O CINTO DA NOSSA CASTIDADE
As críticas à política de redução da despesa pública só fazem sentido por parte de quem considera que o pagamento das dívidas é «coisa de criança». Ora, o poço sem fundo que esses críticos julgam existir é mais uma ilusão que apenas revela o irrealismo de quem crê que o dinheiro nasce do prelo. Não, o dinheiro é o resultado da produção de bens e serviços, transaccionáveis ou não, mas sempre tendo origem no esforço de alguém que não a rotativa da moeda falsa.
Se conjugarmos a política de consolidação orçamental no sentido da anulação dos défices anuais e dos acumulados com a da restrição monetária para evitar o crescimento dos preços na espiral doentia por que já passámos, então a emissão monetária assume dimensões que quem nos conduziu ao colapso apelida de cilício ou até aponta como o cinto da nossa castidade.
A crítica que temos de aceitar é a de que no meio de todo o processo de financiamento das dívidas soberanas dos Estados mais perdulários há movimentos especulativos na certeza, porém, de que por enquanto nos resta pagar o que devemos (menos prosaicamente, «servirmos a dívida») e não esbracejarmos muito para conseguirmos que nos respondam positivamente enquanto formos progressivamente pedindo cada vez menos até que os saldos primários sejam positivos e possamos então começar a reduzir o stock total da dívida.
A pureza não especulativa dos capitais que nos financiam (e aos outros perdulários deste mundo) é matéria a que Dominique Strauss Kahn ameaçou dar tratamento e todos fomos testemunhas da «estrangeirinha» que alguém lhe armou; o ostracismo a que James Tobin foi remetido em Yale lá pelos idos de 80 do século passado também há-de querer dizer qualquer coisa... Sim, é desejável que cheguemos a um acordo a nível dos 27 Estados europeus com vista à taxação dos movimentos transfronteiriços de capitais especulativos. Mas de momento interessa sobretudo cuidar do acesso de Portugal aos meios necessários ao financiamento dos seus défices e menos avaliar as intenções dos proprietários desses mesmos capitais cuja origem se deseja transparente. Mas para ter acesso a esses meios de cobertura das suas necessidades, torna-se imprescindível que Portugal pague atempadamente as suas dívidas sob pena de deixar de merecer a confiança dos seus credores e o pagamento atempado dessas dívidas só se consegue no imediato pelo recurso a capitais alheios, sucessivamente menores até que desnecessários. Gerir as taxas de juro não é coisa que um devedor maneje com desenvoltura. Eis por que a Taxa Tobin poderia ser importante nesta altura.
Tudo para concluir que o «modelo de desenvolvimento» por que voltámos neste 2016 a trilhar em direcção ao abismo tem que ser modificado de modo a que regressemos à produção dos bens transaccionáveis que entretanto nos habituámos a importar pois só desse modo poderemos reduzir défices externos, criarmos as condições para abrandar e anular o ritmo de endividamento externo do sistema bancário e recuperarmos a credibilidade externa que já por diversas vezes nos falhou. Sempre falhou quando a política foi – e voltou agora a ser – de fomento da Procura e desleixo da Oferta.
Mas esta reviravolta só seria possível acordando uma população adormecida pelos «cantos de sereia» que a demagógica compra de votos (nos sucessivos actos eleitorais) fez soar ao longo de quase 40 anos e, num país como o nosso que deve bater o recorde europeu na propensão marginal à importação, o primeiro toque de alvorada tinha que seguir a pauta da drástica redução do consumo. Este, também, um dos motivos para restringir os meios internos de pagamento, ou seja, o não incremento da massa salarial global.
Daqui resulta obviamente um grande desconforto entre os consumidores e isso desde a base social até às elites.
A solução está à vista: redução drástica da despesa pública corrente e relançamento da produção de bens transaccionáveis com firme incremento do empreendedorismo da juventude saída das Universidades que merecemos.
Enquanto não optarmos por modelo produtivo e deixarmos de formar a juventude em cursos balofos, resta-nos apertar o cinto da nossa desbragada castidade na espera duma putativa redenção por obra de milagre que a razão não produz.
Henrique Salles da Fonseca