OS CAMINHOS DA FÉ
1. As reflexões de Bento XVI em Regensburg, sob o título “Fé, Razão e Universidade”, são notáveis, não tanto pelo que revelam, mas por terem sido feitas por quem foram. Creio que, por uma vez, um Papa do nosso tempo veio a público expor o que pensa sobre o fenómeno religioso – e não só sobre a religião cristã -oferecendo-se à crítica e ao debate, longe da sombra protectora das “verdades de fé”.
Tenho para mim que Bento XVI -ao basear estas suas reflexões num juízo escrito por alguém que tinha à porta a ameaça, não religiosa, não filosófica, mas chãmente militar, do Islão – foi, apenas, inoportuno. E inoportuno porque daria, como deu, argumentos vários a fundamentalismos vários de quadrantes vários, sabendo que não iria obter nada de substancial em retorno. O que ninguém poderá negar é que esse mesmo juízo tem acompanhado o pensamento europeu ocidental desde que os muslim (os que seguem o Profeta) começaram a disputar-lhe territórios e vidas.
Como não discuti-lo, pois, ainda que isso nos lance uns contra outros? Só que, finada a fé marxista, uma tal discussão está fatalmente circunscrita às religiões do Livro – porque, hoje em dia, só elas são militantes, como militante era o marxismo. E é aqui que talvez resida o nó do problema: não na substância, mas na militância que todas elas apregoam, incentivam e louvam por ser “o” caminho certo para levar de vencida a lei da morte.
2. Ao comentar as palavras de Bento XVI, Miguel Sousa Tavares (Expresso) não escapa, ele próprio, ao apelo do “pensamento correcto” -afinal uma outra forma de militância. Desde logo, quando esquece Bartolomeo de las Casas, e tantos outros menos conhecidos, nos primeiros e trágicos dias da conquista do Novo Mundo. O simples facto da voz do bom freire ter sido silenciada não deve silenciar em nós a sua memória. Seguidamente, quando coloca no mesmo saco a pílula, o direito ao aborto, a eutanásia e a ciência, como se tudo isso partilhasse uma mesma categoria lógica. Quem defende o primado tolerante da Razão não pode ser tão tosco na manipulação dos conceitos!
3. Por estranho que pareça, a história do Cristianismo é, quanto a isto, exemplar – na exacta medida em que nos ajuda a perceber os trajectos históricos das outras duas religiões bíblicas.
“Honrar a Deus” e “amar o próximo” são os mandamentos comuns às três religiões. Mas divergem elas sobre o que entender por “próximo”. Para o Cristianismo, graças à inspiração genial de S. Paulo, o próximo é “o outro”, qualquer “outro” – ideia que, ao longo dos séculos, tem vindo a derrubar sucessivos (pre)conceitos culturais. Para as outras duas religiões, porém, o próximo é só aquele que connosco partilha a mesma forma de honrar a Deus – o que é dizer, a mesma fé.
Divergências semelhantes sobre a ideia de Deus afastam-nas ainda mais umas das outras.
E se olharmos desapaixonadamente para o que nos rodeia, as três religiões do Livro só têm em comum uma mesma referência histórica -que cada uma delas, aliás, lê e interpreta a seu modo:
(a) para a Religião Judaica e o Islão, Deus é “Aquele que é” – e, assim assumido, sem causa nem finalidade, é inacessível à Razão;
(b) para muitos cristãos, Deus é ainda “o completamente Outro” de Gabriel Marcel – tão impenetrável pela Razão quanto o anterior;
(c) para Bento XVI, Deus oferece-se à Razão -não é mais “o completamente Outro”, “Aquele que é”, mas “Aquele que se revela”.
4. E, não obstante, “No princípio era a Palavra (logos)...” – nisto pelo menos as três religiões do Livro concordam. Mas essa Palavra não era ainda a Revelação. Era tão-só a capacidade de distinguir e de codificar e relacionar de maneira coerente o que se distinguia. Era, afinal, o logos capaz de pensar a ideia transcendente de Deus e de gerar o mito. Como escreveu Feuerbach, a ideia de Deus, goste-se ou não, é ainda uma categoria do pensamento, tem as suas raízes na mente e, por consequência, fica tão contingente e datada como qualquer outro pensamento (“não é Deus que criou o Homem à imagem e semelhança de Deus; é o Homem que cria Deus à imagem e semelhança do Homem). Por isso, sem a tese da Revelação tão cara a Bento XVI, o Deus transcendente, tal como o Deus de Feuerbach, é apenas a ideia do invisível que está ao alcance de cada um criar e recriar conforme melhor se lhe ofereça. Neste contexto, como estranhar que as religiões do Deus transcendente sejam também as religiões de uma ideia de Deus de sentido único, em que o mito é permanentemente imposto ao colectivo dos crentes como acto de fé, o santo e a senha dos que a elas dizem pertencer?
Pela teoria da Revelação, Deus não é mais uma ideia construída a partir de determinadas referências abstractas que dão corpo a uma fé – é, sim, uma experiência, uma realidade a apreender. Talvez Bento XVI não se tenha apercebido de que, ao defender isto, não se limita a reconciliar a ideia de Deus com a Razão. Está também a remover a fé para o terreno mais escorregadio da exegese dos vestígios de uma realidade revelada; está a tirar de cena os depositários das referências que dão forma a uma ideia de Deus que exclui o livre pensar; está a esvaziar, em suma, as razões que justificam uma hierarquia religiosa, a separação entre ungidos e simples crentes. Mas Carreira das Neves (Expresso) apercebeu-se, e por isso escreve: “(...) o Papa terá que perceber que a sua voz e o seu logos já não pertencem mais aos meios académicos (...)”. Ou seja, não é possível manter uma Igreja, com a sua fé e as suas hierarquias vigilantes, e dar livre curso à Razão.
5. O que não cessa de me surpreender é o facto de as três religiões do Livro se organizarem segundo linhas mestras em tudo idênticas: “honrar a Deus” na esfera pública; “amar o próximo” no recato das consciências individuais (apesar de o Islão, inovador neste ponto, impor a conduta ostensivamente pública da esmola ritual).
Que assim tenha acontecido no Cristianismo, é algo que ficou registado na História com enorme clareza. Constantino via que o Império se esfarelava, que tinha de o manter unido – coisa que, sabia ele também, não estava mais ao alcance, nem das suas legiões, nem do seu aparelho administrativo-fiscal.
Faltava-lhe uma ideia que congregasse e condicionasse, sem esforço nem custo, as mentes dos seus súbditos; que, aceite, não imposta, se propagasse espontaneamente entre eles; que fixasse um único referencial de valores sobre os quais ele, Constantino, iria refundar o seu poder. Faltava-lhe uma religião – e teve-a.
Era a parte pública da religião que interessava Constantino. Foi uma religião pública, à maneira imperial, que a incipiente hierarquia cristã lhe ofereceu. De novo o ritual iria pôr à prova os vínculos de pertença e, por aí, reforçar a coesão político-social. De novo o poder se afirmaria defensor último de ideias, mitos e preceitos que a generalidade dos súbditos reconhecia e prezava. De novo uma hierarquia religiosa apareceria a alicerçar a polis, conferindo-lhe estabilidade e recebendo em troca o seu quinhão de poder.
Ainda hoje é evidente que o poder temporal carece da teatralidade dos rituais, e da estupefacção que causa. Mas, por mais voltas que se dê, não é fácil teatralizar o acto de “amar o próximo” – posto que, nele, natureza humana, espaço e tempo se confundem. “Honrar a Deus”, sim, sempre foi terreno fértil para rituais de onde facilmente emerge um outro logos insusceptível de ser reduzido ao logos dos não-iniciados – e, por isso mesmo, capaz de gerar uma hierarquia.
Uma pergunta se impõe, então: como seriam as coisas se as religiões do Livro, todas elas, tivessem remetido para o foro íntimo o 1º mandamento e trazido para a esfera pública o 2º mandamento?
6. Tal como o Islão, também o Cristianismo conheceu cismas, movimentos purificadores e lutas fratricidas (o facto de o Judaísmo ter sido mantido longe do poder poupou-o a muitos destes tormentos, mas não a tantos outros). Contrariamente às sociedades islâmicas, porém, as sociedades cristãs europeias cedo propenderam para manter em águas separadas poder religioso e poder temporal, conferindo a cada um a sua hierarquia (não sei dizer porquê, mas foi assim). Na Europa, a derrota que a concepção absolutista do Estado infligiu ao poder temporal do papado foi, até melhor ver, definitiva – mas, excepção feita à monarquia inglesa, não tão profunda que animasse os Estados a chamarem a eles, também, o modo como o 1º mandamento deveria ser vivido.
O Judaísmo, destruída Jerusalém, só agora, num pequeno pedaço do Médio Oriente, dispõe de poder temporal bastante (o que não facilita a resolução dos problemas que por lá se vivem). O Islamismo sempre o possuiu, proclamando embora que ele só se justifica enquanto defensor dos crentes (muslim) – o que é dizer, enquanto instrumento do Islão. Na Europa, e nas restantes sociedades de matriz ocidental, o poder temporal é agora laico, afirma-se equidistante de todas as religiões e com isso remete o 1º mandamento para a esfera privada. Que Bento XVI me perdoe, mas nestas circunstâncias não vejo como a Razão possa, alguma vez, chegar a reunir as três religiões do Livro.
Setembro de 2006