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A bem da Nação

OCIDENTE CONTRA OCIDENTE – 2*

 

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I

 No plano lógico

 

Começando pelo argumento lógico, creio que ele pode ser apresentado na forma de uma pergunta muito simples: se os valores da liberdade e da tolerância se fundam na premissa de que os valores são arbitrários ou equivalentes, por que razão não são os valores da liberdade e da tolerância, ele próprios, apenas mais uma expressão de valores arbitrários e equivalentes, ou de simples preferências?

 

Esta pergunta muito simples ilustra um problema absolutamente crucial que os defensores da liberdade e da tolerância não deveriam deixar de enfrentar: é que, da premissa de que os valores são arbitrários ou equivalentes, não se extrai necessariamente a conclusão de que devemos respeitar os valores dos outros. Na verdade, a conclusão mais plausível é que qualquer conclusão é válida - dado que ela será ainda um valor e os valores, de acordo com a premissa relativista, são arbitrários ou equivalentes.

 

Num livrinho notável, intitulado Liberal Purposes: Goods, Virtues and Diversity in the Liberal State, o meu amigo William Galston, ex-Director do Institute for Philosophy and Public Policy da Universidade de Maryland at College Park e ex conselheiro do Presidente Clinton entre 1993 e 1995, sublinha a importância crucial de compreender como do relativismo não se extrai a tolerância, mas, pelo contrário, a luta de todos contra todos. Diz ele que "o cepticismo total relativamente ao bem não conduz à tolerância mas a uma luta sem constrangimentos entre diferentes estilos de vida, uma luta em que a força, não a razão, é o árbitro final"[8].

 

Gostaria de sublinhar este ponto, que me parece de crucial importância. Não se trata apenas de uma dificuldade intelectual. A experiência do século XX ilustra dramaticamente a impossibilidade de fundar a tolerância no relativismo de valores.

 

A título de exemplo, gostaria de recordar que esta foi uma das dificuldades intelectuais que levou à queda da Republica de Weimar e à subida de Hitler ao poder, bem como à emergência do comunismo soviético.

 

II

No plano histórico

 

É importante recordar – e aqui vou entrar no segundo passo do meu argumento – que o clima intelectual e moral de onde emergiu o nazismo era ele próprio um clima de profundo relativismo, de niilismo. Esta realidade tem sido recordada e ilustrada de forma contundente por inúmeros trabalhos, entre eles os do Prof. Fritz Stern, um dos vários eminentes académicos alemães exilados nos EUA durante e depois da II Guerra Mundial. Tendo declarado a chamada “morte de Deus” e a necessidade de ir para além do bem e do mal, Nietzsche e a filosofia alemã tinham aberto o caminho ao irracionalismo revolucionário do super-homem, o qual não é mais, afinal, do que o desespero do homem à deriva, sem valores nem referencias estáveis.

 

Referindo-se a Moeller von der Brook, o autor do livro O Terceiro Reich, que inspirou Hitler, o Prof. Fritz Stern descreve-o como um rebelde, um crítico das instituições e da rotina da vida social que "tinha rejeitado todos os valores menos um: o da luta pela existência". Os grandes inimigos de Van der Brook eram o Cristianismo e a chamada democracia burguesa, corporizados, aos seus olhos, na chamada "civilização comercial anglo-americana" – a expressão é de Van der Brook - que se fundava em valores morais substantivos voluntariamente aceites pelos indivíduos.

 

O mesmo aconteceu com o marxismo, expressão máxima do racionalismo dogmático no século XX. Karl Popper, na sua crítica ao marxismo – uma crítica demolidora e definitiva, como disseram, entre tantos outros, Bertrand Russell e Isaiah Berlin, – mostrou como esse racionalismo dogmático gerou um relativismo radical. Marx pregou que não existem padrões morais intemporais, mas apenas super-estruturas morais que em cada época histórica servem e legitimam os correspondentes modos de produção da vida material. Lenine explicitou de forma crua as consequências morais deste relativismo historicista: “na época histórica da emergência do proletariado e do socialismo, – escreveu Lenine – é moral o que serve os interesses do proletariado e do socialismo, e é imoral o que os contraria”.

 

Conhecemos hoje o trágico preço humano que custou a engenharia social comunista inspirada por este relativismo radical. Eis como Karl Popper denunciou esse relativismo moral do marxismo: “Em capítulos anteriores, fiz referência ao positivismo moral (especialmente o de Hegel), a teoria de que não há qualquer outro padrão moral a não ser aquele que existe; aquilo que existe é razoável e bom; portanto, é o direito. A força desta teoria é esta: uma crítica moral de um estado de coisas actual torna-se impossível, uma vez que é esse próprio estado de coisas que determina o padrão moral das coisas. Ora a teoria moral historicista que estamos a considerar (de Marx) nada mais é do que uma outra forma de positivismo moral. Porque ela sustenta que a força vindoura é o direito. O futuro toma aqui o lugar do presente – é tudo. E o aspecto prático desta teoria é o seguinte: uma crítica moral do estado de coisas vindouro é impossível, uma vez que esse estado determina o padrão moral das coisas.”[9]

 

Não deixa de ser curioso notar que também Friedrich Hayek denunciou o positivismo como estando na origem do fenómeno totalitário: “É apenas demasiado verdade, como reconheceram não apenas opositores do positivismo como Emil Brunner, mas no fim até positivistas de toda a vida como Gustav Radbruch, que foi a prevalência do positivismo que tornou indefesos os guardiães da lei contra os novos avanços do governo arbitrário”[10].

 

E Hayek reforça a sua crítica ao positivismo citando Emil Brunner: “O Estado totalitário é simples e somente o positivismo legal em prática política”[11].

 

Finalmente, Hayek sublinha que a defesa da liberdade sempre esteve associada à defesa de certos princípios morais, nunca completamente articulados em documentos constitucionais: “Um sistema desse tipo (de liberdade) terá possibilidades de ser alcançado e mantido apenas se toda a autoridade, incluindo a da maioria, for limitada no exercício do poder coercivo por princípios gerais com os quais a comunidade se tenha identificado. A liberdade individual, onde quer que tenha existido, tem sido sempre produto de um respeito dominante por esses princípios, os quais, no entanto, nunca foram completamente articulados em documentos constitucionais”[12].

 

*

 

Gostaria ainda de recordar que também Isaiah Berlin, – o famoso filósofo da liberdade e do pluralismo – fez expressa e repetida referência à necessidade de um absoluto moral como trincheira contra a tirania. Na sua célebre palestra sobre os dois conceitos de liberdade, Berlin afirma que “A crença genuína na inviolabilidade de uma área mínima de liberdade individual implica uma posição absoluta” e mais adiante: “Para Constant, Mill e Tocqueville e para a tradição moral em que se inserem, nenhuma sociedade é livre a menos que seja regida por dois princípios interligados: primeiro que só os direitos e não o poder, podem ser considerados absolutos, pelo que todos os homens, qualquer que seja o poder que os governa, têm o direito absoluto de se recusarem a comportar desumanamente” e finalmente: “E são regras como estas (de humanidade) que são violadas sempre que uma pessoa é declarada culpada sem julgamento, ou punida com uma lei retroactiva; sempre que os filhos são forçados a denunciar os pais, os amigos a traírem os amigos, os soldados a usarem métodos bárbaros; sempre que os homens são torturados ou assassinados, ou minorias massacradas porque provocam a irritação de uma maioria ou de um tirano. Tais actos, ainda que legalizados pelo soberano, causam horror mesmo nos dias de hoje, e isso resulta do reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas – à imposição da vontade de um homem sobre outro”[13].

 

Julgo que Isaiah Berlin captou de forma extraordinariamente certeira um dos segredos do totalitarismo do século XX: a revolta contra o “reconhecimento da validade moral – independentemente das leis – de algumas barreiras absolutas à imposição da vontade de um homem sobre outro”.

 

*

 

Ora foi precisamente este fenómeno que também Leo Strauss – o eminente filósofo alemão exilado na América – apontou como gerador do totalitarismo moderno: “Ao abandonar a ideia de direito natural, o pensamento alemão criou o “sentido histórico” e assim foi conduzido no final ao relativismo total. O que era uma descrição bastante exacta do pensamento alemão há vinte e sete anos parece agora – Strauss escrevia em 1950 – aplicar-se ao pensamento ocidental no seu conjunto.

 

Não seria a primeira vez que uma nação, derrotada no campo de batalha e, por assim dizer, aniquilada como entidade política, privara os seus conquistadores do mais sublime fruto da vitória por meio da imposição sobre eles do jugo do seu próprio pensamento”[14].

 

Para Strauss, o relativismo estivera na base do fenómeno totalitário que fora derrubado pelas democracias ocidentais. Mas, no plano puramente intelectual, o relativismo sobrevivera à derrota do totalitarismo e dominava hoje – em 1950 – a atmosfera intelectual e moral das democracias. O triunfo do relativismo era, para Strauss, a origem daquilo que designou por crise da cultura ocidental moderna: “A crise da modernidade revela-se no facto, ou consiste no facto, de que o homem ocidental moderno já não saber aquilo que quer – já não acreditar que pode saber o que é bom e mau, o que é certo e errado. Até algumas gerações atrás, era geralmente aceite que o homem pode saber o que é certo e errado, qual é a ordem de sociedade justa, ou boa ou melhor – numa palavra, que a filosofia política é possível e necessária. No nosso tempo, essa fé perdeu o seu poder”[15].

 

Por outras palavras, – e aqui concluo o segundo passo do meu argumento – quer no plano lógico, quer no plano empírico, a liberdade e a tolerância parece ficarem ameaçadas sem valores estáveis, uma vez que a elas próprias não pode ser atribuído um valor estável. O problema crucial da liberdade e da tolerância, quando elas são fundadas apenas na ideia de que os valores são meras preferências, é que não há nenhum motivo para que a liberdade e a tolerância não sejam, elas próprias, simples preferências. Este ponto é de capital importância e mostra que o relativismo não constitui na verdade um fundamento para a liberdade.

 

Isto conduz-nos ao terceiro momento da nossa discussão, o de saber onde pode ser procurado um fundamento para a liberdade e a tolerância.

 

(continua)

 

João Carlos Espada.jpg

João Carlos Espada

 

* Comunicação apresentada ao IX Congresso Católicos y Vida Pública, Madrid, Universidade CEU San Pablo, 16-18 de Novembro de 2007

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