O TOPO DO ICEBERGUE
O contragolpe de Erdoğan
O presidente islâmico Erdoğan utilizou o golpe militar de 15 de Julho para lançar um contragolpe que está a fazer mergulhar a Turquia no caos e a isolá-la internacionalmente.
Hoje, 19 de Julho, o governo demitiu mais de 15.000 funcionários no Ministério da Educação, 257 funcionários no gabinete do primeiro-ministro e 492 clérigos na Direcção dos Assuntos Religiosos. Além disso, mais de 1.500 reitores universitários foram convidados a demitir-se.
A purga seguiu-se à demissão de 8.800 polícias, e às prisões de 6.000 soldados, 2.700 juízes e promotores, dezenas de governadores, e mais de 100 generais – ou pouco menos de um terço do corpo. 20 sites de notícias também foram bloqueados. E tudo isto num estado em pé de guerra contra os Curdos e na fronteira da Síria.
O conflito aberto entre as Forças Armadas que garantem a laicidade do Estado, e o governo islâmico do AKP já vinha de trás. A política de islamização em slow-motion parecia estar a levar a melhor, após purgas maciças no corpo de oficiais.
Contudo, desde os protestos em massa em 2013 na Praça Taksin, a sociedade turca ficou dividida.
O presidente e o governo transformaram metade do eleitorado do AKP em militantes e recusaram-se a ouvir a outra metade e a maioria da elite turca.
Em política externa, Erdoğan proclamava “zero problemas com os vizinhos” mas conseguiu deteriorar as relações com os parceiros globais e regionais.
Com a crise na Síria, provocou o regresso das lutas no Curdistão turco, colocando o país em estado de guerra. No Egipto, o seu protegido islamita, o general Mohamed Morsi, foi deposto. A relação com a União Europeia ficou arruinada após a Alemanha reconhecer o genocídio arménio de 1915.
Após décadas a lutar por esse objectivo, a Turquia perdeu a oportunidade de aderir à UE num futuro previsível. As tensões com os Estados Unidos cresceram com a questão curda. O abate do bombardeiro russo provocou uma crise com Moscovo.
Perante esta deterioração do regime, os adversários militares do presidente avançaram a 15 de Julho. Sobre o pronunciamento falhado, muito iremos saber nos próximos dias e semanas.
Como foram capturados o chefe do Estado-Maior General Hulisi Akkar e outros altos comandantes refém dos rebeldes? Porque foi ordenado o bombardeio do edifício do Parlamento turco? Porque falhou o golpe? Porque faltou coordenação?
O golpe de 15 de Julho – semelhante ao de 1960 – foi organizado por oficiais intermédios que formaram um Conselho da Paz. Fala-se que o líder foi um comandante na reserva da Força Aérea.
Os comunicados lidos na TRT falavam de uma Turquia de regresso a Ataturk. Mas há indícios de que tinha apoiantes do movimento Gülen nas forças armadas. Contudo, a Turquia é o país dos documentos forjados.
Os serviços de informações souberam da tentativa de golpe apenas 5 horas antes. Se o 1º Exército com sede em Istambul, e o seu Comandante Gen. Ümit Dündar tivessem avançado em força, talvez a história fosse diferente.
Assim, apenas unidades isoladas ocuparam o Aeroporto Atatürk e cortaram as pontes do Bósforo. O gen. Dündar chamou as unidades aos quartéis, e o golpe colapsou em Istambul, a zona europeia da Turquia. No resto do país, foi caindo aos poucos durante a madrugada de 16 e Ümit Dündar passou a chefe do estado maior do Exército. Até ver.
Começou então na manhã de 16 de Julho o contragolpe de Erdoğan e que continua em força. Fala-se de mais de 2800 militares, incluindo cinco generais, e 2745 juízes e muitos jornalistas presos, números a confirmar. O espancamento dos militares derrubados pelos militantes do AKP também nada augura de bom.
O contragolpe de Erdoğan está a consistir num expurgo radical dos presumíveis Gulenistas nos tribunais supremos e intermédios. As listas já estavam preparadas.
Nada de bom virá da Turquia nos tempos mais próximos. A mão de ferro de votantes que Erdoğan converteu em militantes promete o pior. Desde o fim de semana de 17 de Julho, EUA e a União Europeia já estão a passar para o plano B de isolamento do regime turco.
A deriva de Erdoğan para a ditadura ou “democracia plebiscitaria” sem poderes independentes já recebeu avisos de John Kerry, da União Europeia, da chanceler Merkel, da NATO de que não pode continuar. E não recebeu apoio dos países árabes. A questão dos refugidos tornou-se, novamente, dramática.
À medida que continuar a eliminar o Estado de Direito, num processo que já vinha de trás, Erdoğan vai ter que contar com a oposição dos EUA e da União Europeia. A política joga-se em muitos palcos e do icebergue só se vê o topo.
Contudo, metade da nação turca sente-se bem com o estilo autoritário e a arrogância de Erdoğan. Quase 50% deram-lhe a maioria absoluta do Parlamento em Novembro do ano passado. E só o trabalho de uma geração poderá mudar este culto do poder e quebrar o fatalismo otomano. É uma questão cultural, e não tem solução política à vista.
Por outro lado, e por paradoxal que seja, o governo Erdoğan foi salvo pelos meios de comunicação turcos, que ele perseguiu nos últimos anos. Sem a CNN-Türk, NTV e outros canais que desafiaram as ordens dos revoltosos, e lhe deram palco a para chegar às massas, o golpe poderia ter sucesso. A própria comunicação do presidente às massas populares via telemóvel ficou um ícone da política contemporânea.
Será que Erdoğan se vai render aos meios de comunicação livres? Certamente que não. Mas os meios não o vão ajudar também. Um governo eleito é melhor que um governo golpista.
O governo em funções foi eleito e deve ser substituído nas urnas. Se não fosse sacrificado o governo eleito em 1960 por um golpe militar, talvez a democracia turca fosse hoje muito mais forte.
Talvez tenha passado a era dos golpes militares. Mas a paz não começou.
As portas do inferno estavam entreabertas. Agora ficaram escancaradas. Razão de sobra para o Ocidente se precaver e lutar ainda com mais denodo pelos valores que inventámos de paz e de respeito. Paz e respeito, sim mas estupidez e cobardia, não.
Aguardemos.
19 de Julho de 2016
Mendo Castro Henriques
Faculdade de Ciências Humanas, Universidade Católica Portuguesa