O HOMEM-ESPUMA
Ele aí vem. Ligeiro, agitado, caprichoso, vão. Sem densidade e sem espessura. Sem raízes e sem passado. Nasceu hoje. Produto de uma sociedade sem pai e sem mãe, de uma sociedade espantosamente tumultuária e espantosamente célere no seu curso declivoso, o destino desse homem parece flutuar num momento e num momento sumir-se. Apareceu e desapareceu, embora a sua existência venha a ter mais de oitenta anos.
O homem-espuma sucede ao homem-máquina, ao homo mechanicus, de que fala Lewis Mumford. O homo mechanicus é um conquistador por natureza. Nenhum Alexandre, nenhum César, nenhum Tamerlão possui semelhante império. Nem de longe, na terra, no ar e no mar, esse império vastíssimo tende a alargar-se a tudo, a transformar tudo, a dominar tudo e absolutamente tudo. O homo mechanicus é o homem da ruptura. Da ruptura do equilíbrio entre ele e o seu meio (natural); entre ele e o outro (ou os outros); entre ele e ele; angústia, ansiedade, insatisfação, inquietude contínua, morbidez subjectiva, difícil, por vezes, de ser verificada clinicamente, mentalmente excessivo – irrompe mesmo nas próprias disciplinas científicas – sentimento de solidão até aos ossos. O homo mechanicus é o homo cyclopicus, género abarcando as três espécies que os mitógrafos gregos descrevem. À semelhança dos Ciclopes, ele sofre de gigantismo, à semelhança dos Ciclopes, ele tem uma só vista na testa, muito grande, muito fixa e muito profundamente cavada que só lhe permite ver num sentido – de frente – cortando-lhe todas as restantes perspectiva; à semelhança dos Ciclopes, ele possui, no prolongamento, mediato ou imediato do próprio corpo, um poder, uma força e uma energia que excedem tudo aquilo que a fantasia mais fecunda e mais ousada pôde imaginar ao longo de milénios da história humana.
[Salva-o o Homo Misericors, verdadeiro hino à misericórdia que é uma] constelação formada pela ternura, a bondade, a paciência, o respeito, a servicialidade, a compaixão, a reconciliação, a longaminidade, a indulgência – não demissiva da exigência – a atenção ao outro, nas suas dimensões do outro, a vontade de o aceitar, de o compreender, de o escutar ou, porventura mesmo, de o ajudar a libertar-se, de ir ao seu encontro, sobretudo se a sua situação é dolorosa, complicada e difícil.
A misericórdia não é sinónimo nem de pietismo privatista, nem de sentimento romântico, efusivo de mares de lágrimas sem sentido e sem motivo, nem paternalismo, materialismo e fraternalismo platónico ou platonizante. [A misericórdia] é um olhar que vivifica e não mata, salva e não condena, ergue e não deprime. É um impulso para agir sem cumplicidade e para reunir sem massificar. É uma vontade de sair de si,, da prisão do próprio ‘eu’, para transformar o mundo e se transformar a si mesmo em permanente e incansável reciprocidade.
É pela misericórdia que se salvam as relações de pessoa a pessoa, sobretudo quando essas relações, por este ou por aquele motivo, têm de ser longas, complexas, triturantes: no parentesco, na vizinhança, na situação profissional, no mais largo espaço social. É pela misericórdia que os grupos não se funcionalizam, não se homogeneizam e não se dissolvem. É pela misericórdia que a política não degenera em maquiavelismo de príncipe, individual ou colectivo. É pela misericórdia que inveteradas inimizades cessam, convertendo-se, porventura, no seu contrário. É pela misericórdia que diuturnos ressentimentos abrandam, lívidas invejas desaparecem, passos vacilantes se tornam firmes. É pela misericórdia que se abre o coração ao estrangeiro, se olha o insólito sem animosidade, como princípio, se encaram hábitos alheios e alheios sistemas de referência, sem atitudes condenatórias e sem julgamentos sumários. É pela misericórdia que se realiza a melhor apreensão e compreensão do mundo e da vida: a apreensão e compreensão dos místicos. (…)
A misericórdia é a grande via de acesso à transcendência.
In «Cristianismo e solidariedade: a utopia da misericórdia», José Eduardo Franco, BROTÉRIA, Julho de 2014, pág. 45 e seg.