OFIUZA
Era uma vez uma praia branda que se estendia junto a um penhasco altivo. Era Ofiuza, a terra da serpente. Corriam os tempos megalíticos e ali acabava a terra e começava o mar.
Serpente, símbolo da sabedoria, refugia-se no extremo da terra para se isolar da pequenez dos que se instalaram ao longo do caminho do Sol. E porque o Sol é a luz, a serpente segue-lhe no rasto e chega ao penhasco do fim.
Aqui chegada, ebule por não mais poder seguir a luz que se põe no horizonte, ralha com todos a propósito de tudo e de nada, não quer suportar os que tem por medíocres ao contentarem-se com a sedentarização, sente-se grande perante a pequenez desses sossegados, sente-se pequena perante a imensidão do oceano, ferve-lhe o sangue. E pensa que mais valera ignorar e ser feliz como todos os que ficaram para trás do que saber e não conseguir valer-se nas ambições que a atormentam. Até que se zanga consigo própria porque já não tem mais ninguém com quem se zangar.
E é nessa zanga consigo própria que se dá conta de que só ela pode descobrir uma solução para as suas ânsias. Não serão os da capito deminutia que a poderão ajudar, ela é a sabedoria. Mas a sabedoria, sendo determinada, é serena e a ebulição é sinónimo de inferioridade.
Medita e determina-se durante séculos a fio contra os que a querem esmagar e roubar-lhe a praia e o penhasco do fim.
Até que certo dia, passadas muitas amarguras, conclui que o fim das suas frustrações está na continuação da viagem em direcção às novas paragens desconhecidas como fórmula única de ganhar a dimensão que lhe falta para aguentar as investidas dos encostados.
Deixa um velho no Restelo a guardar a praia límpida e o penhasco altivo, encomenda-se e determina-se na ida.
Mas a dúvida invade-a: terá o velho a garra suficiente para guardar a praia? E, no regresso, quem regerá o penhasco?
Mas foi...
E andou, viveu, suou, chorou, riu e cresceu mas disseram-lhe que voltasse porque a praia estava suja e o penhasco tinha sido ocupado por quem não lhe queria bem.
Voltou com a determinação de retomar Ofiuza mas andara por fora tempo de mais e os que tinham ficado não lhe reconheceram o mérito de ter dado novos mundos ao mundo, de ter sido sábia e compassiva. Pior, disseram-lhe que tinha sido imperialista e exploradora dos submissos, que perdera o lugar.
E a serpente enroscou-se à espera de que os medíocres se entregassem à autofagia para poder, então, ressurgir, colocar os madraços em sentido e fazer a glória de Ofiuza.
Mas, perdida a dimensão do mar e à mercê dos hedonistas, a serpente duvida que os usurpadores sejam capazes de viver num sistema que lhes garante a liberdade porque esta pode, infelizmente, ser a grilheta da sabedoria.
A questão é agora a de saber quando será a hora da serpente. E também resta saber se então ainda haverá Ofiuza.
Fevereiro de 2016
Henrique Salles da Fonseca