ORAÇÃO DE CÃO
Tenho um amigo Padre, o Carlos, que tinha um cão e o respeitava tanto que lhe cedia um lugar nobre na igreja: um lugar ao lado dos acólitos. Sempre que celebrava missa, lá estava o cão, de patas juntas, juntinho ao altar. Em atitude recolhida juntava, à sua maneira, a sua prece à dos humanos. As mesmas preocupações pareciam elevar-se juntas com o incenso para o céu.
Era de admirar tanta sintonia e solidariedade numa natureza de pecado e inocência. Naquela comunidade, mais habituada à rotina e ao folclore das festas litúrgicas, aquela atitude de solidariedade já presente no presépio e recordada no Natal, foi considerada inteiramente fora de estação. A atitude do padre, que não a do Fiel, provocara o sentimento de alguns fiéis, fazendo erguer aos ares a voz dos cães de guarda da ordem e do pensar correcto. Um uivar canino de timbre acirrado se ergue aos céus na praça pública.
“Um atrevimento”, “uma provocação “, “uma falta de respeito”, -murmurava o adro da sociedade. O gesto do padre provocara o sentir de parte daquela paróquia a Sul do Tejo. Com o tempo já se não distinguia entre paróquia e freguesia!
Ao Carlos, tão inocente como o “Fiel”, não lhe entrava na cabeça o porquê de tanta indignação nem da tal “Falta de respeito”. E lá, na parte que o distinguia do cão, o sacerdote questionava-se: “Falta de respeito?” De quem e do quê?”…
Ele que não acreditava numa sociedade de trelas e coleiras e habituado a alertar o humano para os embondeiros da sociedade que não deixam crescer erva nem arbusto debaixo da sua sombra, não podia entender o sentido dos uivos dalguns irmãos contra os mais pequeninos ali presentes no Fiel.
O motivo daquele desentendimento todo estaria na falta de sensibilidade, na falta de compreensão do evangelho por aquele rebanho alérgico a cães, o que, no entender de Carlos, se resumiria numa alergia a humanidade, numa ingratidão e falta de solidariedade para com os irmãos mais fracos da criação! “O que fizerdes ao mais pequenino a Mim o fareis…” lembra o Evangelho e o Carlos também.
Enfim, mais um atraso na realização da Boa Nova…, mais um sinal vermelho colocado pelos “embondeiros” do poder e da comunidade, no currículo duma pessoa honesta que apenas cometera o erro de ouvir a voz duma espécies vítima e descontente com a sua vida de cão. Afinal só lhe restava rezar e pedir a Deus que desagrave tanta descrença e desrespeito entre as criaturas… Sozinho e só como o cão, o amigo Carlos só encontrava consolo nas palavras que repetia em atitude meditativa: “Venha a nós o Vosso Reino…”
Também o Fiel, na sua atitude recolhida, tinha pedido ao mesmo Criador pelos irmãos que viviam sob o jugo dum destino preso a um cadeado. Também ele, no momento da oração dos fiéis, lançara um olhar para a cruz do altar, numa súplica, já não pelo pão, mas pelo restabelecimento da dignidade animal e da íntegra solidariedade, a todos comum, antes da queda do pecado original. Humilde, também ele pedia pelos senhores, pelos donos da trela para que Deus os ilumine.
“Que o coração una o que a razão desuniu!” -repetia o Fiel depois de cada prece, numa ladainha de pedidos, que mais faria lembrar um exame de consciência dos pecados do irmão Homem contra a natureza, contra animais e plantas do que uma acusação. Ele que, como o Carlos, se entrega todo inteiro ao dono, ao Senhor, em estado meditativo, já não ergue os olhos para o senhor mas para o Criador; que acabe com tanta ingratidão e falta de respeito entre as criaturas. “O justo conhece as necessidades do animal mas o interior do ímpio é cruel”(Prov 12, 10).
Um mundo sem donos nem senhores, uma sociedade de cães sem coleira seria o princípio dum mundo novo, justo e digno…um mundo de todos para todos!
António da Cunha Duarte Justo