O MENDIGO DE TAMESLOHTE
As pessoas da elite espiritual são reconhecíveis até nos nossos dias. O viajante pode encontrá-las nas sociedades do Islão que conservam os traços da tradição, como em Marrocos. Aí, reconheci um deles, em Tameslohte, a meio caminho entre Marrakech e o Atlas, uma noite, sob os andrajos de um mendigo, nessa aldeola marcada pela santidade, sob a arcada do pórtico que precede a casbá dos chorfas. A atmosfera estava impregnada pelo odor acre do óleo que emana dos moinhos. Estávamos na época da apanha: a floresta de oliveiras que envolve o aglomerado oferecia uma rica colheita. Bela barba, aspecto robusto, o mendigo que vinha em minha direcção tinha como que escapado de A Morte da Virgem, pintado por Caravaggio; era tão humilde, tão robusto quanto uma das personagens que rodeiam os restos mortais da santa defunta, nesta obra que recentemente voltei a ver no Louvre.
Chegando perto de mim, procurou os meus olhos na penumbra e, tão singelo quanto solene, executou dois gestos que resumiam a sua condição, o seu empenho, o seu itinerário. Com a mão esquerda, indicou-me a terra e o desprezo que ela lhe suscitava e ergueu a mão direita num gesto que oferecia o seu assentimento ao céu; um concentrado de energia empertigava o corpo dele que repentinamente se encontrava como que pronto para a ascensão.
Com este encadeamento de mímicas teatrais, parecia querer dizer: nada existe aqui em baixo, lá em cima está o Ser. Tal é a eloquência muda do mendigo aristocrático marcado pela ignorância, pertencente à elite da elite que ilumina o não-saber, irmão e émulo tanto do mestre de Bistâm como do homem de Tabriz, sobrevivente no nosso século das preservadas terras dos petrodólares e do wahhabismo.
Foi esta distinção entre elite e vulgo que se manifestou sob a pressão de uma democratização sem democracia, generalizando, pelo seu populismo, o ensino, sem considerar a qualidade e sem readaptar o princípio hierárquico para constituir uma elite republicana ou democrática. É então que se dá o triunfo do vulgo o qual, ao adquirir o domínio de uma técnica, passa da alfabetização à especialidade sem se adestrar à experiência do antigo, relativamente ao saber a que noutros tempos se designava por humanidades e que nos nossos dias se associa à inutilidade.
Nesta forma de inculcar o ensino de uma especialização num espírito amnésico ou virgem, descubro um sinal suplementar que confirma a americanização do mundo. Deste modo, o vulgo, ainda que mestre de uma especialidade técnica, não se transformou em figura aristocrática pela simples razão de que é o produto de uma instrução sem cultura. São os instruídos incultos que mais arruínam os homens.
Sem hesitar, prefiro os iletrados de elevada cultura, à semelhança do mendigo de Tameslohte.
Abdelwahab Meddeb
BIBLIOGRAFIA:
A DOENÇA DO ISLÃO, Abdelwahab Meddeb, “Relógio d’Água Editores”, Março de 2005, pág. 148 e seg.