O DUQUE DO TERCEIRO
O plebeu era veterinário mas só exercia em causa própria, herdado rico, solteiro e com alguns que se diziam filhos na mira das patacas. Mas não entra nesta história a não ser como amigo dos outros, o Duque e o Marquês.
O Duque, casado e medianamente remediado, vivia no terceiro andar de um prédio que herdara na praça com o nome de um seu famoso avoengo, também ele Duque. Só que o Duque do terceiro achava que um Duque se pode perfeitamente «et à laise» empoleirar numa peanha mas nunca viver num terceiro andar. Já lhe bastava a concorrência do da Terceira. Por isso se intitulava Marquês – que também o era – do mesmo patrónimo. Do fausto antigo, guardava o título, algum património que preservava quase religiosamente e um empregado doméstico que também herdara que conduzia a Duquesa nas suas digressões por aqui e por ali, servia à mesa e engraxava os sapatos de suas Excelências. A «esposa» era a porteira do prédio e viviam na cave com quintal nas traseiras. Tinham um filho que já era engenheiro e constava que republicano.
O outro nobre desta história tinha sido filho e irmão de Duques e agora era tio de Duque. Jurista, dizia a todo o som que nunca exercera e que, quando tinha sido estagiário no escritório de um Advogado ali à Boa Hora, fugia do escritório mal o patrono se ausentava com medo de que aparecesse algum cliente. Admitido à Ordem (ainda não havia nada destes exames de admissão que há hoje), dizia que tinha pago um ano de quotas e que mandara tudo às urtigas. Mas era o Senhor Dom… (nome a calar), dedicava-se a viver dos rendimentos e a praticar a arte campera da sua paixão. Culto e poliglota, enchia qualquer salão desta cidade capital ou de qualquer outra. Ria-se discretamente quando o «mordomo» do Duque do terceiro o anunciava pomposamente como «o Senhor Dom Doutor…» e não como manda a semântica «o Senhor Doutor Dom…».
Certa vez, o sobrinho Duque fez-se convidado para almoçar com o tio no restaurante que este habitualmente frequentava ali à Calçada do Marquês de Abrantes e pediu-lhe que aceitasse passar a usar o título de Marquês de (…) que também pertencia à Casa Ducal. Por sua morte, o título regressaria à origem até porque do tio nada constava quanto a descendência biológica quer legal quer legalizada. Nada como com o amigo veterinário a quem «saltam» filhos a cada esquina.
E se, até ali, o «Dom Doutor» e o Duque do terceiro se tratavam por «Parentes», a partir dali, ambos Marqueses, ironizavam tratando-se por «Colegas».
Chegada a entrega do Império à União Soviética, o Marquês Dom Doutor levou um grande chimbalau com as ocupações da Reforma Agrária e o Duque do terceiro perguntou-lhe como é que ele, entretanto, se governava. – Tudo bem, Colega, Nós, afinal, eramos muito mais ricos do que nos lembrávamos. E o Duque do terceiro soltou uma gargalhada de alegria expontânea como há muito o protocolo não ouvia.
– Oh Colega! E o nosso amigo veterinário?, pergunta o Duque do terceiro.
- Oh Colega! Esse é muito mais rico do que nós somados e é isso que dana os vinticinquistas.
E, já que neste dia assim «a modos que» tão especial, estamos numa de heráldica, como dizia D. João II, «Honny soit qui mal y pense» que o sapateiro remendão do meu avô traduzia por «Quem é que Vomecê julga que eu sou?», ou seja, qualquer coincidência é pura semelhança.
- Não, disse o Duque do terceiro, qualquer semelhança é pura coincidência.
- Oh Colega! Já estou confuso, disse o Marquês, deve ser deste seu “Cote du Rohne” travestido de “Costa do Castelo”. Como diz o meu maioral das vacas, «desculpem qualquer coisinha».
- Pois eu acho que de nada temos que pedir desculpa e até um dia destes vamos começar a discutir as «reaganomicas» à europeia que é como quem diz a moralidade e a racionalidade dos impostos directos. E então, sim, vamos ver os vinticinquistas a esmorecer a canção que já não fará qualquer sentido.
- AHAH!, riu o Marquês.
CAI O PANO DE CENA
Lisboa, 25 de Abril de 2021
Henrique Salles da Fonseca