NEM A AGATHA CHRISTIE
Tal é a Isabelle da “École des Maris” de Molière. Esperta, manhosa, inventiva, construindo uma trama de ambiguidade perfeita para se livrar de Sganarelle, seu tutor e prometido esposo, que dela tomou conta quando o pai desta morreu. O mesmo fez Ariste, irmão mais velho de Sganarelle, tutor de Léonor, irmã daquela, pela mesma altura. Mas enquanto Ariste é o exemplo do homem compreensivo, que dá plena liberdade à sua pupila para frequentar a sociedade de jovens e se divertir de acordo com a sua idade, Sganarelle é um homem rígido e severo nas suas imposições machistas, exigindo cega obediência de Isabelle, numa disciplina de rigor e repressão, que destruíram a alegria nesta e favoreceram o ódio e sobretudo a habilidade para se livrar do homem imposto, mentindo, fingindo uma doçura que não sente, mas com a qual pôde transformar o seu tutor num cordeirinho crédulo, além de delicado mensageiro de Cupido, tantas as provas que soube dar de indignação contra um pretendente, de que se servirá para se livrar de Sganarelle.
Assim, reduzindo a comédia de Molière ao esquematismo de um triângulo amoroso – Sganarelle, Isabelle, Valère – (os restantes diálogos entre as demais personagens desta peça de tese, de acusações e críticas sobre comportamentos masculinos, nos velhos tempos seiscentistas, que davam assim os primeiros passos para o alertar das consciências em torno da condição feminina da mulher-objecto, embora o nosso Gil Vicente já tivesse um século antes revelado a forte personalidade de uma Inês Pereira insubmissa) – começamos por conhecer, após a tentativa frustrada de Valère para se fazer convidado de Sganarelle, a confissão dos sentimentos amorosos daquele por Isabelle ao criado Ergaste. (Acto I).
Já no II Acto, um Sganarelle, de ouvidos cheios pelas acusações de Isabelle a respeito das tentativas amorosas de um tal Valère junto desta (1º estratagema da pupila, falsamente indignada), procura Valère para lhe garantir que, estando Isabelle destinada a si próprio, seria conveniente aquele desviar os seus olhos de ardor ofensivo para outro objecto de mira. E Sganarelle vá de esclarecer Valère da autoria das acusações, em que as palavras de Isabelle, transpostas por Sganarelle, são de um requinte de ambiguidade que não escapa a Valère, e que definem a pequice de Sgananarelle, (no fundo um velho ingénuo e ridículo, à maneira dos ditames impostos pela Commedia dell’Arte italiana, mau grado a dimensão humanista das personagens molièrescas):
ACTE II, SCÈNE II
VALÈRE | |
| Qui vous a dit que j’ai pour elle l’âme atteinte ? |
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| Des gens à qui l’on peut donner quelque crédit. |
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| Mais encore ? |
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| Elle-même. |
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| Elle ? |
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410 | Elle, est-ce assez dit ? |
| Comme une fille honnête, et qui m’aime d’enfance, |
415 | Son cœur qu’avec excès votre poursuite outrage, |
420 | Qui choque l’amitié que me garde son âme. |
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| C’est elle, dites-vous, qui de sa part vous fait... |
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| Oui, vous venir donner cet avis franc, et net ; |
425 | Si son cœur avait eu dans son émotion, |
430 | Qu’à tout autre que moi son cœur est interdit, |
ACTE II, SCÈNE III
ISABELLE | |
| J’ai peur que cet amant plein de sa passion, |
450 | N’ait pas de mon avis compris l’intention; |
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| Me voilà de retour…… |
E o nosso Mercúrio, Cupido inconsciente, conta da confusão e despeito de Valère, confiante de que com a sua intervenção, aquele desistirá. A pupila garante-lhe que, pelo contrário, a insistência se mantém, visto ter recebido uma caixa fechada, com uma carta (2º estratagema) que ela não abrira e desejava devolver, indignada com o desplante, e sem permitir que o tutor a abrisse, como ofensa à sua integridade, de psicóloga inteligente e virtuosa, mas com um truque final convincente de falsa generosidade, possibilitando a abertura da carta (truque que nos lembra o mesmo estratagema impeditivo, numa cena final de “Uma Família Inglesa” de Júlio Dinis, Mr. Whitestone assumindo-se como autor de uma carta de Carlos a Cecília, perante o alucinado pai desta, Manuel Quintino, abrindo a carta e dando-lha a ler, o que foi, naturalmente recusado por este):
ACTE II, SCÈNE IV
ISABELLE | |
| Il est de mon devoir de faire promptement |
475 | Et j’aurais pour cela besoin d’une personne… |
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| Au contraire, mignonne, |
| C’est me faire mieux voir ton amour et ta foi, |
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| Tenez donc. |
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480 | Bon, voyons ce qu’il a pu t’écrire. |
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| Ah ! Ciel, gardez-vous bien de l’ouvrir. |
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| Et pourquoi? |
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| Lui voulez-vous donner à croire que c’est moi ? |
485 | La curiosité qu’on fait lors éclater, |
490 | Le mépris éclatant que mon cœur fait de lui, |
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| Certes elle a raison, lorsqu’elle parle ainsi. |
495 | Je vois que mes leçons ont germé dans ton âme, |
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| Je ne veux pas pourtant gêner votre désir, |
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| Non je n’ai garde ; hélas ! tes raisons sont trop bonnes, |
500 | Et je vais m’acquitter du soin que tu me donnes, |
A carta dirá do atrevimento de Isabelle de querer precipitar um casamento com Valério para fugir ao casamento imposto com um tutor odiado e, em novo encontro com Sganarelle, aos ataques e ironias deste pela carta “enviada” por Valério a Isabelle, Valério responde com a necessária humildade, louvaminheira das virtudes de Sganarelle, o que necessariamente lisonjeia este, compadecido até do pobre amante derrotado, numa cena de magistral comicidade.
Isabelle finge uma falsa cólera contra a piedade que o tutor diz sentir do pobre Valério rejeitado, e acusa este de a querer raptar e de estar convencido da paixão de Isabelle por ele, instigando Sganarelle a transmitir-lhe esse discurso comprometedor (3º estratagema).
Sganarelle não se faz rogado :
675 | Va, pouponne, mon cœur, je reviens tout à l’heure. |
680 | Et non comme j’en sais, de ces franches coquettes, (Il frappe à la porte de Valère)
A consequência imediata desta sequência de esquemas capciosamente imposto por Isabelle junto de um tutor odiado e simplório, é a entrada de Valério no reduto familiar de Isabelle, para que esta explique de vez qual dos dois prefere. Uma cena (IX) de grande mestria no uso do discurso ambíguo, pelos dois amantes, cada um dos intervenientes masculinos interpretando as referências de amor ou ódio segundo as suas convicções pessoais a respeito dos sentimentos da heroína: (4º estratagema)
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ACTE II, SCÈNE IX
…….VALÈRE | ||
725 | Oui tout ce que Monsieur, de votre part m’a dit, | |
730 | Que mon cœur par deux fois le fasse prononcer. | |
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| Non, non, un tel arrêt ne doit pas vous surprendre ; | |
735 | Oui, je veux bien qu’on sache, et j’en dois être crue, | |
740 | A toute mon estime et toute ma tendresse; | |
745 | Et l’autre par sa vue inspire dans mon cœur | |
750 | Et trop longtemps languir dans ces rudes tourments; | |
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755 | Oui mignonne je songe à remplir ton attente. | |
ISABELLE | ||
C’est le seul moyen de me rendre contente
SGANARELLE | ||||||||||
| Tu la seras dans peu. | |||||||||
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| Je sais qu’il est honteux | |||||||||
| Aux filles d’exprimer si librement leurs vœux. | |||||||||
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| Point, point. | |||||||||
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| Mais en l’état où sont mes destinées, | |||||||||
760 | De telles libertés doivent m’être données ; | |||||||||
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| Oui ma pauvre fanfan, pouponne de mon âme. | |||||||||
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| Qu’il songe donc, de grâce, à me prouver sa flamme. | |||||||||
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| Oui, tiens baise ma main. | |||||||||
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(Elle fait semblant d’embrasser Sganarelle, et donne sa main à baiser à Valère)
……………
VALÈRE | |
785 | Oui, vous serez contente, et dans trois jours vos yeux, |
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| À la bonne heure . Adieu. |
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| Je plains votre infortune ; |
| Mais... |
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| Non, vous n’entendrez de mon cœur plainte aucune ; |
| Madame assurément rend justice à tous deux, |
790 | Et je vais travailler à contenter ses vœux. |
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| Pauvre garçon ! sa douleur est extrême. Venez, embrassez-moi ; c’est une autre ellre-même. (Il embrasse Valère) ……………………….. |
Para recompensar Isabelle pelo seu grande amor por ele, Sganarelle decide precipitar o seu casamento para o dia seguinte. O III Acto preencherá a estratégia (5ª) seguida pela apavorada Isabelle para escapar a tal destino. Encontrada por Sganarelle enquanto fugia de casa furtivamente, desculpa-se com a irmã Léonor, que diz apaixonada por Valère, e que deixara fechada no seu quarto para a impedir de ir consolar o destroçado pretendente, depois de lhe ter feito um discurso condenatório dissuasivo. O recatado tutor fá-la retornar ao seu quarto, mas ela convence –o a deixar sair a irmã para casa de Valère, contrafazendo a sua própria voz, enquanto Sganarelle vai chamar o Comissário e o irmão Ariste para celebrar o casamento de Valère e de Léonor , por conta dos bons costumes, preparando-se, entretanto, para se divertir com a decepção de Ariste ante os efeitos da educação livre que este dera a Léonor. O enganado afinal, foi Sganarelle –( Léonor casará com o bonacheirão Ariste) – que, na sua tirada final, lançará furibunda diatribe contra a desqualificada e manhosa Isabelle e contra o diabólico sexo feminino:
ACTE III, SCÈNE IX:
SGANARELLE | |
| Non, je ne puis sortir de mon étonnement. Et je ne pense pas que Satan en personne, |
1105 | J’aurais pour elle au feu mis la main que voilà; |
1110 | Et je le donne tout au diable de bon cœur. |
Sacré Molière! Nem uma Miss Marple para desenovelar tais manigâncias de carácter e de imaginação inteligente, em intriga progressivamente urdida por uma pobre donzela em pânico!