NOS MEUS 70 ANOS
Sempre gostei de fazer anos e para dizer a pura verdade, sinto sempre um certo frisson, qualquer coisa que não sei nem quero explicar; e não quero porque se descobrisse do que se trata, arriscava-me a perder a magia que desde sempre sinto no meu dia de anos.
E digo «dia de anos» porque não gosto da palavra «aniversário». Faz-me lembrar outras palavras de que também não gosto como «sanita», «psiché» ou «bafordo». Sim, prefiro-lhes os sinónimos. Mas, em compensação, gosto imenso de «alguidar» e de «manteiga» (só que desta gosto sobretudo no Verão porque fica com uma consistência mais condizente com a «canícula» que, parecendo uma pequena cadela, nada tem a ver com a «melhor amiga do homem»).
Mas os 70 anos têm uma magia especial. Já repararam? Correspondem exactamente a 3,3333(3) vezes os 21 anos da antiga maioridade e a 3,8888(8) vezes os 18 anos da actual maioridade. Em ambos os casos de acumulação de sabedoria, a parcela nos encaminha para o infinito, para um número que nunca alcança a exactidão, a sugerir que começamos a idade em que muito provavelmente ficamos inexactos; em português mais corriqueiro, a idade em que ficaremos chonés. Já pensaram no respeitinho devido a um septuagenário? Imaginem as parangonas nos jornais sobre o velhinho septuagenário atropelado por um autocarro numa passagem de peões... Pois é! A partir de agora só me safo dessa se não atravessar nas passagens de peões. Mas também é esta a idade em que confirmamos que mais vale ser do que ter.
E perguntam-me ao que me vou dedicar de agora em diante até que a memória se desvaneça, para além de não atravessar nas passagens de peões. Bem, tentarei continuar a montar a cavalo diariamente, de preferência de manhã; a estudar e a escrevinhar umas «coisas» e a defender as causas em que acredito. Ou seja, um divertido de manhã e um chato à tarde.
E como o tal infinito para que os submúltiplos de 70 nos mandam, também penso que infinita é a ignorância em que me sinto mergulhado. E tentarei continuar a combatê-la. A ver se consigo.
Eis por que há alguns anos decidi atacar a vastidão da ignorância e passei a dedicar-me à Filosofia. Sim, desenhei eu próprio o curso que fiz, escolhi os professores, passei em todos os exames que não se realizaram, esclareci dúvidas com ninguém e fui aprovado sem qualquer favor mas também sem a mínima distinção. Então, cumprido esse curso, concluo que a vasta ignorância de que antigamente desconfiava mas era indefinida, agora é consciente e bem concreta. Mas ignorância na mesma. E vasta!
Essa nova consciência levou-me a desenhar novo curso, a escolher os professores e... ainda estou no início e os exames longe. Sim, estou agora a fazer o meu próprio curso de Teologia. Já fiz as cadeiras do Animismo, do Chamanismo, do Induismo e do Budismo. Mas quando estava no Judaísmo estalou a bronca do «Charlie» e interrompi para acorrer às aulas do Islamismo. Tive um professor fantástico que morreu em Novembro passado e ensinava na Sorbonne. Chamava-se Abdelwahab Meddeb, era tunisino e diz dos integristas o que o Profeta não diria dos suínos. Decididamente, deixou-me muito interessado em Averróis. A ver se o leio lá mais para a frente... Como os gulosos, guardo para o final do curso a parte mais saborosa, o Cristianismo. Mas não posso deixar de contar agora uma pequena história que me foi contada por um monge seguidor do Dalai Lama.
Perguntado sobre o que é a compaixão budista, o monge pediu a quem o escutava que imaginasse entrar numa sala e ver uma flor num vaso. Todos pensaremos em primeiro lugar se gostamos ou não daquela flor, se ela é bonita, enfim, se de algum modo nos satisfaz. Ou seja, todos teremos raciocínios ego centristas, egoístas, no limite: todo o raciocínio se desenvolve em torno de nós próprios, dos nossos parâmetros e interesses. Mas se ao vermos a flor naquele vaso pensarmos que ela estaria muito melhor se pudesse apanhar directamente a luz do Sol e o ar fresco, se pudesse estar entre as outras da sua espécie... Então nós abdicávamos do nosso egoísmo, do egocentrismo e focávamos o nosso raciocínio no interesse da flor. Ou seja, interessávamo-nos pelo outro e não mais apenas por nós. Esse cuidado com o próximo é a compaixão budista. Os cristãos chamam-lhe amor.
Mas com o tempo todo do mundo à minha disposição, tenciono também continuar a deambular por aí seguindo a sugestão de James Joyce em busca da epifania das coisas, dos locais, dos animais e das pessoas por que passarei procurando o que têm de invisível mas lhes define a essência. E como eu quero que essa essência seja boa, dou por mim a procurar o bem e a esquecer (perdoar) os defeitos. Garanto-vos que é giro viver assim.
E pronto, eis ao que tenciono agora dedicar-me até que a memória se desvaneça: à compaixão (no sentido budista) e à epifania joyciana.
Chegado à definição do futuro, resta-me gozar o presente que se fará numa sucessão sucessiva de momentos que a todo o instante passarão a ser passado, esse de que guardamos as memórias que nos definem neste mundo, agora e para sempre...
E assim, acabo a brindar ao futuro dos presentes, daqueles que vemos e dos outros!!!
Tchim, tchim!!!
27 de Junho de 2015
Henrique Salles da Fonseca