NÓS, OS DA «NAU CATRINETA»
ou
UM LISBOETA NA FAIXA DE GAZA
«Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar
Ouvide agora, Senhores
Uma história de pasmar
(…)»
* * *
Nos idos do século XVII, o lisboeta Filipe de Brito e Nicote foi eleito Rei da Birmânia, governou durante 12 anos e morreu à frente do seu exército em defesa do seu povo contra a invasão do vizinho cobiçoso; com um nome por mim indizível, a sua memória ainda hoje é recordada pelos birmaneses.
Fernão Mendes Pinto foi o primeiro europeu a chegar ao Japão, foi o Padre António de Andrade que descobriu o Tibete, em Ushuaia, no extremo sul da América do Sul, há uma portuguesa que tem um jardim infantil, na Noruega, em Allesund, a meio caminho do Cabo Norte, há um cemitério com terra de Portugal e o meu amigo Ricardo Louro foi fazer turismo na Faixa de Gaza.
Eu conto:
- Lisboeta do Paço do Lumiar, o Ricardo era caixeiro numa loja de tecidos na Baixa da cidade, mas sempre lhe sobrava mês no fim do dinheiro. Certa vez, notando-o preocupado, uma cliente arranjou-lhe trabalho numa empresa americana de construções metálicas que viera a Portugal recrutar pessoal para construção de pipelines na Argélia a que se seguiu o mesmo tipo de trabalho na Arábia Saudita.
Findos estes trabalhos seguiu-se a construção de uma base militar no sul de Israel junto à fronteira do Sinai.
Instalados e rotinados, decidiram os membros da equipa de trabalho a que o Ricardo pertencia passarem as folgas na praia mais próxima. E aí estão eles a caminho da Faixa de Gaza…
Escolheram o sítio onde o primo de um beduíno instalara uma tasca onde servia almoços. O camarão era grande, bom e barato pelo que foi só o Ricardo ensinar o primo do beduíno a cozinhar ao nosso modo e comer até fartar.
Com a instalação desta rotina nas folgas, a história podia acabar aqui, mas – e lá vem o tal «mas» que sempre baralha a escrita – houve um dia em que, estando todos a almoçar depois de uns quantos mergulhos no Mediterrânio, salta de um qualquer lugar um obus que estrondeia perto da tasca do primo do beduíno e um bocado da caliça do tecto cai mesmo dentro do prato do Ricardo. Esparramado molho e camarões na camisa e calções, o Ricardo deu um salto que fez a cadeira ir parar às urtigas, declamou afirmações que não reproduzo aqui e jurou nunca mais voltar à Faixa de Gaza. É que, enfim, obuses são coisas normais numa praia de aventureiros, mas caliça nos camarões é que é inadmissível.
Nunca mais voltaram à Faixa de Gaza.
E escolheram Eilat como alternativa, mas ali os camarões já tinham sido comidos pelos tubarões do Mar Vermelho. Naquelas praias nem os primos dos beduínos mergulham afoitos.
Entretanto, o trabalho na base militar chegou ao fim e o meu amigo Ricardo Louro passou-se para a Fonte da Telha onde os camarões não são servidos com caliça.
*
A «Nau Catrineta» é a história da nossa diáspora e, olhando com atenção, facilmente concluímos que, afinal, a Epopeia dos Descobrimentos foi apenas o dealbar da Lusitânia Armilar. Sim, a universalidade portuguesa continua a ser uma realidade a que sobram escribas, mas faltam cronistas.
Dezembro de 2023
Henrique Salles da Fonseca