O ABC DA PORTUGALIDADE
Texto de Vasco Pulido Valente , Público, 25/7/14:
«Um velho erro»
As dezenas de milhares de emigrantes “qualificados” de hoje são o equivalente aos meninos de 1870.
Desde quase há dois séculos que vários Governos decretaram a educação gratuita e universal e, às vezes mesmo, também obrigatória. Este preceito piedoso nunca se chegou a cumprir. Por uma razão muito simples: saber ler, escrever e contar não ajudava a população rural; e a escola diminuía ou anulava o valor económico dos filhos, que sempre serviam para guardar o gado ou malhar o trigo.
De resto, como é notório, na Europa nenhum país se esforçou por alfabetizar os seus súbditos (tirando a França, só existiam monarquias), pensando no que hoje se chama “crescimento”. Os protestantes queriam que as criancinhas conhecessem a Bíblia; os jacobinos queriam combater a “superstição” católica; e todos queriam reforçar a unidade da nação e o nacionalismo, no clima de conflito em que se vivia.
Por aqui, as coisas foram bem diferentes. Uma parte, embora pequena, da “inteligência” e do Estado, que o iluminismo e, a seguir, o liberalismo influenciou, achava que a educação iria salvar Portugal de um “atraso” insuportável e ridículo. Além disso, a escola e os professores não custavam caro e, gastando dinheiro em tanta obra inútil ou nociva, os Governos, por uma questão de prestígio, não se importavam de fazer aqui o que se fazia lá fora. Não admira que no fim do século XIX o positivismo (na versão corrigida de Littré) se tornasse a ideologia preferida do “progressismo” dinástico e, depois, da República: bastava, segundo essa receita, que os portugueses passassem da fase “metafísica” para a fase “positiva”, para que chovessem sobre eles prosperidades sem número, para espanto e reverência do mundo inteiro.
Ainda anteontem, na televisão, o professor Marçal Grilo, antigo ministro, mostrou como o erro pode perdurar, com a frescura de uma ideia nova. Marçal Grilo, como de resto o esclarecido António Costa, veio pela enésima vez comunicar aos papalvos que o maior recurso de Portugal são as pessoas. Evidentemente com a condição de que o Estado as “forme” ou “eduque”. Esta escola de pensamento não conseguiu até agora perceber (e nunca perceberá) que as dezenas de milhares de emigrantes “qualificados” de hoje são o equivalente aos meninos de 1870, que os pais sensatamente guardavam em casa. Uma espécie de beato como Marçal Grilo não se rala com certeza com o capital, a justiça, a fiscalidade e a reorganização do Estado de que a educação precisa para ser de alguma utilidade aos portugueses. Mas que António Costa partilhe com amor esse velho erro não o recomenda a ninguém.
Dele retiramos a seguinte frase: «Para ser de alguma utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de justiça, de fiscalidade e da reorganização do Estado.»
Vasco Pulido Valente o afirmou, pois, em percurso histórico pelas normas educativas que orientaram outros povos de longa data, os quais não se limitaram a “alfabetizar”, mas criaram regras de responsabilidades e orientação para a cidadania, em termos de “crescimento cultural”, uns, em função inicial do conhecimento bíblico, outros para combater o carácter supersticioso de uma educação de tipo religioso e dogmático. Certamente que lhes não faltaria o complemento de uma gradual abertura em estudos que distinguiriam competências e interesses e preparavam melhor para uma vida de progresso gradual, de acordo com o desenvolvimento científico, humanístico e económico, levando os povos a estabelecerem critérios de obediência a valores imprescindíveis na formação humana, e em função da coesão nacional.
Não assim em Portugal, em que o ensino, feito inicialmente nos mosteiros, excluía do povo a participação na formação educativa, destinada ao clero e à nobreza, a percentagem de analfabetismo sendo elevadíssima ainda no século passado, apesar de graduais reformas feitas já desde Pombal e sobretudo a partir da época liberal, o Estado passando a responsabilizar-se sobre o ensino e, nos novos tempos, tornando-o obrigatório, (obrigatoriedade fixada actualmente em doze anos de escolaridade), e retirando-lhe a obrigatoriedade da orientação religiosa (Não esquecer a pecha de um ensino de moldagem jesuítica e inquisitorial, fechado à descoberta científica, mau grado os estudos e as realizações científicas que os Descobrimentos possibilitaram e que alguns nomes bastante dignificaram).
Vasco Pulido Valente revela, todavia, o quanto é irrisória a qualificação e desprotegidos os qualificados, desde que ao espaço agrícola, feito outrora com a ajuda da mão de obra filial, os estudos excluíram a participação laboral daquela. (Também não protegem hoje, suficientemente, as múltiplas formações académicas em termos de eficácia e racionalidade formativas, observado o aparato explosivo de tantas formações inúteis e perversas nas escolas, após o 25 de Abril, as quais multiplicaram o preenchimento de banalidades nos horários escolares, com cursos de técnicas precárias, muito distantes dos objectivos de formação cultural, que deveria ser ponto assente em termos de “iluminismo” formativo. Uma escola de “eduquês” surgiu assim, floreada e retórica no palavreado justificativo da avaliação discente e da auto-avaliação docente, inútil e pouco séria num convencionalismo de pseudo-rigor objectivo, na realidade impeditiva de uma formação cultural de respeito e de seriedade. Porque, repetimos, como afirma Vasco Pulido Valente,.«Para ser de alguma utilidade aos portugueses, a educação precisa de capital, de justiça, de fiscalidade e da reorganização do Estado.»
Não é esse o nosso panorama educacional, pesem embora as afirmações de alguns políticos, feitas, provavelmente, como chamariz de votos, de que “o maior recurso em Portugal são as pessoas”.
Vem a propósito citar o artigo de João César das Neves, publicado no DN de hoje (28/7) com as suas achegas analíticas, de cunho menos pessimista, mas áspero na crítica:
«A charuteira»
Será Portugal um país desenvolvido, rico, civilizado? Os recentes episódios que revelam a teia de poder à volta do Grupo Espírito Santo (GES) justificam que se pergunte se estaremos no Terceiro Mundo.
A resposta da elite é clássica, e descrita genialmente por João da Ega: "Isto é uma choldra torpe. Onde pus eu a charuteira?" (Eça de Queirós, 1888, Os Maias, c. IV). Os nossos intelectuais sempre desprezaram pedantemente o País e sentem prazer em humilhá-lo. Daí poderíamos até concluir que, com uma elite destas, é impossível Portugal ser civilizado. Mas dizer isso seria tomar a mesma atitude dela, contra ela.
Temos bons argumentos para nos considerar desenvolvidos. Podemos invocar a nossa história, cultura e projecção mundial, que nos mostra como entidade indiscutivelmente sólida, relevante e digna. Mas isso não basta como prova. Países com património e herança semelhantes mostram falhas fatais de funcionamento, como a Grécia ou a Argentina. Carácter, presença e longevidade são condições necessárias, não suficientes para a civilização.
O teste decisivo do nível de um povo está nas crises. É nos momentos difíceis que se sente a fibra colectiva. A blitz de Londres mostrou o Reino Unido sumamente civilizado, e foi sob ocupação que países como a França, a Polónia e depois a Alemanha revelaram a sua eminência.
As crises socioeconómicas têm pontuado as fases do nosso progresso comunitário. Após o 25 de Abril, os programas de ajustamento de 1978-79 e 1983-85 marcaram a nossa estabilização como sociedade livre, admitida ao clube dos parceiros europeus. O crescimento subsequente fez-nos um país rico, como provou a recessão de 1993, a primeira na CEE, com comportamento claramente diferente de instituições, empresas e consumidores. Assim, pelo menos desde meados dos anos 1990 o País participa naturalmente e de pleno direito do concerto das nações civilizadas.
Será então possível saber se passámos no teste? Existem sinais negativos mas inofensivos. Política e orçamento correram mal, como em todo o lado. Também não se devem confundir crimes e erros com falta de civilização. O caso BPN é paralelo a Madoff, enquanto BPP, Banif e BCP são menores do que o Lehman Brothers. Problemas assim, mesmo degradantes, são comuns em comunidades sofisticadas. Olhando para os dados objectivos, dos níveis de rendimento aos da saúde, passando por comportamentos sociais e culturais, Portugal é sem dúvida um país civilizado. O único problema está nas elites, que frequentemente nos arrastam para o Terceiro Mundo.
A primeira prova é mediática. Perante esta austeridade, intelectuais, jornais, dirigentes e até juízes, mesmo sem charuteira, não tiveram pejo em dizer os maiores disparates. Com a arrogância habitual, a elite omitiu, distorceu, barafustou infantilmente e propôs soluções tolas. Mas isso não é o pior.
Na última década respira-se em Portugal um clima de compadrio, maquinação e cabala ao mais alto nível, que cresceu silenciosa mas inexoravelmente. Os anos Sócrates manifestaram-no a vários níveis; nos referidos escândalos bancários, por exemplo, além de irregularidades financeiras, sentiram-se intrigas palacianas vastas, profundas e complexas, sobretudo no BCP, que são alheias a uma sociedade equilibrada.
A recente explosão do GES, com todas as suas ramificações, constitui a flagrante confirmação pública da podridão latente nos níveis altos do nosso poder político-económico. O pior não está na dimensão da dívida ou nos efeitos económicos, mas no grau de conspiração e decadência que revela. Fenómenos destes são característicos de sociedades atrasadas, regimes corruptos, sistemas perversos. A sua ausência é condição indispensável da civilização.
Corrupção há em todo o lado. Os países cultos são, não imunes à doença, mas aqueles onde tradições, regras e instituições dominam essas tendências. Portugal é um país civilizado. Mas alguma elite mostra traços do Terceiro Mundo, da choldra torpe de Eça. A forma como limparmos o caso GES mostrará se passámos o teste para país desenvolvido.
Mas, retomando o tema “escola”, como mentora indispensável das populações, a nossa escola, estapafúrdia de indisciplina e reivindicação, é espelho de um povo indisciplinado e reivindicativo, que as mais das vezes não racionaliza os protestos, limitando-os à afirmação balofa de liberdades e direitos, sem o apoio esclarecedor de leituras, no sintetismo triunfal e lírico dos slogans ou das canções emblemáticas. Mas somos bonzinhos, coitadinhos, permitimos que a outra choldra as pregue, pela calada.