OCIDENTE CONTRA OCIDENTE – 1*
Não é fácil definir Ocidente, ou civilização ocidental. No prefácio ao seu grande livro Civilisation, Kenneth Clark observou que essa dificuldade de definição em regra acontece com tudo o que é realmente importante.[1] Também ele disse que não sabia definir exactamente o conceito de “civilização”, mas isso não queria dizer, acrescentou, que ele não soubesse reconhecer claramente a diferença entre civilização e barbarismo. Penso que todos concordamos com Kenneth Clark: todos sabemos distinguir civilização de barbarismo e todos sabemos distinguir a civilização ocidental de outras civilizações.
Um dos traços distintivos da civilização ocidental reside no facto de ela assentar num diálogo e numa tensão entre pelo menos três tradições fundamentais: Atenas, ou a tradição da filosofia clássica; Jerusalém, ou a tradição judaico-cristã; e os iluminismos modernos – para os quais, curiosamente, não existe consenso sobre o nome de uma só cidade: Edimburgo, Londres, Filadélfia, Königsberg e Paris seriam alguns dos candidatos rivais.
Este simples enumerar de várias cidades e várias tradições já revela uma característica fundamental do Ocidente: a ausência de uniformidade. O Ocidente assenta numa conversação a várias vozes. E é natural que umas sejam em dadas circunstâncias mais escutadas do que outras. Mas todas continuam a ter o seu lugar.
Para um observador externo, não familiarizado com o modo de vida ocidental, esta conversação a várias vozes parece sinal – ou mesmo sinónimo – de grave crise ou decadência. Mas não é esse o nosso entendimento, no Ocidente. Nós pensamos que haveria sinal de crise ou decadência se este diálogo fosse abruptamente substituído por um monólogo em que uma só voz procurasse abafar ou calar todas as outras.
Como escreveu o grande filósofo inglês do século XX, Michael Oakeshott, as nossas sociedades livres assentam num diálogo a várias vozes, que ele caracterizou como vozes do passado, vozes do presente e vozes do futuro. Há ocasiões em que algumas dessas vozes são mais escutadas do que outras. Mas, enquanto a todas for dada voz, as nossas sociedades permanecerão livres.
Duzentos anos antes, um outro grande filósofo britânico, o irlandês Edmund Burke, definiu de forma semelhante o contrato subjacente às sociedades livres: um contrato existente entre gerações, as que já viveram, as que vivem hoje e as que hão-de vir.
Este é um entendimento profundamente ocidental do Ocidente – um entendimento que é particularmente difícil de entender do exterior da tradição ocidental. Mas também há formas internas ao Ocidente de não entender, ou entender mal, ou desvirtuar este entendimento. Uma das formas mais frequentes ocorre quando uma das vozes que fazem parte do Ocidente começa a tentar excluir as outras da conversação – designadamente usando como argumento para essa exclusão a acusação de que as outras vozes são estranhas, ou não são dignas, do Ocidente.
Seria possível citar inúmeros exemplos deste fenómeno de inspiração, e por vezes também aspiração, autoritária. O recente caso Rocco Buttiglione que teve lugar no Parlamento europeu é um exemplo de uma tentativa – parcialmente vencedora – de excluir pontos de vista cristãos do diálogo europeu. A recusa de inclusão – no prefácio ao defunto projecto de Constituição europeia – de uma referência ao contributo do Cristianismo para a civilização europeia é outro exemplo de uma tentativa de excluir uma voz – de novo, uma voz Cristã – do diálogo ocidental.
Estas são apenas duas das muitas manifestações que na Europa têm vindo a ocorrer de uma estranha campanha sistemática para excluir o cristianismo da vida pública europeia. O nosso Amigo George Weigel, (...), examinou este problema com grande profundidade no seu livro O Cubo e a Catedral: A Europa, a América e a Política sem Deus[2]. Também o Professor Robert P. George analisou esta tentativa de excluir o cristianismo da praça pública, neste caso a praça pública norte-americana, no seu livro The Clash of Orthodoxies: Law, Religion and Morality in Crisis [3]. Como sabemos, esta tentativa de exclusão do cristianismo da praça pública – a chamada “naked public square” – tem constituído também um tema central da excelente revista norte-americana First Things, dirigida pelo Padre Richard John Neuhaus. E os argumentos de George Weigel, Robert P. George e Richard John Neuhauss atingiram já tal repercussão que o próprio semanário The Economist dedicou (...) uma separata especial de 20 páginas ao tema da “Religião e Vida Pública”[4].
Eu gostaria de subscrever os pontos de vista de George Weigel, Robert P. George e Richard John Neuhaus e gostaria de sugerir uma ideia adicional: a par da tentativa de excluir o cristianismo da praça pública ocidental, existe uma outra tentativa paralela, a meu ver com as mesmas origens, a tentativa de separar a Europa da América, ou a América da Europa, reclamando apenas para uma delas a pureza, ou a autenticidade do legado ocidental.
Na história das ideias, há um longo reportório de tentativas deste tipo – quase sempre originárias da Europa e visando excluir a América. As mais recentes e mais poderosas, e também com as consequências mais trágicas, ocorreram no século XX e estiveram associadas aos dois grandes totalitarismos que mancharam o século passado: o nacional-socialismo alemão e o comunismo soviético.
Um distinto politólogo da Universidade de Virgínia, o Prof. James Ceaser, recordou recentemente no Estoril, nos XII Encontros Internacionais de Estudos Políticos, a genealogia do anti-americanismo na Europa, desde ainda antes da fundação da República Americana, em 1776, até ao presente[5]. Vale a pena recordar apenas alguns dos episódios intelectuais mais recentes dessa narrativa.
Em 1935, o filósofo alemão Martin Heidegger, que ficou célebre pela sua associação ao nazismo, da qual nunca se retratou, apresentava da seguinte forma a sua ideia de que a Europa se situava “no meio” entre o americanismo e o bolchevismo: “A Europa encontra-se actualmente presa numa grande tenaz, apertada entre a Rússia de um lado e a América do outro. De um ponto de vista metafísico, a Rússia e a América são a mesma coisa, com o mesmo desolador frenesi tecnológico e a mesma organização, sem restrições, do homem comum”[6].
Como recordou o Prof. James Ceaser, a América e a União Soviética eram para Martin Heidegger, o eixo do mal. Mas, em bom rigor, Heidegger pensava que a América representava uma ameaça maior, uma vez que, disse ele, “o bolchevismo é apenas uma variante do americanismo”.
Quando os Estados Unidos declararam guerra à Alemanha nazi, Heidegger escreveu que “o mundo anglo-saxónico do americanismo está determinado em destruir a Europa”. Na sua opinião, a Europa estava ameaçada de americanização, estava a tornar-se demasiado parecida com a América, mas ainda podia salvar-se e esse era o propósito do nazismo: “rejeitar o americanismo e expulsá-lo para o outro hemisfério”. Como recordou o Prof. James Ceaser, o caminho para a salvação da Europa, no entender de Martin Heidegger, estava no anti-americanismo.
É hoje frequentemente esquecido que, depois da II Guerra Mundial e da derrota do nazismo alemão, alguns dos mais célebres discípulos da filosofia de Heidegger se encontraram na extrema-esquerda europeia. Os marxistas Herbert Marcuse, Jean- Paul Sartre e Alexandre Kojève – todos admiradores da filosofia de Heidegger - retomaram o ataque do seu mestre à América, embora desta vez o associassem à defesa do comunismo e da União Soviética. Para estes autores, tal como antes para Heidegger, a América representava o império do autoritarismo burguês, empresarial e religioso, camuflado pelas vestes hipócritas da liberdade formal.
Também Jean Baudrillard, um dos líderes do pensamento pós-moderno francês contemporâneo, encabeçou nos anos de 1990 os ataques à América. Durante a primeira Guerra do Golfo, em 1991, Baudrillard escreveu que a mais profunda fonte de barbarismo é hoje em dia a América – e que a sua derrota constituiria o primeiro passo no sentido da libertação do despotismo exercido pelo tecnologismo. Regis Debray, o célebre antigo porta-voz da revolução cubana na Europa, condenou veementemente a intervenção da NATO no Kosovo e, voltando a usar a expressão de Heidegger, afirmou que esta era uma ocasião única para a Europa rejeitar o americanismo e “voltar a empurrar a América para o outro hemisfério” [7].
A questão que gostaria de colocar é a de saber se existe realmente algo de comum às tentativas de separação da Europa e da América, por um lado e, por outro, às tentativas de exclusão do Cristianismo da vida pública das nossas democracias ocidentais.
E eu gostaria de responder que sim, que existe algo de importante em comum. Em primeiro lugar, como já referi, existe uma tentativa de silenciar a conversação a várias vozes que constitui a base da civilização ocidental. Em segundo lugar, essa tentativa dirige-se em particular contra a voz da religião cristã. E, quando na Europa sobe actualmente a campanha anti-americana, um dos aspectos que mais violentamente é criticado na América é a forte presença da religião cristã na sociedade americana. Por outras palavras, o actual anti-americanismo na Europa é em grande medida expressão da hostilidade contra o cristianismo.
Esta hostilidade contra o cristianismo visa reescrever, ou redesenhar a história e a natureza do Ocidente em bases totalmente novas. Ela visa reescrever, ou redesenhar, a história ou a natureza da liberdade em termos totalmente novos. E, no centro dessa tentativa, está a ideia de que a liberdade e o ocidente se fundam na relatividade ou arbitrariedade dos valores morais substantivos.
Esta ideia de relatividade ou arbitrariedade dos valores morais é chave para compreender o tempo actual. Com efeito, é hoje frequente ouvir dizer – desde logo nos meios de comunicação social, por vezes até nas universidades – que aquilo que distingue uma cultura de liberdade é a inexistência de valores impessoais ou supra- pessoais.
Por outras palavras, os valores seriam meras preferências, arbitrárias e equivalentes entre si. Dado que, segundo esta perspectiva, cada um teria a sua verdade, a liberdade e a tolerância seriam então produto da impossibilidade de estabelecer qualquer hierarquia entre as verdades de cada um. Deste ponto de vista, portanto, a defesa de uma hierarquia objectiva ou supra-pessoal de valores – em particular, a defesa dos valores substantivos do Cristianismo – seria já uma ameaça à liberdade e à tolerância, uma espécie de visão nostálgica que conduziria necessariamente ao autoritarismo.
Eu gostaria de argumentar que este ponto de vista – que poderíamos designar por relativista – está equivocado, por uma razão fundamental: porque ele não consegue sustentar o valor que diz defender, isto é, o valor da liberdade. E gostaria de apresentar brevemente o meu argumento contra o relativismo em três passos: primeiro, no plano puramente lógico; depois, no plano histórico, designadamente no plano da história política do século XX; em terceiro lugar, e finalmente, tentarei sugerir como o Cristianismo na verdade constitui um dos fundamentos incontornáveis da civilização ocidental, a civilização da liberdade.
(continua)
João Carlos Espada
* Comunicação apresentada ao IX Congresso Católicos y Vida Pública, Madrid, Universidade CEU San Pablo, 16-18 de Novembro de 2007