu ser físico comentava a palavra, que lhe saía dos lábios.
Ao vê-lo, muitas vezes me veio à lembrança a figura de Santo Agostinho ou então, mais perto de nós, o retrato do Cardeal Newman.
A cana vergou-se à impetuosidade do vento. Vergou-se e acabou por partir-se. Não foi o peso dos anos; foi a intensidade da vida.
Correram lágrimas em muitos rostos ao ver desaparecer o Pastor da Diocese e o Amigo querido. Raras vezes em Portugal a morte de alguém terá provocado, ao perto e ao longe, um coro tão unânime de gemidos e de saudade, como a morte de D. Manuel Trindade Salgueiro. Esse coro não se apagou ainda. Renova-se hoje, nesta Basílica Metropolitana, onde, durante dez anos, ele presidiu como Pontífice e ensinou como Pastor e Mestre.
Seja-me permitido que eu junte a esse coro também o preito da minha saudade pelo Mestre e pelo Amigo querido que, ao longo de mais de trinta anos, me distinguiu com a delicadeza da sua amizade e com as luzes da sua inteligência e do seu conselho.
As palavras que vou dizer trazia-as há muito gravadas no coração. Nunca lhas disse em vida, por um misto de receio e de pudor. Posso agora dizê-las, que os seus ouvidos já não ouvem nem os seus olhos, vivos e irónicos serão capazes de fazer calar a palavra do elogio e da gratidão. A gratidão agora tem o sentido de uma prece, e o elogio é feito mais por intenção dos vivos (a quem prestam os bons exemplos) do que por interesse do Morto, para quem todo o encómio proferido por lábios humanos se desvanece, perante a palavra do Senhor dirigida àqueles que bem O servem: Vem daí, servo bom e fiel, entra no gozo do teu Senhor.
(continua)