O PROBLEMA IBÉRICO
segundo Fernando Pessoa
Fortemente aristocrática na sua constituição espiritual, ferrenhamente católica no seu habitus moral, absurdamente tradicionalista no conjunto quotidiano dos seus usos e costumes, Castela apresenta-se como um elemento anteprejudicador de uma confederação, e como um elemento (e é isto que aqui importa) violador da nossa grande tradição árabe — de tolerância e de livre civilização. E é na proporção em que formos os mantenedores do espírito árabe na Europa que teremos uma individualidade à parte.
Assim o espírito castelhano é fundamentalmente inimigo, no seu espírito, da Ibéria. Mas estes característicos, que tornam Castela magnificamente incompetente para hegemonizar na Ibéria admiravelmente a dispõem para equilibrar as tendências (em outros sentidos excessivas) dos dois outros povos ibéricos. Por onde se vê que tudo se acha harmonizado pelo Destino para a futura confederação.
O segundo grande inimigo da Ibéria é a França. O espírito francês é o grande inimigo do espírito comum às populações ibéricas. Grande inimigo não só na sua constituição espiritual, senão também nos efeitos que tem tido para a degradação e decadência do autêntico espírito ibérico. A França herdeira directa da tradição romana, no que ela tem de estreitamente grega, a França representa na Europa não um país criador (como a Itália de onde vem a arte, ou a Inglaterra, de onde nasce a política), mas um país distribuidor e aperfeiçoador dos elementos que os outros povos fornecem. Tão pouco criador é o espírito francês que, para obter a única ideia que dentro dele se realizou, teve de chamar um suíço, Jean-Jacques Rousseau, e para pôr fim magnificamente à anarquia que daí adveio, teve de descobrir um italiano, Bonaparte.
Lúcidos, completos no seu nível inferior, os franceses têm sido os corruptores danossa civilização ibérica. O seu espírito romano, sem a força romana, é fundamentalmente inimigo do nosso espírito romano-árabe, ao mesmo tempo complexo e intenso, e disciplinado e rude.
O terceiro inimigo da Ibéria é a Alemanha.
Mas aqui temos mais a temer o espírito alemão que a Alemanha propriamentedita. Estes herdaram o espírito romano na sua parte superior (ao contrário dos franceses que lhe herdaram a parte que já neles era secundária, porque basilarmente grega). Mas casaram-no com aquele curioso elemento de incompletidão que é distintivo dos bárbaros do Norte, que não sabem equilibrar duas coisas [...]
Nós, ibéricos, somos o cruzamento de duas civilizações — a romana e a árabe. Na França e na Alemanha a civilização romana existe sobreposta ao fundo original, sem outro influxo civilizacional. Somos, por isso, mais complexos e fecundos, de natureza, que a França ou Alemanha, que, quando tomarmos consciência da nossa ibericidade devem existir aproveitadamente no horizonte do nosso desprezo.
Fonte: texto de Fernando Pessoa
MÉRTOLA NO ALENTEJO: LEGADOS ROMANO, ÁRABE E CRISTÃO