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A bem da Nação

ONDE É O REINO DO CINISMO?

 

 

Atonia do espírito cívico, perda do sentido do dever para com a colectividade, a cultura neo-individualista não deixa de inquietar os espíritos de todos os quadrantes.

 

Para onde caminham as nossas democracias, livres de qualquer «religião civil», de qualquer fé nos projectos colectivos?

 

Desenvolvimento da corrupção e da delinquência, inclinação sobre o «eu», selva de interesses, abstencionismo. Que laço pode unir sociedades privadas do sentimento individual de obrigação para com a globalidade social?

 

Todos estes riscos «entrópicos» são reais na condição de não se omitir que eles são inseparáveis do seu contrário, nunca tendo os princípios da nossa vida colectiva beneficiado de uma legitimidade tão grande. Se, por um lado, as democracias foram desestabilizadas pelos costumes pós-moralistas, elas são, de facto, cada vez menos contestadas no seu fundamento último, cada vez mais consensuais quanto ao valor do pluralismo democrático. Deixou de haver adesão ao espírito de entrega mas, ao mesmo tempo, as formas de violência política e social são recusadas e a organização pacífica da concorrência para o exercício do poder, é aceite por todos. O cinismo aumenta?

 

Quanto menos houver uma religião da política e da moral sacrificial, maior será a exigência de contra-poderes e de transparência, de pluralismo e de cuidado com os procedimentos, de profissionalismo e de negociação nas formas de regulação e de decisão administrativas.

 

Estamos perante o progresso de uma nova era democrática, já não assente na legitimidade única do sufrágio universal mas no constitucionalismo e no primado dos direitos do homem, na independência das instituições públicas em relação ao Estado, na lógica jurídica como princípio regulador da economia e da sociedade.

 

Eis outras tantas transformações institucionais que farão, sem dúvida, acelerar um pouco mais o desencanto do espaço público, recuar a oral das obrigações colectivas em benefício da defesa dos direitos mas que, ao mesmo tempo, deveriam assegurar o desenvolvimento de democracias mais modestas mas mais atentas ao direito, menos heróicas mas mais preocupadas com o pluralismo institucional, menos voluntaristas mas mais descentralizadas.

 

A apatia democrática vence, os valores republicanos não se mostram duradouros mas o espírito de paz civil é dominante, impõem-se novas formas de equilíbrio dos poderes e de ordenamento público, surgem novas exigências de justiça: as democracias do pós-dever ainda não disseram a sua última palavra.

 

A exigência de moralização do povo foi substituída pela exigência de moralização da acção pública; já não se acredita nas pedagogias do cidadão mas sim no Direito como via para a moralização da política; juízes e especialistas vieram substituir as homilias das obrigações morais e cívicas. Tínhamos o discurso encantatório da religião civil e política, dedicamo-nos a reforçar a eficácia específica do sistema jurídico; tínhamos a centralização do poder, temos o «cidadão jurista», o lobbying profissional, as arbitragens jurídicas dos conflitos de interesses.

 

Prevalência da Constituição, fragmentação das autoridades estatais, autonomia da acção pública em relação à esfera política; não são os regimes de ordem moral que celebram a hegemonia das obrigações colectivas sobre os direitos individuais mas sim o Estado de Direito e a promoção social da ideologia jurídica. É menos o regresso da moral do que o regresso do Direito; a escalada do poder do Direito como regulador das sociedades democráticas do pós-dever.

 

 Gilles Lipovetsky

In O Crepúsculo do Dever, ed. D. QUIXOTE, 4ª edição, Maio de 2010, pág. 232 e seg.

O Crepúsculo do Dever

 

 

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